Os walshianos reúnem-se para dizerem de sua justiça em relação ao mais recente título de David Fincher, disponível na Netflix: Mank (2020).
Não é difícil perceber o que poderá levar um realizador a querer retratar a época de ouro de Hollywood e a mergulhar no processo criativo de uma obra com a aura de Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941). A quantidade de talento e genialidade que pululava na Hollywood dos anos 30-40 facilmente explica o fascínio que qualquer cinéfilo possa sentir por essa era, com a indústria do cinema em perpétuo processo de recrutamento de talento (especialmente a partir de Nova Iorque, havendo alturas em que Hollywood poderia assemelhar-se a uma sucursal da mesa redonda do Algonquin) e com os putos maravilha em acção – o boy wonder Welles, o boy genius Thalberg. Em Mank, David Fincher construiu um mundo em que realidade e lenda se confundem, servindo-nos um sem-número de nomes que construíram a história do cinema (embora, se excluirmos a presença de Marion Davies, se sinta uma estranha ausência dos actores, que não conseguem mais do que ser fugazes figurantes), abundando as deixas espirituosas (quer pela graça, quer pelo álcool). Se os nomes daqueles que vão desfilando no desenrolar desta história são bem conhecidos, o artificialismo do ambiente que os rodeia faz-nos mesmo duvidar da veracidade das nuvens que avistamos no céu.
Mank revisita uma das histórias míticas do cinema, o processo de criação, no papel, de Citizen Kane, com diversos saltos cronológicos destinados a dar-nos a conhecer a origem dos demónios de Herman Mankiewicz, mais um argumentista a “vender” o seu talento numa indústria que despreza, numa proximidade abjecta de produtores tão poderosos quanto cretinos. Ironicamente, acabamos por sentir que a maior fragilidade do filme reside no argumento. Pressente-se o propósito de contar a “história verdadeira”, ainda que fintando repetidamente o rigor histórico, mas para alimentar esse ensejo seria necessária uma história a várias vozes, uma investigação semelhante àquela que procura o significado de Rosebud. Esta era, afinal, a Hollywood dos créditos mal distribuídos, dos script doctors, dos afinadores de diálogos, das autorias atropeladas. E um dos maiores ausentes do filme, com uma presença demasiado esporádica para permitir que seja contada a sua versão da história é, justamente, Orson Welles. Por outro lado, por diversas vezes, parece haver uma tentativa de arrumar cada fio narrativo de Citizen Kane num episódio específico da vida de Herman Mankiewicz, resultando numa visão empobrecida do trabalho de escrita de um argumento. Quando Tippi Hedren manifestou a sua dificuldade em representar uma mulher frígida face ao galã Sean Connery, Hitchcock respondeu-lhe: “Yes, my dear, it’s called acting.” Pois apetece dizer que escrever o argumento de um filme é também mais do que a mera colagem e composição de elementos da vida real, há a criatividade que levou, um dia, Herman Mankiewicz a criar um mundo sépia para além do mundo Technicolor de The Wizard of Oz (O Feiticeiro de Oz, 1939). É esse golpe de génio que está ausente em Mank.
Daniela Rôla
É o terraplanismo da História do Cinema, esta teoria néscia e insidiosa de que Herman Mankiewicz é o único autor do argumento de Citizen Kane. Criada pela crítica Pauline Kael (não por nobres sentimentos de justiça histórica, mas por mera aversão pessoal à política dos autores e ao seu principal importador na América, Andrew Sarris), o resultado de uma pesquisa enviesada originou uma controvérsia cinematográfica que deveria ter morrido no mesmo instante em que nasceu. A hipótese já foi mais do que refutada por diversos historiadores, principalmente por Robert L. Carringer (cujo artigo aqui disponibilizamos), que analisou as 7 (repetimos, 7) versões do argumento. O que Mankiewicz fez foi, resumidamente, criar uma 1ª e 2ª versão, expondo a vida do magnata Randolph Hearst à clef. Embora estas fornecessem o princípio, o fim, algumas cenas, personagens, frases e, acima de tudo, uma estrutura sólida, foi Orson Welles quem as depurou e aperfeiçoou nas 5 versões seguintes, eliminando, acrescentando e substituindo dezenas e dezenas de páginas que deram ao texto a sua forma e identidade final. A análise desta evolução na reescrita levou a que Carringer pusesse fim à discussão: “a contribuição de Welles não foi só substancial como definitiva”. E, no entanto, foi o próprio Welles quem pediu que o nome de Mankiewicz viesse acima do seu nos créditos de argumentista, tal como sempre reconheceu (como neste momento de This is Orson Welles) a enorme importância que ele teve no processo criativo da escrita, o que contraria o mito de cineasta arrogante, autocentrado e exclusivamente focado na sua progressão de carreira de que a cultura americana se alimenta há décadas.
Mas ponhamos a controvérsia de parte para falarmos de Mank. O fel atrás de fel espalhado reiteradamente àqueles que apresenta como os hipócritas, fingidos e egocêntricos moguls de Hollywood (e a Hearst), a incapacidade de conferir uma ambição individual genuína ao protagonista no lugar de um constante desprezo pelo ambiente que o cerca, o cliché já visto e esmiuçado do artista genial de comportamento auto-destrutivo, tudo isto mostra uma obra manca, pouco imaginativa e sem subtilezas, visualmente alicerçada num barroquismo vaidoso pseudo-wellesiano (“pseudo” porque sem a sensibilidade poética de quem se inspira) que tem algo de tão postiço e artificial como as cigarette burns que aparecem nos cantos do ecrã a simularem o formato de película. E parece irónico que um filme sobre um argumentista tenha como uma das principais falhas, justamente, o argumento. Haverá um fluxo narrativo orientado pela causalidade dos acontecimentos ou, em alternativa, num progresso psicológico ou moral da personagem? Não. Adopta-se o mais académico e previsível dispositivo do biopic, o flashback (bastante distinto do uso pluralístico e policial de Citizen Kane com o qual alguns comparam), originando cenas individuais que se sentem como episódios descosidos, sem um tecido conectivo que demonstre o sentido dramático dos Finchers (pai e filho) na história que querem contar ou um olhar mais aprofundado sobre o homem que estudam. Mas não há drama, só a exposição petrificada dos acontecimentos. Não há personagens, só figuras abordadas pelas superfícies. Não há filme, só um longo e desinspirado circo de cinismo.
Duarte Mata
Para mim, David Fincher vem apresentando, com alguma consistência, um dos projectos de cinema mais interessantes da actualidade, tendo desenvolvido e sedimentado uma linguagem baseada nas lições clássicas da transparência e na rigorosa cronometragem das suas interpretações low-key (quase robotizadas) mas, por norma, pujantes. Um cinema trabalhado subcutaneamente, que nos cativa pela sua aparente simplicidade, ainda que nos vá injectando lentamente um veneno bem destilado que ficará a circular no nosso organismo durante muito tempo. Em Mank, Fincher não recuou no seu projecto de cinema, mantendo esse gosto pela construção lenta, que se vai densificando a tal ponto que nos perdemos nos “esquemas” das suas personagens, nas maquinarias da mente e no jogo das “instituições”. O alvo é a Hollywood dos grandes estúdios, no período de sedimentação da passagem do mudo para o sonoro, quando a liberdade criativa dos grandes realizadores ia sendo cercada pelo galopante crescimento da indústria do cinema e pela sua instrumentalização política e moral ao serviço de “interesses maiores”. Fincher produz um retrato venenoso sobre o que está por detrás de um dos mais estrondosos marcos da história do cinema, essa espécie de acidente imprevisto, milagroso encontro de génios desencontrados com fome de liberdade e experimentação, chamado Citizen Kane.
Por um lado, Fincher arrasa o dito “sistema”, em particular na sequência mais impressionante do filme, em que Gary Oldman (excelente actor), na pele de Herman Mankiewicz, “vomita” um discurso lancinante, transformando a “Babilónia Hollywood” num palco para a mais completa – e patética – peça shakespereana, algures entre Otelo e Macbeth. Por outro lado, parece querer fazer um ajuste de contas com a história da produção de Citizen Kane, enaltecendo, para lá das suas capacidades, uma personagem menor, o próprio Herman, e sugerindo, nos derradeiros instantes, uma ridícula tese segundo a qual, como a Academia soube reconhecer (say what?), foi Herman o arquitecto-mor do “melhor filme de sempre”. Absurdo que Fincher tenha recorrido a um epifenómeno do sistema, como a atribuição de um Óscar, para “dar solidez” a tal ideia. Tese algo abstrusa, porque todos sabemos que Hollywood – ainda mais a clássica – sempre teve óptimos argumentos, mas poucos originaram filmes que ocupam um lugar na história minimamente equiparável a Citizen Kane, que é muito mais do que a tradução de um conjunto de boas ideias dramáticas repletas de innuendo desconfortável e habilmente induzido. É, antes e acima de tudo, um marco na história das imagens, dos sons, dos sentidos. E isso é Welles, pode também ser Gregg Toland (vertiginosa fotografia em profundidade), até Robert Wise (a incrível fluidez de uma montagem estilhaçada). Certo: é também Mankiewicz, mas – desculpem lá, caros Finchers, pai (Jack, o autor póstumo deste argumento agora realizado) e filho – o “efeito Kane” na história do cinema radica essencialmente na sua gramática áudio/visual. Como dizia o outro, se os filmes se contassem, não se faziam.
Luís Mendonça
Há uma série de contradições essenciais em Mank, de David Fincher, que se prendem com o seu formalismo classicista por oposição à sua produção e distribuição digital. A primeira dessas contradições relaciona-se, naturalmente, com o contexto de exibição do filme, fora das salas, numa plataforma de streaming. No entanto, o paradoxo é mais fundo, uma vez que grande parte do filme se constrói em redor da falsificação de um filme dentro do filme, umas actualidades cinematográficas encenadas que procuravam fazer inflectir a opinião pública contra o candidato socialista ao posto de Governador do estado da California, o escritor Upton Sinclair. Se o realizador dessa propaganda xenófoba e racista, produzida pela MGM nos anos 1930, se corrói com a culpa de ter disparado o míssil que afundou o seu próprio porta-aviões ideológico, Fincher parece imperturbável ao fazer Mank, um filme cheio de incorrecções históricas sobre o cinema clássico que admira e que, mais que qualquer outra coisa, reduz o cinema dos anos 1930 e 40 a uma série de efeitos de pastiche digitais, cristalizados nas cigarrete burns que marcam [sem a ironia de Fight Club (Clube de Combate, 1999)] as mudanças de rolo deste ficheiro mp4.
Esta construção estética da película como fetiche de uma idade de ouro perdida é tão falsa e manipuladora como as funestas actualidades dentro do filme (que, aliás, eram um dos aspectos mais interessantes de Citizen Kane, as falsas actualidades que incluem Foster Kane em vários momentos marcantes do início do século XX, qual Zelig antes do tempo). Se vários outros realizadores trabalham semelhantes efeitos de nostalgia noutros filmes de homenagem, quase sempre fazem-no através de um filtro paródico ou necrófilo (Tarantino, Rodriguez, Soderbergh são os primeiros que me recordo), Fincher recorre a estes contornos barrocos com orgulho e pompa. É apenas um pormenor, é certo, mas é revelador de um entendimento do cinema clássico que trabalha primeiro a mimese em vez da integração. Fincher é possivelmente o melhor realizador a trabalhar no cinema mainstream norte-americano, e também aquele que sempre dominou, de forma mais ostensiva e inteligente, os mecanismos do classicismo. Só que Mank procura tão activamente a colagem a um universo, a um tempo e a um modo de fazer que esgota todos os seus esforços num ritmo impossível de acompanhar, tão obcecado que está em fazer todas as referências, em colocar todas as figuras da época, em montar toda a reconstituição histórica e em tentar fazer um filme que, sendo sobre Hollywood, constantemente se pense a si próprio (Cue?). Só que nada aqui é generoso, bem pelo contrário. O espectador, mesmo o mais cinéfilo, assiste ao filme como quem ri de uma inside joke que não acompanha totalmente.
Ricardo Vieira Lisboa
Não deixam de ser curiosas as críticas à forma como David Fincher representa um período importante da história do cinema americano, quer seja pela forma como utiliza certos princípios e regras do cinema dessa era de forma desvirtuada e quase até parodiada, quer seja pela forma como tenta mimetizar o aspecto do filme em película como se tratasse de uma falsificação pouco esforçada e desinteressada, ou até pela forma como se intromete na discussão sobre a autoria de Citizen Kane. São tudo escolhas dúbias por parte de Fincher, e essas críticas válidas, mas estamos afinal a falar não de um purista ou classicista, mas de Fincher, o realizador do primeiro filme MTV [Se7en (Sete Pecados Mortais, 1995)], um dos primeiros de uma geração que saiu dos videoclipes e dos anúncios publicitários a ganhar notoriedade, que cedo adoptou o digital, e um dos primeiros aliados da Netflix, com as suas séries House of Cards (2013-2018) e Mindhunters (2017-2019), talvez o seu trabalho mais relevante da última década, nos quais definiu uma linguagem (trazendo o cinema para a televisão) e uma estética apurada e facilmente associada a Fincher e ao mesmo tempo, um modelo facilmente copiado por outros realizadores que assumiam essa tarefa nos episódios seguintes, anulando-se em nome da máquina de Fincher. Tudo isto para dizer que o mais interessante nesta questão é a forma como Fincher gosta de se ver como um outsider do sistema de Hollywood, quando na verdade é, já há algum tempo, um insider, que encontra no mainstream a sua zona de conforto e influência, mesmo que continue a trabalhar como um outsider, situação que encontra precisamente um paralelo com o protagonista do filme, Mank.
Por todas as lacunas do argumento – na verdade parece que chegamos ao filme como se este já decorresse há algum tempo, como um filme que apanhamos a meio – , Mank começa com um personagem no seu ponto mais baixo e distante para o espectador, uma espécie de homem-criança que tem de ser domado e apaparicado, para lentamente inverter essa percepção, numa proposta difícil mas aliciante, ao retratar uma queda em desgraça, que encontra um paralelo óbvio com o argumento de Citizen Kane. Mesmo que de forma por vezes atabalhoada, o argumento sorkiano, repleto de longos diálogos e frases disparadas com vários sentidos [reminiscente de Zodiac (2007) e Mindhunters], ilustra as fascinantes contradições de Mank: um homem de família que nunca está com a família; um anti-social que está sempre a procurar a companhia de outros; uma mente criativa contente em fazer os mínimos; politicamente investido mas ausente e inactivo. Por falar em paralelos, o mais relevante parece-me ser não a questão da autoria de Citizen Kane, mas a decisão da escolha de Mankiewicz sobre o tema da história, de finalmente passar à acção, retratando a decadência que conhece através dos seus círculos sociais e profissionais, a distância que encontra entre os “criadores dos sonhos” de Hollywood e o seu público, assumindo finalmente o seu papel de outsider dentro de um sistema no qual não se revê, como um gesto político, de denúncia, que é reflectido na magnífica sequência sobre as eleições para Governador da Califórnia e do episódio à volta das notícias falsificadas – mais um paralelo com a actualidade mediática, e um raro gesto político de Fincher, e por isso, inesperado, sobre as lições do passado e a instrumentalização das imagens.
João Araújo