Era 1991 ou 1992, antes da internet e seus viciantes downloads, antes do DVD e da imagem digital, antes mesmo da TV por assinatura no Brasil.
Uma amiga me recomendou para um emprego numa boa locadora de fitas VHS, localizada num bairro de classe média da zona oeste de São Paulo. Apesar de ser morador da Zona Leste da cidade, frequentava essa locadora às vezes por causa do bom acervo e do preço de locação, mais convidativo que o de locadoras mais famosas. A vergonha fez com que eu só falasse da vaga de atendente na devolução de um pacote de fitas alugadas para um feriado prolongado. Deram-me uma ficha com algumas perguntas sobre cinema, atores e atrizes preferidos, diretores, coisas do tipo. Era dessas fichas que a gente preenche com o pensamento na melhor estratégia possível: mostrar erudição ou deixar clara a paixão por cinema? É possível fazer as duas coisas?
Aliás, por que uma coisa estaria dissociada da outra? Por que uma suposta erudição (que nem sei se tenho e que certamente não tinha a essa altura) atrapalharia que me vissem como um apaixonado por cinema? Lembro de certa vez ter recebido um elogio da funcionária que me atendeu, nessa mesma locadora, pelo ecletismo de minhas escolhas: devia ter alguma comédia colegial americana, um filme mudo, algo do cinema novo brasileiro, um filme de autor europeu, coisas que me formaram. Mas ecletismo é diferente de erudição. Esta última denota disposição e interesse para conhecer algo em profundidade. Ecletismo também denota disposição e interesse, mas pode esconder uma necessidade de variações de registros que não tem nada a ver com profundidade.
Voltemos à ficha, essa danada que estaria então entre meu primeiro emprego ligado ao cinema. Surge a encruzilhada: “qual o último filme que viu? Gostou? Por que? Desenvolva um texto sobre esse mesmo filme”. E se o último filme visto me enchesse de vergonha? E se fosse algo inconfessável? Hoje eu já não teria problemas com isso, pois não acredito na ideia de guilty pleasure (porquê guilty?). Mas jovens são envergonhados para essas coisas e desaforados para outras.
Com NON ou a Vã Glória de Mandar tive minha estreia na crítica, e também com o cinema português. Foi o primeiro filme da terra de meus avós que vi, a partir do qual uma ligação muito forte se estabeleceu.
O fato é que eu faria, então, a minha primeira crítica de cinema, lida apenas pelo gerente da loja, ou por todos os funcionários (que devem ter rido à beça de minha pretensão). Pretensão, sim, porque o último filme que eu tinha visto, numa sessão com mais uns cinco ou seis espectadores, era de um cineasta pouco conhecido no Brasil àquela altura: NON ou a Vã Glória de Mandar (1990), de Manoel de Oliveira. Sim, juro que foi esse o filme, visto numa sala do Belas Artes (o espaço mais marcante para o cinema europeu naquele início dos anos 1990). Fiquei alguns minutos em dúvida se colocava esse mesmo e passava por esnobe ou dizia que o último filme visto era outro, mais conhecido. Optei pela verdade, essa que sempre me colocou em situações de aperto.
Escrevi o que na época devo ter pensado ser uma boa crítica (pensando bem, sempre fui muito autocrítico, então provavelmente devo ter me envergonhado do que escrevi). Na época, Manoel de Oliveira era conhecido apenas pelos frequentadores assíduos da Mostra Internacional de São Paulo, que sempre passava seus filmes. Mas esses frequentadores assíduos eram uns 50, no máximo, e eles hibernavam em alguma gruta secreta e só saíam em Outubro, quando acontecia a mostra.
Alguns anos depois, os críticos passaram a recomendar vivamente os filmes de Manoel de Oliveira e as sessões começariam sempre cheias, para terminar meio vazias. Meu caso, o dia do desespero. Ver as sessões se esvaziando era sempre um desespero. O que esperavam? Telenovela? Mas aí já estou a citar um outro cineasta português. O Convento, Party, Viagem ao Princípio do Mundo, Inquietude, A Carta… A cada ano, um filme do mestre era apresentado, para deleite de alguns poucos, como eu, e a perplexidade do frequentador que vivia a reboque das indicações dos jornais.
Trocando em miúdos, com NON ou a Vã Glória de Mandar tive minha estreia na crítica, e também com o cinema português. Foi o primeiro filme da terra de meus avós que vi, a partir do qual uma ligação muito forte se estabeleceu, inicialmente com Manoel de Oliveira, anos depois com João César Monteiro – e seu A Comédia de Deus (1995), visto numa noite cansada no gigantesco auditório do MASP.
Não lembro se continuei a frequentar a locadora após não ter sido chamado. Eu não deixaria de frequentá-la por despeito, talvez por vergonha da reprovação. Era longe, talvez por preguiça e vergonha. O que lembro muito bem é do impacto que muitos filmes de Manoel de Oliveira provocaram em mim, e provocam até hoje.