
1.º Portrait de la jeune fille en feu (Retrato da Rapariga em Chamas, 2019) de Céline Sciamma – 82 pts.; 2.º Uncut Gems (Diamante Bruto, 2019) de Josh e Benny Safdie – 81 pts.; 3.º It Must Be Heaven (O Paraíso, Provavelmente, 2019) de Elia Suleiman – 60 pts.; 4.º Malmkrog (2020) de Cristi Puiu – 52 pts.; 5. Nuestro tiempo (O Nosso Tempo, 2018) de Carlos Reygadas – 46 pts.; 6.º Richard Jewell (2019) de Clint Eastwood – 44 pts.; 7.º Liberté (2019) de Albert Serra – 43 pts.; 8.º The Nest (O Ninho, 2020) de Sean Durkin – 42 pts.; 9.º J’accuse (J’accuse – O Oficial e o Espião, 2019) de Roman Polanski – 41 pts.; 10.º Lovers Rock (2020) de Steve McQueen – 30 pts.
São tempos de crise, são tempos de mudança. Olhamos para este Top e, apesar de tudo, vemos como a velha e justa concepção vai resistindo: os nossos walshianos terão visto apenas dois dos dez filmes escolhidos fora da sala de cinema. Portanto, sim, a mudança está aí, mas a nossa intuição continua programada pelo bom ritual da sala escura. É óptimo podermos ser esmagados por experiências tão intensamente cinemáticas (cabeças grandes, corpos grandes, movimentos e acções grandes). O lamento sobre o facto de não podermos ver no grande ecrã o último dos irmãos Safdie e o segundo filme de Steve McQueen presente na mini-série Small Axe também faz parte desse mesmo movimento de resistência. O cinema em sala subsistirá enquanto houver tamanho amor cinéfilo às imagens? Não sabemos. O mundo do cinema, esse, continua a ter várias cores, vários rostos, várias paisagens, vários tempos. Como é norma no À pala de Walsh, o nosso Top não está limitado à língua inglesa. E este ano, curiosamente, a selecção é especialmente rica do ponto de vista cultural, com filmes franceses – o mais consensual de 2020 é o belíssimo Portrait de la jeune fille en feu, primeira vez que uma realizadora atinge o lugar cimeiro, fixem, portanto, o seu nome: Céline Sciamma -, um filme palestiniano, outro romeno, ainda outro mexicano. Um filme, dir-se-ia assim, muito “europeu”, chamado Liberté, de um favorito aqui da casa, o catalão Albert Serra. E depois um nome também cá dos nossos, Clint Eastwood, e outro, seguido com especial interesse, um retornado ao seu país de origem depois de uma importante passagem pelos States, o britânico Steve McQueen, formam o ramalhete que aposta na diversidade cultural e, especialmente, na multiplicidade de propostas cinematográficas.
Algo comunica entre alguns dos títulos aqui presentes, que se prende com o regresso a uma experiência intensamente cinemática – curiosamente em filmes que não conseguimos ver no grande ecrã, como a frenética tour dos Safdie e o sensualíssimo bailado de corpos de Steve McQueen – e às coordenadas do drama adulto – Sean Durkin foi uma surpresa assinalada por alguns walshianos, visto um pouco como um ovni “caído dos céus aos trambolhões”, ao passo que Eastwood realizou um dos seus filmes mais subestimados, que merece nestes Tops e textos um muito sincero elogio. As experimentações mais, digamos assim, “radicais” estiveram a cargo de Cristi Puiu, Albert Serra e Carlos Reygadas, que dividiram muito, mas que deixaram atrás de si um rasto de admiração muitíssimo apreciável. Por fim, uma palavra para Suleiman, o “Tati do Médio Oriente”, ele que cimenta a sua posição como grande cronista das contradições dos nossos tempos, desmantelando a barbárie através da linguagem perdida da comédia física, e uma nota para a outra grande “raposa velha” desta selecção depois do nonagenário (90 Primaveras feitas este ano) Clint Eastwood: o “cercado” Roman Polanski assina um filme sobre a injustiça e a culpa. Face a tudo isto (tantos movimentos e tantas vidas!), diga-me, caro leitor, estaria mesmo pronto para deitar fora um ano cinéfilo como este?

António San-Payo
- Uncut Gems de Josh e Benny Safdie
- I’m Thinking of Ending Things (2020) de Charlie Kaufman
- The Nest de Sean Durkin
- Borat Subsequent Moviefilm (Borat, o Filme Seguinte, 2020) de Jason Woliner
- Mank (2020) de David Fincher
Três filmes por dia, três livros por semana e uns quantos álbuns seriam o suficiente para me fazer feliz até morrer. Por mais atípico que tenha sido 2020, ainda não foi desta que me consegui aproximar da famosa fórmula de Truffaut. Pelo contrário, e apesar do confinamento e dos supostos facilitismos do streaming, dei por mim a ver menos filmes do que o habitual. Felizmente houve filmes que compensaram. Uncut Gems, acima de todos, um estranho alinhamento cósmico que nos oferece, entre outras coisas maravilhosas, uma cena de pancadaria entre Adam Sandler e The Weeknd. Que a improvável aliança entre os irmãos Safdie e o rei do vaporwave, Daniel Lopatin, perdure por muitos e bons anos. Em segundo lugar, I’m Thinking of Ending Things, cujo trailer prometia um Hereditary (Hereditário, 2018) mas cujos mecanismos desconcertantes acabariam por me levar a outro lugar, a uma celebração solipsista de proporções lynchianas. The Nest foi a maior surpresa: um drama familiar com a subtileza que faltou a Phantom Thread (2017) e a sinceridade que faltou a Marriage Story (2019). Borat Subsequent Movie, importante pelo timing e pelas gargalhadas. Por fim, Mank, que não abdicou de ser um Fincher, apesar de engessado.
Ao olhar para o meu top 5 lembrei-me de outra fórmula truffautiana: tristesse sans fin des films sans femmes. Um brinde a Jessie Buckley, Amanda Seyfried, Julia Fox, Maria Bakalova e Carrie Coon. No final do dia, são elas que roubam o protagonismo em todos estes filmes. Le bonheur.

Bernardo Vaz de Castro
- Liberté de Albert Serra
- Malmkrog de Cristi Puiu
- La Gomera (A Ilha dos Silvos, 2019) de Corneliu Porumboiu
- Nanfang chezhan de juhui (O Lago dos Gansos Selvagens, 2019) de Diao Yi’nan
- O que arde (2019) de Oliver Laxe
- It Must Be Heaven de Elia Suleiman
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- O Fim do Mundo (2019) de Basil da Cunha
É certamente com alguma ironia que o título do meu filme favorito deste ano contraste tão em absoluto com a actual situação em que vivemos. “Liberté”, essa parangona a que muitos vulgarmente afirmam (re)conhecer somente quando esta termina, foi alvo de inúmeras atenções, lamentos, reivindicações e até a exigência de uma certa clandestinidade, mas importa lembrar que além dos constrangimentos sofridos a título individual, as instituições foram sujeitas à mesma lógica e, por isso, os cinemas enfrentam uma situação absolutamente dramática. Este ano assistimos a todo o tipo de medidas desesperadas – desde a tentativa de criar programações alternativas (é de salientar a resiliência do cinema Nimas), graças à escassez de estreias comerciais, ao aluguer de salas – tudo para contrariar um cenário catastrófico que muitos já afirmam como inevitável, o fecho permanente de grande parte das salas de cinema um pouco por todo o país. E importa frisar que a pandemia não colocou em causa apenas a manutenção de um circuito, mas veio acelerar um processo já em curso (graças à cultura nefasta da Netflix e da HBO) em que o cinema se vê também ele confinado ao espaço do ecrã de computador e da televisão em nossas casas. No entanto, há que salutar um aspecto profundamente positivo no meio de um ano tão conturbado, a disponibilização de uma série de filmes raros por parte de várias cinematecas mundiais (no qual destacaria a Cinemateca Francesa e a Cinemateca de Milão).
No entanto, quero aproveitar este pequeno texto para recordar ainda que, apesar dos interregnos e sucessivos adiamentos, 2020 poderia ter sido um ano pior do aquilo que realmente foi. Antes de uma passagem a pente fino pelas estreias deste ano, julguei que faria um top com 3 ou 4 filmes e, no entanto, acabo por destacar 8 filmes. Creio que dada a situação, parece-me positivo e sobretudo porque encerro o meu ano cinematográfico em sala com o meu segundo filme favorito deste ano. De facto, Liberté e Malmkrog são dois objectos ímpares quando comparo com os restantes títulos, contudo, cada filme ocupa um lugar particular porque encaro essa experiência como um acto de resistência e de anseio cinéfilo. Ver filmes este ano numa sala de cinema significou para mim, acima de tudo, uma possibilidade de vida, um pequeno momento de escape (mesmo que o uso obrigatório da máscara imponha a presença do real) e, por isso, talvez os recorde com uma certa importância (e alguns até me veja obrigado a reavaliar, como é o caso de O Lago dos Gansos Selvagens, onde após alguma reflexão sobre o filme, concluí que gosto mais dele agora do que no momento em que o vi; ou ainda, apesar do academismo de Sciamma, o Retrato da Rapariga em Chamas, é um filme particularmente tocante e sobretudo importante, porque pensa o desejo feminino numa época em que às mulheres estava vedada qualquer possibilidade). Encerro com uma última nota graças à presença do filme do Basil da Cunha no meu top para destacar um certo episódio invulgar na história da exibição cinematográfica em Portugal, que foi a presença de diversos títulos portugueses nas salas de cinema após o desconfinamento e que a meu ver deveria continuar, porque só há verdadeiramente cinema português se, além de maiores apoios económicos para a sua produção, depois também seja dado aos realizadores espaço expositivo para que esses filmes possam (sobre)viver além do circuito dos festivais e sobretudo possam criar um público.

Carlos Alberto Carrilho
- Liberté de Albert Serra
- Uncut Gems de Josh e Benny Safdie
- Malmkrog de Cristi Puiu
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- The Lighthouse (O Farol, 2019) de Robert Eggers
- Les Misérables (Os Miseráveis, 2019) de Ladj Ly
- A Vida Invisível (2019) de Karim Aïnouz
- Jessica Forever (2018) de Caroline Poggi, Jonathan Vinel
- Le sel des larmes (O Sal das Lágrimas, 2020) de Philippe Garrel
- Richard Jewell de Clint Eastwood
E ainda dez séries de televisão, sem ordem de preferência, que nos compeliram a olhar para o mundo durante o tempo interminável que ficamos confinados ao espaço doméstico, enquanto ansiávamos pelos desenvolvimentos da pandemia e pela derrota eleitoral de Donald Trump: Servant (Tony Basgallop, M. Night Shyamalan 2019– ), Ratched (Evan Romansky, Ryan Murphy, 2020– ), Babylon Berlin (Tom Tykwer, Achim von Borries, Hendrik Handloegten, 2017– ), The Mandalorian (Jon Favreau, 2019– ), Kingdom (Kim Eun-hee, Kim Seong-hun 2019– ), The Haunting of Bly Manor (Mike Flanagan, 2020), Raised by Wolves (Aaron Guzikowski, Ridley Scott, 2020– ), Devs (Alex Garland, 2020), Mrs. America (Dahvi Waller, 2020), The Plot Against America (David Simon, Ed Burns, 2020).

Carlos Natálio
- Uncut Gems de Josh e Benny Safdie
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- It Must Be Heaven de Elia Suleiman
- O Fim do Mundo de Basil da Cunha
- Le sel des larmes de Phillipe Garrel
- Little Women (Mulherzinhas, 2019) de Greta Gerwig
- Borat Subsequent Moviefilm de Jason Woliner
- O que arde de Oliver Laxe
- Honeyland (Honeyland – A Terra do Mel, 2019) de Tamara Kotevska, Ljubomir Stefanov
- The Devil All the Time (2020) de Antonio Campos
2020: Annus horribilis, a dias do ano novo que não saberemos se nos trará o velho normal ou dará continuidade ao novo normal de toupeira. As estreias ressentiram-se, os filmes pararam, os festivais digitalizaram-se, as plataformas digitais foram bóia de salvação em vários casos. Dois dos filmes que estão no meu top permitem, de formas diferentes, escapar da caverna para o exterior. Por um lado, o frenesim dos irmãos Safdie que apanha cada vez melhor a nossa condição ratinho a rolar na roda gigante – isto enquanto faz um filme de gangsters e uma comédia e um filme de aventuras e uma pipoca entre vidros, portas, passagens, sempre agridoce e colorida. Por outro lado, Garrel voltando ao toque, à presença do corpo e dos amores, como se falasse de um passado, jogando a arte das combinações, cortando à faca o preconceito moral. O filme de Suleiman também nos fala de ritmos e da sua dessincronia geracional, pena que seja um tudo ou nada cerebral. (Havia que se fazer o raccord da cena de discoteca de Garrel com o do cineasta israelita: curiosamente é o mais novo que mais se filma de fora.) Dois filmes belíssimos sobre o casamento como lâmina na garganta: o amor pictural e de flama de Sciamma e o desarranjo emancipador que Greta Gerwig operou nas piquenas mulherzinhas de Alcott. A bomba nacional foi a frescura do cinema de Basil da Cunha, uncut gem da reboleira. Cabem ainda dois filmes de “viagem”: a Galiza que arde (e o cinema que de lá vem tem-me feito arder os olhos, Laxe foi o que descobri por ultimo depois de Enciso e Patiño); e o mel das Montanhas da Macedónia, um lugar distante, menos pela geografia e mais pela profundidade da apicultora apanhada na colmeia de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov. Finalmente, os marotos dos americanos. Um filme à imagem da queda de Trump – Sacha Baron Cohen é substancialmente mais perverso do que Michael Moore – e um filme à imagem da santidade violenta que faz do império yankee um castelo de cartas a cair ao som da bíblia e dos mores. Desilusões: Reygadas, Coppola, a filha (que coisinha mais burguesita e enervante), Jessica Hausner, Leigh Whannell, Spike Lee. Em falta: demasiados.

Daniela Rôla
- The Nest de Sean Durkin
- Lovers Rock de Steve McQueen
- Nuestro tiempo de Carlos Reygadas
- Richard Jewell de Clint Eastwood
- J’accuse de Roman Polanski
- Dark Waters (Dark Waters – Verdade Envenenada, 2019) de Todd Haynes
- On the Rocks (2020) de Sofia Coppola
- O Fim do Mundo de Basil da Cunha
- Honeyland de Tamara Kotevska, Ljubomir Stefanov
- Le sel des larmes de Philippe Garrel
Menções honrosas: Little Women de Greta Gerwig, Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma, A Dog Called Money de Seamus Murphy, A Hidden Life (Uma Vida Escondida, 2019) de Terrence Malick, Little Joe (A Flor da Felicidade, 2019) de Jessica Hausner, The Farewell (A Despedida, 2019) de Lulu Wang, O Lago dos Gansos Selvagens de Diao Yi’nan.
Esta é uma lista tomada por dois tipos de filmes: os filmes das causas e os filmes das coisas (toda aquela amálgama de coisas que complicam qualquer relação – de amor, de família, de vizinhança, de amizade). E às vezes as causas e as coisas misturam-se, como sucede nos títulos que figuram nos dois primeiros lugares.
O meu ano de cinema começou há 100 anos, numa sessão da Cinemateca no início de Janeiro, com a descoberta de uma pérola de 1920 do génio Lubitsch, Romeo und Julia im Schnee. Entretanto era já Março e não imaginava que Nanfang chezhan de juhui, filmado numa Wuhan de néon, seria o último filme que veria em sala sem ter que usar uma máscara. O primeiro texto que deveria ter escrito para o À Pala de Walsh teria sido sobre um filme que tinha estreia em sala marcada para Abril e que afinal nunca chegou a estrear.
Apesar de ser um ano curto, 2020 fez-se também de outras belas descobertas em sala, entre a Cinemateca, o Nimas, a Casa da Música e o Close-up de Famalicão – o já mencionado Romeo und Julia im Schnee (1920) de Ernst Lubitsch, Gardiens de phare (1929) de Jean Grémillon, The Other (O Outro, 1972) de Robert Mulligan, Shoes (1916) de Lois Weber, Dance, Girl, Dance (1940) de Dorothy Arzner, Roy Del Ruth, J’accuse (1919) de Abel Gance e The River (1928) de Frank Borzage. E, como não podia deixar de ser, a lista dos melhores do ano coexiste com uma lista bem longa de filmes vistos em casa, entre diversos miniciclos e revisitações. O meu “Top do Confinamento” incluirá Breezy (Ontem ao Fim do Dia, 1973) de Clint Eastwood, Comizi d’amore (1964) de Pier Paolo Pasolini, Trois places pour le 26 (1988) de Jacques Demy, La moustache (Amor Suspeito, 2005) de Emmanuel Carrère, The Swimmer (Mergulho no Passado, 1968) de Frank Perry e Sydney Pollack, Love and Pain and the Whole Damn Thing (Amor e Sofrimento, 1973) de Alan J. Pakula, The Best of Everything (Desejo de Amor, 1959) de Jean Negulesco e Loving (Traições, 1970) de Irvin Kershner. E devo ainda mencionar dois magníficos objectos cinematográficos feitos para televisão – Acht Stunden sind kein Tag (Eight Hours Don’t Make a Day, 1972) de Rainer Werner Fassbinder e Small Axe (2020) de Steve McQueen.

Duarte Mata
- It Must Be Heaven de Elia Suleiman
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- Le sel des larmes de Phillipe Garrel
- Gabriel e a Montanha (2017) de Fellipe Barbosa
- The Invisible Man (O Homem Invisível, 2020) de Leigh Whannell
- The Lighthouse de Robert Eggers
- Richard Jewell de Clint Eastwood
- J’accuse de Roman Polanski
- Letter to You (2020) de Thom Zimny
- Borat Subsequent Moviefilm de Jason Woliner
Por uma questão de concisão textual, desrespeito a ordem da minha lista para justificá-la. Comecemos pelos veteranos. Um Polanski rigoroso (e de grande maturidade), um Eastwood doce (e de herói capriano), um Garrel depuradíssimo (e de murro no estômago), todos eles foram óptimos reencontros com os colossos da arte cinematográfica que sigo há anos. Mas foi também o primeiro contacto com uma série de cineastas que ainda não conhecia que me faz estimar enormemente o cinema de 2020: o ballet burlesco, urbano e pitoresco coreografado por esse Tati palestiniano que é Elia Suleiman, a história de amor trágica urdida pela tecedeira do raccord e do plano chamada Céline Sciamma, a monomania turística auto-aniquiladora – que originou um Into the Wild (O Lado Selvagem, 2007) em (muito) bom – de Fellipe Barbosa, e a paranóia do espaço negativo como alegoria para a violência doméstica criada por Leigh Whannell. Falta falar de 3: Robbert Eggers (cujo filme anterior não me tinha suscitado entusiasmo) a criar uma experiência atmosférica, claustrofóbica e alucinatória de imagens e sons com o seu mito de Prometeu náutico, Sacha Baron Cohen (que, mesmo não sendo o realizador, é o verdadeiro autor de Borat) a mostrar que até mesmo num ano tão triste como este é possível rir até às lágrimas, e Thom Zimny a ajudar Bruce Springsteen na construção de mais um capítulo da sua fase crepuscular, resultando um bonito filme sobre a vida, a morte, a amizade, o envelhecimento, o trabalho de equipa e o processo criativo, tudo isto ao som do seu melhor álbum em mais de 20 ou 30 anos. Boas festas.

Francisco Noronha
- Richard Jewell de Clint Eastwood
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- Roubaix, une lumière (Roubaix, Misericórdia, 2019) de Arnaud Desplechin
- Le sel des larmes de Philippe Garrel
- Les plus belles années d’une vie (Os Melhores Anos de Uma Vida, 2019) de Claude Lelouch
- The Nest de Sean Durkin
- Ordem Moral (2020) de Mário Barroso
- O Fim do Mundo de Basil da Cunha
- J’accuse de Roman Polanski
- Pinocchio (Pinóquio, 2019) de Matteo Garrone
Na sua falsa simplicidade, na sua aparente ultra-modéstia, Richard Jewell é capaz de ser um dos filmes mais complexos de Clint Eastwood dos últimos 20 anos. O mais intrincado, a anos-luz, que tive de oportunidade de ver este ano em sala – contrariando os critérios definidos pela editoria da casa, a minha lista contempla deliberadamente apenas filmes estreados no lugar onde eles devem ser vistos. Não vale a pena tecermos loas ao cinema como “experiência colectiva”, “ponto de encontro e partilha”, e ao grande ecrã como “o lugar a que o cinema pertence” se depois aceitamos passivamente – ou até activamente, no caso – à desmantelação de tais ideias mesmo em frente aos nossos olhos. E não se trata apenas de um gesto simbólico – ou achar-se-á mesmo que as Netflix e afins não esfregam as mãos de contentes quando vêem publicações prestigiadas incluírem os seus filmes nas listas do ano, passando, acto contínuo, a mencionar esse facto nas campanhas de promoção dos filmes (a partir daí se criando acumulativamente redes de interesses e promiscuidades que só acrescentam força e capacidade de lobbying às plataformas)? Se não os podes vencer, não te juntes mesmo a eles; não é embirração ou ingenuidade, antes o conservar, na medida da nossa pequena mas vertical capacidade, de uma convicção, um pacto, um amor. Sim, no diminuto poder que nos assiste de boicotar a voracidade omnívora e homogeneizante do streaming, boicotemos, pois claro. Ou, então, relativize-se mesmo tudo e, no limite, se daqui a 20 anos as salas desaparecerem de vez e só houver streamings para cada um ver no seu buraco, também “está tudo bem”. 2020: um ano estranhíssimo por razões óbvias e no qual, mal-grado ter mantido um elevado visionamento de filmes em sala, o panorama de estreias que consegui apanhar se apresentou francamente pobre.
E eis Richard Jewell no meio disso tudo como um autêntico oásis – ou deserto, não sabemos nunca ao certo, o filme está sempre a virar o bico ao prego, objecto cubista permanentemente formulando questões, respostas e contra-questões políticas e ideológicas [os EUA e o significado da liberdade, o virtuosismo patriótico das forças de segurança e a corrupção e a privacidade, o “bem da nação” e o individualismo, a cena das armas no quarto do patético Jewell que me parece ser a redenção de Eastwood da das gunsas kid’s best friend em The 15:17 to Paris (2018); sendo tudo isto que acabo de enunciar assaz exíguo para a gigantesca massa problematizante em que o filme se constitui], axiomas e contradições (se não insanáveis, perto disso) a cada plano, sequência, a cada diálogo. Um filme de uma dialéctica exemplar que, ao jeito socrático, nos interpela a todo o momento no caminho de descoberta da verdade (a do “V” maiúsculo, não a do autor do atentado…) e que deveria integrar a formação dos funcionários de qualquer instituição pública (a começar nas escolas e a acabar no SEF). Saber que o advogado de Jewell (interpretado por Matthew McConaughey) corresponde, na vida real, a L. Lin Wood, cretino circense (com todo o respeito que as ditas artes me merecem) que tem feito parte da imundície trumpista do “Stop the Steal” só torna tudo mais rico e perturbante. Única reserva: a história muito mal contada por Eastwood para justificar o facto de, no filme, ter colocado a jornalista Kathy Scruggs (Olivia Wilde) a fazer uma troca win-win (i.é, sexo-informação) com um agente do FBI – algo sem sustentação factual e a que Scruggs, que já cá não mora, nunca poderá responder. Chama-se honra – aquilo que Eastwood talvez mais tenha enaltecido ao longo da sua obra…

Inês N. Lourenço
- Malmkrog de Cristi Puiu
- It Must Be Heaven de Elia Suleiman
- Dark Waters de Todd Haynes
- Richard Jewell de Clint Eastwood
- Lovers Rock de Steve McQueen
- The Nest de Sean Durkin
- Nanfang chezhan de juhui de Diao Yi’nan
- Soul (Uma Aventura com Alma, 2020) de Pete Docter, Kemp Powers
- Little Joe de Jessica Hausner
- Da 5 Bloods (Irmãos de Armas, 2020) de Spike Lee
É curioso que este ano inevitavelmente carimbado de atípico tenha começado e acabado, para mim, com os melhores presságios de cinema. Lembro-me de pensar que as estreias seguidas de Richard Jewell e Dark Waters, em Janeiro, tinham algo de boost logo no arranque de 2020. Mentalmente, já sabia que iriam estar na listinha. Depois do início da pandemia, houve um ou outro momento que me causou pele de galinha – rever Little Joe, descobrir The Nest… -, e chegada à recta final levei outro banho de auspícios. Entenda-se por auspícios Malmkrog, Lovers Rock e a animação Soul. O que, devo dizer, me deixa com o espírito confiante, embora cauteloso, em relação ao que está para vir. Não sou da espécie mais optimista que anda por aí, mas não deixo de recordar a primeira sessão em Lisboa de It Must Be Heaven, com a presença de Elia Suleiman, em que ele disse qualquer coisa sobre a esperança que o tinha invadido ao ver aqueles jovens a dançar na última cena do filme, deixando à audiência o conselho de, ao sairmos da sala, irmos por aí fora amar (ainda estávamos em 2019, LEFFEST; o filme estreou já em 2020). Não me lembro de nada mais bonito. E, sim, é também um dos títulos do (meu) ano.

João Araújo
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- A Hidden Life (Uma Vida Escondida, 2019) de Terrence Malick
- Nuestro tiempo de Carlos Reygadas
- Lovers Rock de Steve McQueen
- Uncut Gems de Josh e Benny Safdie
- Nanfang chezhan de juhui de Diao Yi’nan
- The Nest de Sean Durkin
- Honeyland de Tamara Kotevska, Ljubomir Stefanov
- O Que Arde de Oliver Laxe
- The Invisible Man de Leigh Whannell
Menções honrosas: Ne croyez surtout pas que je hurle (2019) de Frank Beauvais, Mangrove (2020) de Steve McQueen, Red, White and Blue (2020) de Steve McQueen, Borat Subsequent Moviefilm de Jason Woliner, A Story from Africa (2019) de Billy Woodberry, I’m Thinking of Ending Things de Charlie Kaufman, The Farewell de Lulu Wang, Da 5 Bloods de Spike Lee, Capital in the Twenty-First Century (O Capital no Século XXI, 2019) de Justin Pemberton, Mosquito (2020) de João Nuno Pinto e It Must Be Heaven de Elia Suleiman.
O que dizer de 2020, o ano que tudo alterou e deixou em suspenso? Primeiro, que este não seria o cenário apocalíptico esperado depois das fantasias de catástrofes Hollywoodianas – excepto, claro, para Steven Soderbergh. Que afinal a ameaça seria uma pandemia de desgaste lento, em que o perigo maior é a sua invisibilidade, os assimptomáticos, uma taxa de internamento e mortalidade suficiente para ser devastadora e ao mesmo tempo encorajar tolos e ignorantes com as suas verdades alternativas. Que afinal os dilemas morais não seriam sobre até que ponto esconder do resto do grupo que fomos mordidos por um zombie, mas sim convencer pessoas a usar máscaras e manter a distância social. Que o ano que parecia um filme até começou com Gisaengchung (Parasitas, 2019) a vencer o prémio principal dos Óscares. No meio de tudo isto, o cinema pode parecer menos importante, mas algo que ficou claro nestes tempos foi a afirmação da cultura como um bem essencial, de primeira ordem, para ultrapassar os dias-meses, quer seja na sua forma escapista, quer seja no retrato da realidade. Quer seja o duro vertiginoso e claustrofóbico Uncut Gems, quer sejam os poemas-odes ao cinema sensorial de Steve McQueen e Carlos Reygadas, quer sejam as histórias de amor interrompido e vidas apagadas de A Hidden Life e Portrait de la jeune fille en feu, dois retratos sublimes de como perante a adversidade, a tristeza e a escuridão, a luz acaba por se impor, resiste a tudo, nem que seja nas memórias – que, ao recordar 2020, nos lembremos também de alguns destes filmes.

João Lameira
- J’accuse de Roman Polanski
- Turdus merula Linnaeus, 1758 (2020) de João Pedro Rodrigues
- Uncut Gems de Josh e Benny Safdie
- Little Women de Greta Gerwig
- The Invisible Man de Leigh Whannell
- Richard Jewell de Clint Eastwood
O ano prometia. Logo nos dois primeiros meses, vi quatro filmes de que gostei muito: o maldito J’accuse à cabeça (grande, grande filme), Uncut Gems, Little Women e Richard Jewell (três deles no cinema, os que pude). Mantendo a média, 2020 acabaria com vinte e quatro filmes de entre os quais seria complicadíssimo escolher os dez predilectos. Não preciso de referir o que aconteceu ali por volta de fins de Fevereiro e me reduziu a lista a seis. Na verdade, vi mais do que estes, poucos mais, os suficientes para completá-la. Não merecem é constar como melhores de coisa alguma. Tecnicamente, Tenet (2020) será o meu sétimo ou oitavo filme preferido de 2020, mas não faria sentido incluí-lo, apesar de ser uma embrulhada tão confusa e incompreensível que chega a divertir. Ainda me arriscava a ter de enfiar o murchíssimo Da 5 Bloods lá pelo meio.
Assim, a minha lista preserva um 2020 abruptamente findado em Fevereiro, resultado de qualquer evento apocalíptico. (E não foi mais ou menos isso que aconteceu?) Mesmo as excepções — Turdus merula Linnaeus, 1758, pequena obra-prima feita como quem não quer a coisa, e The Invisible Man, inteligente variação do romance de H. G. Wells — são filmes de quarentena, enclausurados, muito apropriadamente vistos em casa, longe do mundo. Nos meses subsequentes, ficou muito por ver (no cinema e no televisor): Portrait de la jeune fille en feu, The King of Staten Island (O Rei de Staten Island, 2020), I’m Thinking of Ending Things, Le sel des larmes, The Personal History of David Copperfield (A Vida Extraordinária de David Copperfield, 2019), Mank, On the Rocks, os telefilmes de Steve McQueen. Talvez devesse tentar explicar porquê. Sinceramente, não sei. Só reparei agora.

Luís Mendonça
- Uncut Gems de Josh e Benny Safdie
- A Hidden Life de Terrence Malick
- Été 85 (Verão de 85, 2020) de François Ozon
- Lovers Rock de Steve McQueen
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- Red, White and Blue de Steve McQueen
- Tenet de Christopher Nolan
- The Invisible Man de Leigh Whannell
- On the Rocks de Sofia Coppola
- The Nest de Sean Durkin
Saí de Uncut Gems como se tivesse atravessado, a correr sem parar, uma tragédia que vai girando até culminar numa grande explosão. É pura energia cinética e, subcutaneamente, uma espécie de Shakespeare pastilhado – acho que escrevi algo parecido a propósito do thriller Good Time (2017), obra que tivemos a possibilidade de ver onde este cinema verdadeiramente se cumpre visual e sonicamente, isto é, no grande ecrã. Uncut Gems é uma viagem que dificilmente encontra rival (fora do universo Safdie) em anos recentes no que diz respeito à sua capacidade para nos “fazer suar” o espírito – se Woody Allen e Abel Ferrara tivessem um filho, seria uma gem assim. Ao mesmo tempo, senti-me verdadeiramente arrebatado em A Hidden Life, filme-catedral onde se gira, mas onde vamos ascendendo numa celebração dos céus perpassada por um inebriante cheiro a húmus. É uma obra de puro movimento, volúpia cinematográfica que atravessamos com todos os sentidos, como num imenso filme-rio – obra que entende a montagem sem sentidos fixos, como que actualizando, desalegorizando ou tornando puramente sensuais (e religiosas), as velhas lições dos soviéticos, de Eisenstein a Dovzhenko. Por fim, para completar o pódio, queria destacar o filme que me seduziu pela sua inteligência, pelo seu mind game muito perverso e francamente divertido. Falo de Été 85, mais um filme “de palmaniano” de Ozon [lembram-se do fabuloso L’amant double (O Amante Duplo, 2017)?], que torce as expectativas contidas na superfície das imagens, transformando-se lentamente num bem negro Alfred Hitchcock – se estão à espera de um novo Summer of ’42 (Verão 42, 1971) ou, mais ainda, de uma variante sobre Call Me By Your Name (Chama-me Pelo Teu Nome, 2017), levarão, na realidade, com uma espécie de Rebecca (1940) soalheiro, estilo “catálogo Benetton” cheirando intensamente a cadáver. Deliciosas traições, hem?
Destacados os três primeiros – que mexeram comigo de uma maneira muito particular -, devo dizer que Lovers Rock é – logo depois dos Safdie – das experiências mais puramente cinemáticas que tive este ano – e aconteceu no “pequeno ecrã”. Um elegantíssimo filme preso aos corpos, à sua respiração e transpiração, como já não via há muito – um cocktail romântico ao nível do melhor Wong Kar-wai. Estes quatro primeiros filmes fazem 2020 ter valido muito a pena, apesar da dificuldade grande que foi o ano em geral.
Resumidamente, queria exaltar ainda a graciosidade do belíssimo Portrait de la Jeune Fille en Feu de Céline Sciamma, a solidez “à americana” (lumetiana) de Red, White and Blue do “de novo inglês” Steve McQueen, a engenhosidade e o espectáculo de Tenet, a câmara e o thriller old school preparado em The Invisible Man (de um realizador da “escola James Wan”, Leigh Whannell, que superou as minhas expectativas, sendo este “a surpresa do ano” para mim), a graça infinita e as ternas lições de On the Rocks (uma Sofia Coppola falsamente ligeira e um Bill Murray falsamente engraçadinho que é, claro, irresistível), o drama adulto, “de personagens”, realizado por Sean Durkin, The Nest, e – perdão, um décimo primeiro elemento que queria citar, tal a dificuldade que senti por deixá-lo de fora – a força furiosa dos rostos de Mangrove, terceiro McQueen da mini-série Small Axe que aqui quero destacar.
Termino dizendo que neste ano difícil vi somente (?) 40 filmes elegíveis, ficando alguns por ver que, sinto, poderiam ter uma palavra séria a dizer caso tivesse conseguido vê-los, tais como os últimos de Elia Suleiman e, com alguma diferença sobre o palestiniano que costumo adorar, de Charlie Kaufman, de Cristi Puiu, de Carlos Reygadas e de Arnaud Desplechin (sim, filhos, vi os últimos de Serra, Eastwood, Garrel, Fincher, Polanski… sim, não há filmes portugueses na lista… sim a isso tudo). E – nota, como devem imaginar, muito importante – ainda me faltou ver os últimos dois filmes de McQueen para Small Axe. Sabem uma coisa? Apesar de tudo, repito, apesar de tudo, estou contente com este 2020 cinéfilo, com o que me ofereceu e com o que me guarda para descobrir e redescobrir no futuro.

Paulo Cunha
- República (2020) de Grace Passô
- Malmkrog de Cristi Puiu
- Nuestro tiempo de Carlos Reygadas
- Surdina (2019) de Rodrigo Areias
- O que arde de Oliver Laxe
- Om det oändliga (Da Eternidade, 2019) de Roy Andersson
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- Adam (2019) de Maryam Touzani
- Ruby (2019) de Mariana Gaivão
- Diego Maradona
Passou mais um ano em que uma parte significativa dos filmes preferidos não foram tiveram estreia comercial. A pandemia fechou as salas durante grande parte do ano, mas ainda consegui ver filmes incríveis no Curtas, no Indie e CineEco, os festivais onde pude estar presente fisicamente. Mas o meu filme preferido do ano ainda não o vi em sala: realizado e interpretado pela talentosa Grace Passô, República é o filme do ano, uma obra feita em sua casa que nos desafia a pensar sobre o futuro, do Brasil (e do mundo) e do cinema.

Raquel Morais
- La France contre les robots (2020) de Jean-Marie Straub
- República de Grace Passô
- In my Room (2020) de Mati Diop
- The Giverny Document (2019) de Ja’Tovia Gary
- Ghost Strata (2019) de Ben Rivers
- The Grand Bizarre (2018) de Jodi Mack
- Delphine et Carole (2019) de Callisto McNulty
- Ne croyez surtout pas que je hurle (2019) de Frank Beauvais
- Labour Power Plant (2019) de Romana Schmalisch e Robert Schlicht
- Un film dramatique (2019) de Éric Baudelaire
Desconsola-me a ideia de escolher os melhores filmes do ano, triste mundo da competição. Ainda que cheia de autores, esta lista é sobretudo feita de diferentes formas de isolamento, mas também de cooperação: roubos, empréstimos, conversas, variações. A minha lista, como a vida no Inverno, move-se do filme mais curto para o mais longo. Dela constam apenas obras que vi online – página do artista (The Giverny Document), da produtora (La France contre les robots), website do Instituto Moreira Salles (República), da Prada (In my Room), no programa digital do Arsenal (Labour Power Plant), e nas plataformas de streaming Filmin (Delphine et Carole) e MUBI (os restantes). Apesar de ter podido sentar-me em algumas salas de cinema nos primeiros e nos últimos meses do ano, foi a casa que chegaram as novidades. Contrário ao sossego do quarto foi o tumulto que se viu pelas janelas e a minha lista dá conta de um mundo há muito alvoraçado.
Straub traz-nos uma marcha em torno do lago, Bernanos maldizendo os demónios da tecnologia, inimiga da liberdade; em República, encontramos um país fechado em casa, explodindo rumo à rua – Brasil em transe, visto pela lente da actriz; a Diop encomendaram um filme de quarentena, que recupera registos áudio da avó e redescreve a importância de ter um quarto; Gary cruza Nina Simone, Claude Monet e entrevistas de rua sobre o corpo feminino e negro, num ano de ameaças; o filme de Rivers olha para a história e para o tempo como processos de sedimentação, acumulação de narrativas e responsabilidades; o festim visual animado por Mack leva-nos por um mundo onde os têxteis revelam relações económicas e culturais; McNulty recupera a Seyrig agitadora e feminista, dos colectivos e do Mouvement de libération des femmes; com imagens de filmes alheios, Beauvais compôs um Frankenstein pessoal, catártico e frenético. Schmalisch e Schlicht respondem indirectamente a Straub e Bernanos, numa representação distópica de modos de trabalho e produção; Baudelaire traz-nos um projecto desenvolvido com uma turma dos subúrbios de Paris, onde se desarruma os lugares do aluno e do professor, de quem faz e de quem vê as imagens.

Ricardo Gross
- Nuestro tiempo de Carlos Reygadas
- Martin Eden (2019) de Pietro Marcello
- Roubaix, une lumière de Arnaud Desplechin
- Liberté de Albert Serra
- Uncut Gems de Josh e Benny Safdie
- J’accuse de Roman Polanski
- It Must Be Heaven de Elia Suleiman
- A Cidade onde Envelheço (2016) de Marília Rocha
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- Dark Waters de Todd Haynes
Foi um ano mau (péssimo) para quase tudo, o cinema não foi excepção. Salas encerradas, migração de filmes para plataformas de streaming, meses sem estreias e títulos despejados sem critério para ocupar cinemas vazios. Aplaudo a insistência dos festivais que se dobraram às regras de segurança e saúde, e que tiveram edições físicas a que o público disse presente. Preocupa-me que o cinema possa ser olhado novamente como curiosidade de feira, e que ao abrir os jornais (até quando haverão jornais?) me veja perante textos sobre filmes novos que cada qual irá ver por si em sua casa, no ecrã do plasma ou no computador. Sou da opinião que o que faz de um filme cinema, será menos a linguagem visual e sonora que o constitui, e mais o modo mecânico ou digital que conduz a que seja por nós percepcionado, numa tela de projecção que nos torna maiores do que somos e nos obriga a olhar para cima. Espero que continuemos a ver filmes desta forma, e não apenas em festivais, ou em salas de cinema de autor e retrospectivas. A actualidade do cinema, que sempre privilegiei relativamente à sua memória (também ela fundamental), faz-se com os filmes do presente, e de todas as geografias, e com a prática social de frequentar as várias salas de cinema. Oxalá haja muita gente como eu que quer os cinemas que tinha em 2019. E então que 2021 seja o prolongamento dessa memória recente. Uma imagem que este ano não pode esfriar até se tornar uma realidade residual.

Ricardo Vieira Lisboa
- It Must Be Heaven de Elia Suleiman
- Forensickness (2020) de Chloé Galibert-Laîné
- Ne croyez surtout pas que je hurle de Frank Beauvais
- Freaky (No Corpo de um Assassino, 2020) de Christopher B. Landon
- Turdus merula Linnaeus, 1758 de João Pedro Rodrigues
- The Invisible Man de Leigh Whannell
- Sete Anos em Maio (2019) de Affonso Uchoa
- Richard Jewell de Clint Eastwood
- The Grand Bizarre (2018) de Jodi Mack
- A Rosa Azul de Novalis (2019) de Gustavo Vinagre e Rodrigo Carneiro
A cena final de It Must Be Heaven levou-me às lágrimas: jovens a dançar, a divertirem, a apaixonarem-se (visto por um velho embevecido). Forensickness foi o mais estimulante (vídeo-)ensaio que vi sobre o cinema e sobre a contemporaneidade. O filme de Frank Beauvais é o melhor filme de quarentena, antes dela se ter tornado obrigatória. O novo filme do realizador de Happy Death Day (Feliz Dia para Morrer, 2017) é uma deliciosa paródia ao slasher a partir dos “problemas de género” butlerianos. Os melros de João Pedro Rodrigues trouxeram a esperança quando o confinamento deixou de ter graça. The Invisible Man teve a energia lúdica dos primeiros dias de retenção doméstica. Sete Anos em Maio é o melhor filme que vi em 2019, mas que só esteve disponível este ano, para todo o espectador português, a partir da MUBI (assim como o filme de Beauvais, Mack e Vinagre-Carneiro). Richard Jewell é o retrato de um homem bom, e isso basta. The Grand Bizarre mapeia, nas malhas e nos caminhos, as cores da vivacidade. A Rosa Azul de Novalis teria que ser o décimo filme, porque no fim de todas as coisas está um olho do cu. Pum!

Samuel Andrade
- Uncut Gems de Josh e Benny Safdie
- The Lighthouse de Robert Eggers
- Martin Eden de Pietro Marcello
- Mosquito de João Nuno Pinto
- O que arde de Oliver Laxe
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- A Hidden Life de Terrence Malick
- It Must Be Heaven de Elia Suleiman
- Honeyland de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov
- The Devil All the Time de Antonio Campos
Frenético, imprevisível e implacável: quão irónico será que o (meu) melhor filme do ano, lançado por cá ainda estávamos em Janeiro e apenas com “honras” de streaming, semi-profetizou alguns dos sentimentos que guiariam a humanidade ao longo deste “pandémico 2020”? Tal paralelismo, admito, soa a forçado. Contudo, também é inegável que todos vivemos, durante os últimos nove meses, num estado semelhante ao do errático Howard Ratner (encarnado por Adam Sandler, a evidenciar que há actor a circular nas suas veias): em constantes planeamentos que as circunstâncias irão furar, em antecipar factos que não terão efeitos práticos e, enquanto espectadores, a adoptar irremediavelmente os ambientes digitais como meio de consumo de cinema. Não obstante, Uncut Gems é a melhor estreia do ano pelos seus próprios méritos – um exercício de cinema sensorial e ofegante, potenciado pela rugosidade da película de 35mm, onde a esfera (i)moral do seu argumento (versando sobre capitalismo galopante, cultura de celebridade, crises de fé, valores familiares e sistemas políticos titubeantes) serve de cautionary tale para os estranhos tempos que atravessamos.
Para além destes dez títulos, e do cinema que me foi possível espreitar em 2000, também ficaram na memória (sem ordem em particular) títulos como Lovers Rock, The Nest, The Cave (2019, de Feras Fayyad), Richard Jewell, Nuestro tiempo, O Fim do Mundo, The Invisible Man, Om det oändliga, David Byrne’s American Utopia (2020, de Spike Lee) ou Le daim (100% Camurça, 2019, de Quentin Dupieux).

Vasco Baptista Marques
- Malmkrog de Cristi Puiu
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- J’accuse de Roman Polanski
- Gabriel e a Montanha de Fellipe Barbosa
- It Must Be Heaven de Elia Suleiman
- Richard Jewell de Clint Eastwood
- Casa Grande (2014) Fellipe Barbosa
- Uncut Gems de Josh e Benny Safdie
- The King of Staten Island de Judd Apatow
- Les Misérables de Ladj Ly
Num ano em que foi difícil – por vezes, mesmo impossível – ver filmes em sala, muito se falou e se escreveu acerca das plataformas de streaming como o lugar inevitável do “cinema do futuro”. A confirmar-se esse vaticínio, estou em crer que será um triste futuro. Desde logo porque, na sua vasta maioria, as plataformas de streaming são um pouco como os aeroportos: lugares de passagem, isentos de memória (e basta percorrer os seus catálogos para perceber que assim é), onde, na ausência de qualquer trabalho de programação, se amontoam filmes indistintos, destinados a satisfazer uma espécie de consumidor modelo – aquele que, exausto, procura ao chegar a casa qualquer coisa que lhe ofereça um máximo de alívio com um mínimo de esforço. Num futuro em que o cinema se encontrasse reduzido a “isto”, seria certamente muito difícil – se não mesmo impossível – ver um filme como aquele que elegemos como o melhor deste ano (Malmkrog) em qualquer outro sítio que não um festival. Mas, neste caso – como em tantos outros -, o cinema é somente uma ínfima parte de um problema mais lato, e cada vez mais evidente: o da aceleração progressiva do ritmo da vida social (e cultural), que tende a tragar tudo o que não se preste a um consumo rápido.

Vitor Ribeiro
- Liberté de Albert Serra
- Nuestro tiempo de Carlos Reygadas
- O Fim do Mundo de Basil da Cunha
- The Nest de Sean Durkin
- Roubaix, une lumière de Arnaud Desplechin
- J’accuse de Roman Polanski
- A Vida Invisível de Karim Aïnouz
- O que arde de Oliver Laxe
- Portrait de la jeune fille en feu de Céline Sciamma
- Give Me Liberty (Liberdade, 2019) de Kirill Mikhanovsky
Defini como critério a estreia em sala na elaboração desta lista. Num ano em que fomos privados da liberdade de ver e mostrar cinema, talvez seja ainda mais importante revelar estas listas, discuti-las. Liberté de Albert Serra foi um dos filmes que tivemos de esperar alguns meses para ver em sala: estreado em cima da rebentação da pandemia, já o vimos mascarados, o que acrescentou potência a um objecto, que o seu realizador definiu como um reservatório de liberdade, onde as libertinagens dos seus nobres são esticadas até os corpos colapsarem, num filme que é também sobre o acto de ver, de estarmos entre estranhos a olhar um ecrã, num jogo de dentro e fora, que por vezes coloca os personagens de Serra a olhar-nos: o voyeurismo é simétrico; a disputar o titulo de filme arrebatador do ano, a galáxia de Carlos Reygadas, reduzida ao núcleo conjugal e familiar, um cinema sempre a crescer, uma intimidade de paisagens humanas que tal como a herdade do México não define limites; Basil da Cunha chega-se à frente, dez anos de trabalho na Reboleira com personagens de visto universal; finalmente boas notícias de um dos rapazes da Borderline, Sean Surkin, quase dez anos depois de Martha Marcy May Marlene (2011); Desplechin deu-nos um comissário de polícia, que é o mais belo personagem de cinema deste ano e Polanski relembrou-nos o caso Dreyfus, como se fosse o seu caso; das Américas, um dia nas ruas de Milwaukee, paisagem de desigualdades por um norte-americano de origem russa e duas irmãs no Rio de Janeiro separadas pela condição e pelo tempo; são também duas mulheres apartadas por convenções que Céline Sciamma retrata; e, finalmente, espaço para uma das surpresas do ano, Oliver Laxe, paisagem, comunidade e a morrinha da Galiza. Se tudo parece empurrar-nos para a solidão do ecrã domiciliário, de televisão indigitada pelos gigantones dos streamings a tentar ser cinema, com estrelinhas nos jornais e tudo mais, o Cinema fará uso de uma das suas sete vidas para que nos reencontremos para vermos filmes juntos, rodeados de amigos e desconhecidos.