Na única história de amor apaixonado que filmou, The Quiet Man (O Homem Tranquilo, 1952), uma película muito pessoal que levou 30 anos a tentar filmar, a personagem de Wayne chama-se Sean, verdadeiro nome de Ford e a de Maureen O’ Hara, o nome das duas mulheres que Ford mais amou: Mary McBride Smith, sua mulher, e Kate Hepburn.
Peter Bogdanovich, in Directed by John Ford (1971).
A diligência de Stagecoach (Cavalgada Heróica, 1939) é muitas vezes identificada como um microcosmo da obra de John Ford. No interior do veículo, encontramos um criminoso com a cabeça a prémio, uma prostituta, um médico alcoólico, um jogador de saloon, um banqueiro corrupto e uma jovem mulher grávida. São personagens representativas da América, dotadas de complexidade que as transformaram em arquétipos recorrentes nos filmes de Ford, e em que o cineasta elege os marginais como os seus heróis, o Ringo Kid (Wayne) e Dallas, a prostituta bondosa de Claire Trevor [com ressonâncias da Francie que ela interpretara dois anos antes para William Wyler, em Dead End (Ruas de Nova Iorque, 1937)], personagens que necessitam de solidão, muitas vezes cativos de histórias de violência, mas que se revelam ao espectador como o coração da América, na superioridade dos pequenos e grandes gestos, ainda que resultem em derrotas, e em que os degenerados são os que ostentam o dinheiro e o poder. No contra-campo da diligência, o documentarista Ford, interessado no folclore do Oeste, nas suas tradições, no desenho da paisagem como a tela da América e da sua História.
Mas, a recorrência no par Maureen O’Hara e John Wayne, em que as dinâmicas conjugais são o assunto, fizeram-nos desviar um pouco dessa diligência e entregam as próximas crónicas a três filmes: Rio Grande (1950), The Quiet Man e The Wings of Eagles (A Águia Voa ao Sol, 1957).
Uma das extravagâncias de John Ford foi ter adquirido, em meados da década de 30, Araner, uma embarcação a vela de 35 metros, que restauraria com esmero e que haveria de adoptar como refúgio, com ou sem companhia, muitas vezes amparado pelo álcool. Por isso, não é surpreendente a escolha da Marinha, na participação na II.ª Guerra, sendo que nesse capítulo se sugere a leitura de um óptimo livro, Five Came Back (2005) de Mark Harris, editado entre nós com o titulo Os Cinco Magníficos – Hollywood e a Segunda Guerra Mundial, História e histórias de vida de Frank Capra, John Ford, John Huston, George Stevens e William Wyler. Depois de Pearl Harbor, Ford foi colocado no topo da hierarquia da propaganda, com fácil acesso ao Presidente Roosevelt, tendo dividido os três anos e meio em que esteve alistado, pelo treino de técnicos na captação de imagens e pelo exercício em cenários de guerra, entre Washington, várias presenças na Europa e na Ásia, no norte de África e no desembarque da Normandia, como um realizador num conflito em directo. Da obra produzida neste período, destaque para A Batalha de Midway (The Battle of Midway, 1942), rodado em 16 mm, no registo da viragem do conflito no Pacífico, e que constituiu um amplo triunfo para Ford, pois o filme seria mostrado em sala em toda a nação, tendo saído vitorioso na noite dos Óscares, numa relevância que perdurou na história do documentário.
A troca de correspondência de Ford com a família neste período era frequente, onde era manifesta a saudade da mulher e dos filhos, mas que também evidenciava as reiteradas ausências, sempre justificadas pela entrega ao dever, parecendo antecipar a conduta dos personagens de Wayne em Rio Grande e The Wings of Eagles. Da sua presença no conflito, houve vários episódios de atribuição de heroísmo em situações passiveis de equívocos, que Ford nunca procurou contrariar, o que se estendeu no pós-guerra, nunca refutando uma condecoração que validasse a sua experiência. Para além de ter criado a Field Photo Farm, para os membros da sua unidade, Ford patrocinou várias associações de veteranos e sempre que podia, por vezes de forma inusitada, apresentava-se com o uniforme militar. Como um bom irlandês valorizava o núcleo familiar e idealizara-o em muitos dos seus filmes anteriores à guerra [e vem-nos logo à memória o britânico How Green Was My Valley (O Vale Era Verde, 1941)], como mais uma peça do sonho americano, mas depois da guerra este homem, já com mais de 50 anos, que gostava de integrar muitas das suas facetas nas características dos personagens, talvez tenha encontrado na sua frustrante vida familiar o assunto para litigar a conjugalidade.
Este modo de articular o elástico de emoções, será reproduzido em várias ocasiões: um Wayne dividido entre o papel de marido e de pai e de líder militar, formatado para cumprir e fazer cumprir ordens.
Na primeira sequência de Rio Grande, assistimos ao regresso de um regimento de cavalaria ao aquartelamento, são algumas dezenas de homens numa montada lenta, cobertos de poeira e de cansaço, mas com os rostos erguidos e um olhar frontal. Na orla do plano, um grupo de mulheres seguram os aventais e observam com reverência aquela procissão, procurando talvez o alívio no encontro do rosto do seu companheiro. Na última cena, parece repetir-se o arranque, induzindo uma trajectória circular ao filme e aos seus motivos, a custosa tensão entre o dever e a conjugalidade, mas com Ford a particularizar, a entregar o centro dos planos a Kathleen (O’ Hara), primeiro a inquietude do rosto, depois o encontro com a mão de Kirby (Wayne), que segue arrastado numa maca improvisada.
O 2.º regimento de Cavalaria está aquartelado na vizinhança da fronteira do Texas com o México, na defesa do território da ameaça Apache, liderado pelo tenente-coronel Kirby Yorke, de ascendência irlandesa, que deu continuidade ao personagem de Fort Apache (Forte Apache, 1948), primeira parte da trilogia da cavalaria, que Rio Grande fechou. Chegam novos recrutas, entre eles Jeff (Claude Jarman Jr.), o filho que Kirby não vê há 15 anos, e cedo perceberemos a importância do tempo, a intensificar a perda e a ausência, a distância entre as personagens. Na permuta de planos da primeira troca de olhares entre o pai e o jovem, na parada militar, há uma emoção no rosto de Wayne, sublinhada pela partitura de Victor Young, tão poderosa quanto fugaz, que um plano aberto substitui por um discurso onde Kirby prega exigência e ameaça de morte aos putativos desertores. Este modo de articular o elástico de emoções, será reproduzido em várias ocasiões: um Wayne dividido entre o papel de marido e de pai e de líder militar, formatado para cumprir e fazer cumprir ordens. A sós dirá ao filho que a incorporação lhe proporcionará uma vida de dor e de privações, raramente provida de glória, como se fizesse uma catarse, para logo depois da saída de Jeff dos seus aposentos, verificar a marca da estatura do filho, em comparação com a sua.
Pouco depois, Kathleen irromperá pelo aquartelamento, decidida a levar o filho, nem que tenha de pagar por isso. Kirby convida-a para jantar e as ressonâncias de uma caixa de música delimitam o fosso de tempo aberto entre eles. Numa sequência exemplar, que Ford isenta de diálogo, a troca de olhares austeros e fechados entre O’ Hara e Wayne reiteram a eficácia do campo/contra-campo e revelam um passado complexo, de rancores, de um amor perdido, submetido pela entrega dele à vida militar. No fim do jantar, o par é surpreendido por uma serenata, três homens do regimento cantam “I’ ll take you home again, Kathleen”, os rostos dos dois traduzem o pesar da impossibilidade daquele amor, Wayne confidencia a O’Hara o que já sabíamos, que não foi ele a escolher a música, ela responde que lamenta que não o tenha sido.
A história de John Ford está cheia de derrotas. Falhanços, últimos bastiões. Cuja tragédia também conduz à gloria.
Numa conversa entre a mãe e o filho, em mais um belíssimo enquadramento, delineado pelo peso das figuras e pela luz delicada no interior da tenda, O’Hara responde à aura de herói de Wayne com o lamento de que ele é um solitário, o que encontrará alguns minutos depois uma correspondência nas imagens em que Wayne é enquadrado a deambular sozinho num cenário deserto: um homem só, como uma balada americana que se descobre no rosto em close-up do actor. Na sequência final de Directed by John Ford, a voz de Orson Welles assinala que o conjunto dos filmes de Ford apresentam a visão que um homem tinha do mundo e do passado, enquanto se ouve uma frase do filme The Last Hurrah (O Último Hurrah, 1958): “vitorioso na derrota”. Welles desenvolve: “A história de John Ford está cheia de derrotas. Falhanços, últimos bastiões. Cuja tragédia também conduz à gloria. Mas não é a preferência pelo que é americano que dá unidade à obra, mas antes esta visão singular e poética, com que vê todas as formas de vida e através da qual criou o seu mundo particular. E o seu herói é quase sempre um homem só. Recortado no fundo em movimento da História. Quer seja interpretado por Henry Fonda, Jimmy Stewart, ou Spencer Tracy. De Harry Carey a John Wayne. Sempre o mesmo”. A seguir, Wayne diz a Bogdanovich que Harry Carey, um dos primeiros protagonistas dos filmes de Ford, tinha um gesto particular, que era segurar o cotovelo e olhar o horizonte, o que o evocava como um solitário, gesto esse que Wayne replicou em The Searchers (A Desaparecida, 1956), debaixo do pórtico da casa da família.
A conjugalidade disputa, então, com o dever, e O’Hara brinda, num jantar com vários elementos da hierarquia militar, à sua única rival – a cavalaria dos EUA –, sendo que em The Wings of Eagles fará algo semelhante, afirmando-se casada com a Marinha. Mas a conjugalidade é maleável, adapta-se ao contexto, e O’Hara abdica da pose aristocrata, integra-se na comunidade e passa a executar as mesmas tarefas das demais mulheres do aquartelamento. No entanto, as ressonâncias do passado continuam a soar naquele quotidiano, e O’ Hara lembra a Wayne o lamento, de que o dever o tenha feito destruir as coisas mais belas, que tanto rememora o eclipse da relação, como o acto de incendiar a plantação que pertencia à família dela há várias gerações. Ao que ele responde que um homem tem de ter honra, cumprir o seu dever mesmo que isso o leve à destruição, o que valida a leitura de Welles, coloca Wayne na condição de mártir e o par em disputa também com o curso da História.
Rio Grande é, então, resolvido num episódio curioso e revelador, como um conto de fadas, recheado de conteúdo simbólico e moral.
Para um filme situado num contexto militar, que se intitula Rio Grande, fronteira real e figurativa entre os EUA e o México, é notável como é que Ford reduziu ao mínimo, a apenas uma sequência longa no terceiro acto, o conflito com a comunidade Apache, tendo submetido a narrativa, a escala e a paisagem, as palhaçadas de Victor McLaglen (o bobo que garante a transmissão do saber e a socialização, com o auxilio do álcool, num mundo de homens), incluindo os cambiantes do preto e branco, ao único tema que realmente lhe interessava, às dinâmicas conjugais, mesmo quando induz um assunto que trespassa toda a sua obra – a obrigação de acatar a ordens superiores, mesmo estando em discordância – que aqui é quase sempre associado à mecânica da relação de O’Hara com Wayne.
Rio Grande é, então, resolvido num episódio curioso e revelador, como um conto de fadas, recheado de conteúdo simbólico e moral. No caminho para Forte Bliss, a caravana que reunia mulheres e crianças é atacada e os índios sequestram as crianças, como se a vida militar desfizesse as famílias, impedindo a coexistência dos dois mundos. Os Apache guardam os reféns numa igreja, protegidos pela cruz e demais símbolos do cristianismo, em solo mexicano. A cavalaria há-de chegar em força à terra estrangeira e libertar as crianças, seguindo o mandamento americano de que não se deixa ninguém da família para trás. Por entre a alegoria, que volta a validar a vida familiar naquele aquartelamento, Ford coloca pela primeira vez no filme Wayne a chamar filho ao pequeno soldado, para que este lhe arranque a seta do dorso e o ajude a regressar a casa.