Sermos derrotados pela memória é como uma pequenina morte em vida. Nota psicanalítica para filme psicanalítico. Procurei em vão uma passagem de um livro que referia qualquer coisa como “remeter para a Sibéria do pensamento”. Não me recordo onde o li, mas creio que dizia respeito a um conselho sobre como esquecer/reprimir algo. O facto de não me lembrar da citação – cujo conteúdo me veio à mente quando via Siberia (Sibéria, 2019) – talvez seja essa aplicação na prática: remeti à Sibéria do meu pensamento, uma espécie de recalcamento, o que significaria exactamente isso, remeter um pensamento à Sibéria. Se imaginei ou se é real, essa é também a corda bamba da psicanálise do inferno a que Abel Ferrara se/nos submete neste seu memory road movie.
Willem Defoe volta à carga pela sexta vez com o cineasta do Bronx, alter ego quase contínuo, desta vez remexendo nas relações paternais – em especial com o pai que aparecerá também a meio desta alegoria (Defoe com óculos), de um hades de auto-tortura e remorso de tom vagamente cristão. Existe uma capa ficcional para o sonho felliniano de Ferrara: um solitário americano a trabalhar num bar na Sibéria, refugiado dos desgostos da vida, imaginamos nós. Esse é o pretexto para uma série de encontros, físicos e oníricos, onde Ferrara vai desfiando uma autobiografia que faz do isolamento e da evasão – mas também da viagem (pela neve com os seus huskies, pelo deserto com os seus cães parecidos com huskies e pelo bosque com os seus huskies novamente) – os símbolos mais evidentes desse desenrolar do fio das memórias e dos tramas.
Mas Ferrara consegue ser foleiro ao mesmo tempo que é subitamente desconfortável. O cosmos mallickiano ao lado das mobelhas que fazem o mesmo “som de uma mulher a ser estrangulada”.
Nesta sua “abertura de jogo”, Siberia é um filme pouco hermético. O que pode parecer um paradoxo. Isto porque, ao mesmo tempo que nos diz que estamos no mundo do onirismo e da abstracção (e com ele, um planeado desnorte do espectador), é sempre muito claro a catalogar esse onirismo, a construir a alegoria da caverna, no desdobramento do eu e da alma (ver imagem), nos encontros com os guias metafísicos (Jodorowsky, o da juventude, a pairar) e nos temas do seu eu atormentado: a relação de culpa com o pai, os medos infantis, a ausência face à morte da mãe, o fim do amor, as mulheres como símbolo de luxúria e morte.
Talvez por isso Siberia vá seguindo o seu trilho de forma algo irregular. Momentos existem em que o simbolismo e o romantismo pesadão dão sono: por exemplo, os planos exóticos, ambientais, existenciais do herói na neve; ou os anões, deformados, enforcados que deveriam servir a ideia de pesadelo, mas que se fossem Lynch teriam um toque mais subtil, menos “claro”. Mas Ferrara consegue ser foleiro ao mesmo tempo que é subitamente desconfortável. O cosmos mallickiano ao lado das mobelhas que fazem o mesmo “som de uma mulher a ser estrangulada”. Um cineasta que trabalha sempre na fronteira entre a tensão doce e sensível e o desbragado e violento. Por isso, nesta escalada também temos peixes que falam hebreu, ou jovens que ouvem heavy metal [é a cena de dança de Le Sel del Larmes (O Sal das Lágrimas, 2019), encenada por Ferrara] e mesmo momentos de redenção que de tão infantis, atingem violentamente o alvo, manchando positivamente o filme de uma estranha leveza: por exemplo, a recuperação da alegria da vida após a retrospecção, na qual Defoe dança e canta ao som de “Runaway” de Del Shannon.
Em suma, Siberia não deixa no seu pior de poder ser catalogado como mais um filme retrospectivo de um cineasta a olhar para trás, neste caso, com amargura e alguma esperança. Mas é também uma viagem pelos alçapões e labirintos da memória, como se quisesse filmar Smultronstället (Morangos Silvestres, 1957), mas uma das suas mãos fosse a de Lars von Trier em Antichrist (Anticristo, 2009) ou Melancholia (Melancolia, 2011).