A partir do lema “as nossas histórias são reais”, o Porto/Post/Doc tem apresentado, ao longo de já 7 edições, uma programação coerente, convicta e de resistência, sem receio de arriscar em objectos mais estranhos ou menos conhecidos, e sempre com uma preocupação em mostrar novos talentos internacionais e trabalhos que incidam sobre a região em que se insere o festival. Esta programação, particularmente na competição internacional, tem explorado as diferentes formas do documentário, com especial atenção à fronteira entre o documentário e a ficção, zona que se revela interessante porque parte do princípio que ao documentário é associado uma certa credibilidade, uma aproximação à verdade. Esse conceito é depois questionado e abordado de diferentes formas, da maior objectividade à subjectividade total, diferentes permutações que o género tem conhecido mas que convergem para a máxima que, mesmo que as histórias sejam fabricadas, estas devem parecer verdade, e para isso basta que a realidade presente num documentário seja verossímil para o espectador, mesmo que longe de uma verdade objectiva [como tínhamos visto com o filme de Sarah Polley, Stories We Tell (2012)].
Precisamente sobre a verdade, no início de Sandlines (2019) de Francis Alÿs, uma frase aparece no ecrã: “Na guerra, a verdade é a primeira vítima”. O filme viaja para uma aldeia remota nas montanhas iraquianas onde não é sequer reconhecido o nome do país, de tal forma é esse um conceito abstracto para a população local. E recorre a um grupo de crianças para recriar de forma alegórica a história recente do país, que acaba por revelar-se pouco interessante por rapidamente esgotar a ideia inicial e pouco mais oferecer. Mas deixa no ar esse mote, que outro filme carrega, Of Land and Bread (2019) de Ehab Tarabieh. Usando apenas gravações das câmaras que uma organização distribuiu pela população palestiniana, de forma a registarem as dificuldades e agressões sentidas no seu quotidiano e muitas vezes pouco visíveis para o resto do mundo, mesmo que igualmente repetitivo, o filme acaba por ter o efeito oposto de Sandlines, ao nunca deixar de surpreender e perturbar pelo que revela, mesmo que não seja nada de novo.
Em Of Land and Bread as imagens falam por si.
Através de uma série de sequências que registam as interacções dos palestinianos, quer com colonos israelitas, quer com as forças do exército, fica demonstrada vezes sem conta a sistemática impunidade e os abusos de poder aleatórios que contra si são praticados, mesmo quando os agressores sabem que estão a ser filmados. A câmara passa a ser testemunha de algo que de outra forma seria infelizmente trivial e ganha assim maior repercussão. Mesmo que se possa pôr em causa a narrativa do filme, por mostrar apenas um lado da questão, a verdade é que não existem abusos de poder de quem não tem qualquer poder, e quanto muito, os agressores refreiam a sua acção perante a presença da câmara, funcionando esta como uma espécie de escudo. Imagens como as de um soldado israelita a roubar por capricho uma bicicleta de uma criança palestiniana, dos soldados a entrarem em casas durante a madrugada para assustarem os seus ocupantes são apenas alguns exemplos de actos de uma tortura continuada que o filme não deixa cair no esquecimento. Aqui, as imagens falam por si, o que é sempre notável.
Outro filme começa com uma citação sobre a questão da verdade: “as mentiras são apenas outra forma de contar a verdade”. Trata-se do melhor filme que vimos este ano em competição, o magnífico My Mexican Bretzel (2019), de Nuria Giménez, um filme construído a partir da descoberta pela realizadora de cerca de 29 horas de imagens filmadas pelo seu avô Frank durante as décadas de 40 a 60, imagens amadoras em 16mm e Super8 de alguém que filmava obsessivamente o seu dia a dia com a sua esposa, a avó da realizadora, e que agora são apresentadas através de uma edição que revela essas duas vidas fantasmagóricas de uma forma empolgante e melancólica ao mesmo tempo. As imagens são soberbas, quer seja pelo olho atento de Frank, quer pelos locais que estes visitam nas suas viagens: Frank sofre um acidente enquanto piloto durante a guerra e reforma-se da aviação para se tornar num executivo de uma multinacional que viaja por todo o lado: desde estâncias de esqui nas montanhas a aldeias costeiras no sul da Europa ou passeios pela América, são imagens plenas de detalhes de uma época de um mundo em renovação a seguir à Segunda Guerra Mundial, mesmo que vistos pelo olhar de vidas privilegiadas.
O melhor filme que vimos este ano em competição foi o magnífico My Mexican Bretzel.
Porém, apesar de todos os momentos visualmente fascinantes, o filme carrega uma fragilidade, um sentimento agridoce de um vazio difícil de preencher e que parece ir ganhando espaço com o decorrer do filme. Na verdade, o que ajuda a enriquecer estas imagens com um significado maior é a combinação com um texto, um suposto diário íntimo da avó, Vivian, que a realizadora joga com as imagens para contar uma história de inquietações e reservas, desde o afastamento e inseguranças de Frank por causa do seu acidente, à obsessão de Frank pela câmara, ignorando Vivian (“era como se estivesse a apontar-me uma arma”). Como escreve Vivian, “filmar é uma das melhores formas de auto-ilusão” e “é também uma luta desesperada contra a solidão”. Essa solidão, e a preferência por uma interioridade, são continuamente refletidas na escrita de Vivian, e expandidos por um terceiro elemento (além da imagem e texto): o filme é dominado por um silêncio majestoso, já que recorre apenas a alguns efeitos sonoros esporádicos, uma escolha que parece explicada por um acidente que Frank sofreu enquanto piloto do exército inglês e que lhe danificou a audição, e o texto aparece sob a forma de pequenas legendas e não através de uma voz, uma abordagem que poderia ser apenas um gimmick, mas que aqui ajuda a sublinhar o lado efêmero e poético das imagens, como se tratasse tudo de um sonho silencioso que não se pode deixar escapar. O resultado é uma espécie de pequena encantação, a realidade tornada fábula, ou uma fantasia imaginada, neste jogo entre ficção e história que surpreende constantemente.
A Nossa Terra, O Nosso Altar (2020) é a primeira longa-metragem de André Guiomar, um documentário rodado ao longo de vários anos junto dos moradores do bairro do Aleixo, à medida que as torres que habitam se vão esvaziando. É um filme próximo de outros rodados nos últimos anos sobre o mesmo tema, como as curtas-metragens Bicicleta (2014) de Luís Vieira Campos, no qual aliás Guiomar participou como assistente de câmara, e Russa (2018) de João Salaviza e Ricardo Alves Jr., que primeiro que tudo retratam as condições desoladoras a que estes moradores têm sido condenados nos últimos anos e especialmente desde que foi anunciado a demolição em 2011 do bairro; e é um filme próximo de Tarrafal (2016) de Pedro Neves, que também foi na altura exibido no festival, sobre outro bairro no Porto (S. João de Deus) abandonado à tristeza, pela forma como retrata com empatia e sem floreados o espírito dos habitantes que perante as adversidades e desamparo das autoridades, tentam fazer o melhor de uma situação difícil.
A Nossa Terra, O Nosso Altar atinge uma nota emocionante notável.
O filme divide-se entre dois momentos distintos, o primeiro filmado em 2013 quando já tinham sido demolidas 2 das 5 torres do bairro, numa altura em que a degradação das condições de vida já são evidentes, e mais do que isso, os corredores quase vazios parecem cada vez mais habitados por fantasmas e memórias de outros tempos, perante prenúncios de um fim irreversível mas arrastado, assombrados por símbolos como as portas dos apartamentos que são entaipadas, como sinais proibidos sobre uma época, sobre uma comunidade que ali viu nascer e desaparecer famílias. Se esta primeira parte é pouco distinta em relação ao que outros filmes sobre o mesmo tema tinham já revelado, é na segunda parte de A Nossa Terra, O Nosso Altar, filmada em 2019, mesmo já perto do destino final do bairro, que o filme ganha uma nova dimensão. O falecimento de um dos membros mais novos de uma das famílias que o filme tinha retratado no início, e o luto da família que é também luto daquela comunidade, abala o filme e é como se de repente os fantasmas tivessem um rosto. E nesse processo, o vazio que se sente nos prédios, assombrado por um silêncio que cresce e se torna opressivo e ensurdecedor, onde outrora o barulho era sinal de vida, é marcante. Por isso, quando o filme mostra uma espécie de celebração comunitária em honra do filho-irmão-amigo desaparecido, que é também sobre as memórias perdidas, sobre o que foi e não volta a ser, que o filme atinge uma nota emocionante notável, uma redenção contra o apagar da história, e que nos deixa a antever com expectativa o próximo trabalho deste jovem realizador.
Brasil, 28 de outubro de 2018: é conhecido o resultado da segunda volta das eleições presidenciais, e Jair Bolsonaro é o novo presidente eleito. Em casa, a actriz Georgette recebe as notícias com tristeza e receio, e como ela, muitos outros brasileiros temem pelo seu futuro. Uma ideia forma-se então: Georgette irá concorrer às próximas eleições presidenciais, espécie de antídoto contra o momento actual. Para anunciar a sua candidatura, reúne um grupo de amigos, várias pessoas ligadas ao cinema e teatro, actores, produtores, técnicos (entre os quais o português Vasco Pimentel), que irão viajar num autocarro em direcção ao Uruguai, à procura de um encontro com o ex-presidente Pepe Mujica, uma inspiração para quem procura uma mudança progressista e socialista para o seu país. Pelo caminho, durante seis dias tudo será filmado. Esta é a proposta de Partida (2019) de Caco Ciocler – que venceu o Grande Prémio do festival -, um curioso exercício, não só político mas também dramatúrgico, que explora a eterna questão sobre como fazer um filme político, e acima de tudo de forma política, onde todos têm uma palavra a dizer. É também a resposta a um trauma, uma espécie de terapia em conjunto, que procura respostas alternativas perante o que parece ser uma escassez de soluções e um pessimismo existencial.
Partida está sempre a colocar-se em causa, a questionar o seu próprio rumo, como uma improvisação permanente, recorre a vários elementos meta-fílmicos, sem receio de expor as dúvidas do seu processo criativo e colaborativo.
O filme, que está sempre a colocar-se em causa, a questionar o seu próprio rumo, como uma improvisação permanente, recorre a vários elementos meta-fílmicos, como o aparecimento ocasional de uma claquete improvisada, direcções por parte de pessoas fora de cena como o produtor ou o responsável pelo som, a discussão sobre o rumo da narrativa do filme, ou até mesmo a repetição de momentos para efeitos dramáticos, num processo transparente, sem receio de expor as dúvidas deste processo criativo e colaborativo. Partida explora de forma imaginativa duas narrativas paralelas, interligadas: por um lado, a formação e formulação do pensamento político por parte da candidata Georgette, obrigada a definir e justificar as suas posições, como se estivesse numa espécie de campo de treino, perante o questionamento e oposição de Leo, outro actor (ou personagem? nunca fica muito claro até que ponto estes encarnam construções dramáticas, e essa linha de indefinição é cativante) no autocarro, que ocupa a posição do conservador, defensor do sistema; por outro, esta dicotomia que se forma entre as duas figuras dominantes no autocarro, que eclipsam o resto dos elementos que se remetem ao silêncio (com a excepção de Vasco Pimentel, que não resiste a dizer as suas verdades), é talvez o ponto mais fraco do filme, mas que abre portas para uma discussão interessante. Há algum benefício em debater com alguém que não ouve, ou é essencial para afinar argumentos e perceber as posições do adversário de modo a tentar chegar a um entendimento? É possível um debate ardente e rancoroso, sem esmorecer relações pessoais, ou esse drama interessa porque torna as coisas mais excitantes do que se todos tiverem a mesma opinião? Todas estas questões ajudam o filme a encontrar um rumo ao mesmo tempo que as personagens parecem cada vez mais à deriva, numa espécie de À Espera de Godot ambulante. No final, Georgette queixa-se que não fizeram nada, que não resolveram nada, e se o filme realmente não oferece respostas, a óbvia fica para o espectador: às vezes o que interessa não é o destino, mas a forma como chegamos lá e o que descobrimos nesse caminho.
Com uma sequência inicial que tão cedo não esqueceremos, na qual durante largos minutos, sem quaisquer diálogos [reminiscente de Stellet Licht (Luz Silenciosa, 2007), de Carlos Reygadas], somos reféns de uma paisagem natural noturna que é ao mesmo tempo, assombrosa e de uma beleza extraordinária, Piedra Sola (2020) de Alejandro Telemaco Tarraf, cedo estabelece um tom entre o naturalista e o místico. Rodado numa remota região montanhosa no norte da Argentina, esta é uma aventura sensorial e etnográfica, na qual um exemplar trabalho de fotografia e som nos permite imaginar e imergir na vida dos habitantes locais, cercados por uma aspereza inescapável e fenómenos estranhos e invisíveis. Quando um puma ameaça o sustento dos pastores, ao matar várias ovelhas na quietude da noite, estes têm de decidir como agir: ir à procura do animal, ou oferecer um sacrifício aos espíritos para afastar o perigo. Será o predador real ou um produto do medo de uma imaginação colectiva? Aqui, a narrativa é o menos importante (e o menos conseguido, como uma distração), porque quando o filme se foca apenas na representação da passagem do tempo naquele local, atinge momentos memoráveis.