
Ao longo do mês de Novembros os walshianos foram escrevendo sobre algumas das estreias (tanto as físicas, nas salas, como as digitais, nas plataformas de streaming): Amor Fati (2020) de Cláudia Varejão, Listen (2020) de Ana Rocha de Sousa, The Nest (O Ninho, 2020) de Sean Durkin, On The Rocks (2020) de Sofia Coppola e The Trial of the Chicago 7 (2020) de Aaron Sorkin. Assim, servem estes comprimidos para repescar alguns dos outros títulos que destemidamente vêm sendo distribuídos nestes tempos de incerteza.

Como se vem tornado cada vez mais evidente no reino do cinema de terror e dos thrillers, cada filme constrói-se em redor de uma interrogação. Neste caso: e se transformássemos a pressão social imposta sobre os casais heterossexuais para o casamento, a compra de casa e a reprodução numa imposição sobrenatural? Como quase sempre também, estes filmes têm a pergunta e têm uma forte construção visual (neste caso, materializar uma espécie de fantasia infantil, com a casinha de brincar, o bairro de brincar, com a Barbie e o Ken obrigados a ser felizes). No entanto, quase nunca há algo além desse primeiro impulso. São filme que se constroem de cima para baixo e, como tal, desmoronam-se ruinosamente no terceiro acto. É o caso de Vivarium, que se delicia (e delicia o espectador), durante o primeiro quarto de hora, num perturbante american dream pré-fabricado que leva ao extremo plástico (nos dois sentidos) as cercas brancas, a relva impecavelmente aparada e a vida de subúrbio de Blue Velvet (Veludo Azul, 1986). Só que Lorcan Finnegan, o realizador-criança, não sabe o que fazer com estes playmobil e, numa tentativa tosca de enrolar a história e construir algo além do prazer estético, introduz uma dimensão sobrenatural/alienígena/paradoxo-espácio-temporal, que é como quem resmunga: não me apetece brincadeira mais, isto assim é muito chato, vamos pôr magias, e dragões e discos voadores. Finnegan diverte-se num universo por si erguido, mas cujas regras quebra à primeira oportunidade, o que faz com que Vivarium se torne num jogo-dos-pais-e-das-mães que se esgota mesmo antes de começar.
Ricardo Vieira Lisboa, 3 de Dezembro

Um tango argentino toca na trilha sonora, surge escrito numa tipografia clássica a palavra “Domingo”, o segundo plano do filme apresenta três personagens alcoolizados, deitados em espreguiçadeiras, junto à água, as crianças brincam e na primeira linha de diálogo ouve-se “que saudades tenho de Buenos Aires”. Só não percebe quem não quer: Domingo é uma espécie de remake brasileiro de La Ciénaga (O Pântano, 2001) de Lucrécia Martel em versão comédia sexual de (des)enganos – ou, mais do que um remake, uma colagem, já que a primeira versão do argumento data exactamente de 2004, quando o Novo Cinema Argentino começava a transformar-se em cânone da contemporaneidade. Aqui encontramos uma mesma burguesia decadente, o mesmo ambiente pantanoso (onde a piscina foi substituída pelo rio – mas onde a casa colonial se desfaz em caliça) e o mesmo conflito de classe entre a família rica e os criados (antes indígenas, agora negros). Mas onde La Ciénaga levantava já várias questões sobre a interiorização do colonialismo na sociedade argentina, que agora Zama (2017) ataca de frente, Domingo trabalha isso segundo o ponto de vista da política contemporânea brasileira: tudo se passa em 2003, no dia da tomada de posse de Lula da Silva. Era portanto para ser uma sátira (de inspirações buñuelianas) sobre o fim de uma época, ou início de uma outra, onde os antigos privilégios se democratizavam e já só restava o fogacho das aparências (cristalizado no baile de debutantes que encerra o filme). No entanto, por questões de produção, o filme só ficou pronto em 2018, o que lhe dá um sentido diametralmente oposto. Já não é a vingança do proletariado, tudo virou profecia negra sobre a ascensão do fascismo (o anti-petismo como ideologia dominante nas faixas da população mais ricas e com mais formação superior). Fica-me a voz de Lula, no seu discurso de tomada de posse, feita assombração do conturbado presente brasileiro.
Ricardo Vieira Lisboa, 3 de Dezembro

A terceira longa-metragem da jovem realizadora mexicana Lila Aviles, La Camarista, é um filme bastante delicado que trabalha de forma inteligente a narrativa com a subtileza de uma câmara que entende o espaço e as situações como forma de desenvolver o estado mental da sua protagonista (muitas vezes muda, e que quando fala não se alonga para além das banalidades do quotidiano). Este é o retrato de uma camareira de hotel de luxo, numa cidade mexicana, que passa os seus dias de quarto em quarto, lidando com os visitantes (mais ou menos presentes, mais ou menos desadequados), os colegas de trabalho e um serviço sem grandes perspetivas de futuro (ou com sonhos sucessivamente frustrados) e que sente perder a sua vida numa profissão que a afasta do seu filho (sempre invisível), da sua formação e da vida em si (já que as horas de trabalho a consomem integralmente). O que é surpreendente neste filme é o modo como a realizadora, integrando-se completamente numa produção contemporânea, tem a consciência da gramática do cinema clássico sempre presente. As quatro regras do cinema de Griffith, segundo alguns, é (1) claridade narrativa, (2) invisibilidade da montagem, (3) equilíbrio formal e (4) o enquadramento ajusta-se ao conteúdo da narração. Aviles segue estes mandamentos à risca, com uma enorme contenção dramática e espacial (o filme nunca sai do espaço do hotel – algo que o final literaliza). Mas se o tema poderia fazer lembrar outro filme doutra jovem realizadora, Hotel (2004) de Jessica Hausner, aqui não é a construção de uma atmosfera que impera, antes o arco emocional de Evelia e a sua consciencialização laboral: tudo consumado na cor vermelha (que outra?), a cor o sangue, da menstruação, a cor do luxo e do glamour, mas também a cor da revolução. Nesse pormenor La Camarista revela-se como fábula proletária.
Ricardo Vieira Lisboa, 3 de Dezembro