Eu fui ao fim do mundo
Eu vou ao fundo de mim
Vou ao fundo do mar
Vou ao fundo do mar
No corpo de uma mulher
Vou ao fundo do mar
No corpo de uma mulher bonita
“Espalhem a notícia”, Sérgio Godinho
Quem é Undine? A mulher severa, ferida, que conhecemos sentada num café, para quem é difícil aceitar ser abandonada pelo homem que se senta na sua frente? Ou a mulher-criança, delicada, que se perderá de amores por um homem que se atravessa no seu caminho, com a mesma força e rapidez da água que se solta de um aquário estilhaçado?
O título do último filme de Christian Petzold, Undine (2020), provém da ninfa que dá corpo a diversas narrativas mitológicas, a mulher das águas que cativa e seduz os homens. Ninfas, ondinas, sereias, melusinas – todas elas são espíritos elementares das águas que, apesar da sua aparência humana, são desprovidos de alma. Terão, pois, que adquirir a sua alma através da união sexual com os humanos. São variadíssimas as obras criadas a partir da figura mitológica da ondina, nas mais variadas áreas da criação e, em especial, na literatura (desde a novela de La Motte-Fouqué, que faz a reactualização do mito tomando como principal inspiração o Livro das Ninfas de Paracelso, até à novela Undine geht de Ingeborg Bachmann).
A novela de La Motte-Fouqué foi também a base de Ondine, peça de teatro da autoria de Jean Giraudoux, que estreou na Broadway, na sua versão inglesa, em 1954, tendo Audrey Hepburn como protagonista, vindo ela a conquistar um Tony pela sua interpretação de Ondine (o sucesso foi tal que Susanne Thierry chegou mesmo a criar um perfume com o nome Ondine, dedicado à actriz). Também Margot Fonteyn foi Ondine no bailado estreado em 1958, adaptando o texto de La Motte-Fouqué, com coreografia de Sir Frederick Ashton e música de Hans Werner Henze.
No filme de Christian Petzold, Undine (Paula Beer) é uma historiadora freelancer, que trabalha no Märkisches Museum, o museu da cidade de Berlim, onde conduz visitas guiadas sobre a história da cidade e as etapas da sua construção. Quando a conhecemos, ela está sentada numa mesa de café no exterior do museu, no momento em que o namorado, Johannes (Jacob Matschenz), lhe comunica que deseja colocar um ponto final na relação. A resposta final de Undine deixa-nos algo sobressaltados– „Wenn du mich verlässt, muss ich dich töten. Das weißt du doch.” (“Se me deixares, tens de morrer. Sabes disso.”). Esta frase foi o ponto de partida de Petzold, uma pequena frase impiedosa, escrita há já alguns anos, que começou por ser parte do diálogo construído para uma curta-metragem projectada e não realizada. Essa frase firme e cruel, sem meios termos, sem adocicar a separação. Sem um “precisamos de falar” ou um “continuamos a ser amigos”. Aquele “sabes disso” final leva-nos à inevitabilidade do mito que se cumpre.
Essa frase – “Se me deixares, tens de morrer.” – é Undine. O ser misterioso capaz do amor sem barragens e incapaz de aceitar a traição. A sentença de Undine para Johannes é suspensa porque ela se cruza com Christoph (Franz Rogowski), um dos visitantes que assistiram à sua palestra sobre a cidade de Berlim. O encantamento de Christoph é imediato e um acidente com um aquário que se quebra sobre eles precipita a sua aproximação, acabando os dois por se apaixonar. Christoph é mergulhador industrial e leva Undine a um passeio debaixo de água, os dois parecendo bailar no fundo do lago. A dada altura, Undine parece ter desaparecido no fundo do lago, misteriosamente, para depois ressurgir à tona, plena de vida.
O homem que não ame a ondina irá perdê-la para as águas e assim perde-se também.
Na relação entre os dois protagonistas é possível sentir uma tensão permanente entre fisicalidade e espectralidade, com dois seres que dançam, que serpenteiam, tanto debaixo de água como no espaço circunscrito de um quarto, percorrendo as margens do Spree encerrados na sua bolha mágica, que ecoa as pequenas bolhas de ar que se soltam debaixo de água, semelhantes ainda aos estilhaços de vidro que se soltam do aquário partido. No seu ensaio da palestra sobre o Humboldt Forum, Undine alude ao Stadtschloss inicial que foi sendo “deslocado” até se tornar centro, em virtude dos edifícios que iam crescendo à sua volta, persentindo também o movimento (ou bailado) presente no próprio território da cidade. O mesmo Schloss que seria demolido para dar lugar ao Palast der Republik, um edifício erigido como lugar agregador e grande símbolo da RDA (alojando o Congresso do Povo e funcionando como Casa da Cultura), vindo a ser também ele demolido para dar lugar a um novo Stadtschloss, construído à imagem do edifício inicial, naquilo que, segundo Undine, constitui uma desonestidade histórica – equivalendo a contemplar a história como uma impossibilidade de progresso.
O mesmo texto para a palestra sobre o Stadtschloss que Undine ensaia, que parecia construído rapidamente para servir à audiência do dia seguinte, transforma-se em discurso amoroso, de sedução, de enamoramento e bailado em volta de uma cama e no espaço limitado de um quarto, o ponto de fuga no centro da cidade apontado com firmeza na silhueta da cidade vista a partir de uma varanda.
Mas há um momento em que o idílio amoroso é ferido mortalmente, quando Undine, qual Orfeu, comete o erro fatal de olhar para trás. Esse gesto sempre presente em toda a filmografia de Christian Petzold. As personagens que olham para trás, como a Betty de Gerhard Richter. Se o seu cinema olha para trás, não será certamente com nostalgia, mas com o ímpeto de contemplar o futuro. O cinema de Petzold mostra as suas fundações, é um cinema com o esqueleto do lado de fora, como o edifício do Centro Pompidou, em Paris. Contemplar o passado de forma a compreender o presente. Mas Undine não olha apenas para trás, olha também directamente para nós, das profundezas da água para as profundezas do ser. Tal como o Angelus Novus de Paul Klee, de asas abertas e boca escancarada, ainda que impelido para o futuro, mas assombrado pela história, olhando para trás e contemplando as catástrofes da história acumuladas a seus pés. Esta imagem que figura à cabeceira de Nelly em Phoenix (2014) e que persegue Petzold – “precisamente porque olha para trás, o cinema é capaz de adivinhar o que há-de vir”.
No museu, Undine mostra a maqueta de uma cidade a duas cores, entre o velho e o novo, resultado de inúmeras construções e reconstruções, de projectos megalómanos que procuraram impor uma ideia da cidade, fazendo tábua rasa da história. A cidade que se vê como pano de fundo quando Undine e Christoph caminham ao longo do Spree, em direcção à Hauptbahnhof, é uma Berlim nova, asséptica, sem rugas, inóspita para os espectros da história. O confronto entre o que resta, o que foi reconstruído e o que foi construído de novo, a partir do vazio. Daí os dois amantes procurarem refúgio numa pequena povoação, longe da grande metrópole, porque Berlim é uma cidade limpa de mitos. A terra de ninguém que era um enorme descampado estéril passa a terreno ocupado de construções ultramodernas sem alma e sem história. O apartamento incaracterístico de Undine, passível de rapidamente ser convertido em Airbnb, onde os objectos são facilmente reconhecíveis de um qualquer banal catálogo de móveis e decoração. É difícil a ligação, o reconhecimento numa cidade rasgada por edifícios sem história. Undine e Christoph vivem sozinhos juntos, sem família e sem raízes, só com ao amor que os une. Eles viajam, como quase sempre viajam as personagens de Petzold, entre um número sem fim de cidades, entre o passado e o presente. O choque entre o presente e o passado, entre mito e realidade, encontra-se, com algum humor, vertido nas duas únicas citações musicais presentes no filme – o adágio de Bach e Stayin’ Alive de The Bee Gees.
As ruínas serão aqui porventura menos visíveis do que em Phoenix, mas não menos presentes. A escavação que é feita no meio dessas ruínas é também a recuperação do que resta do “género”. Os géneros que deixaram de existir no cinema de hoje, a tarefa de recuperação, reconstrução do género para uma audiência que já não está familiarizada com a sua gramática (Jaimey Fischer refere uma peculiar “arqueologia do género” levada a cabo por Christian Petzold). O fantasma é também a história, para personagens tomadas pela perda, órfãs na sociedade governada pelo neoliberalismo. Todo um mundo de ruínas e fantasmas, restos de vidas passadas, seres que não pertencem, seres sem morada. Resquícios de energias, de gestos, de corpos. Dessa escavação do género, dessa arqueologia do género resulta um cinema de elipses. “O cinema é o que fica de fora” (Auslassung).
Convocando uma frase de Claude Chabrol a propósito da forte presença feminina nos seus filmes (e por diversas vezes citada por Christian Petzold) – “Os homens vivem e as mulheres sobrevivem.” E a sobrevivência é matéria do cinema.
Na maqueta do museu vemos a cidade em altura e a água que a serpenteia em forma de rio. Água é também espelho, mas que retoma a sua forma inicial depois de tocado, a possibilidade de regresso e de passado. As imagens do passado que recorrentemente inundam o presente, a ele se sobrepondo. “Enquanto ser elementar aquático, Ondina é este espelho, ao mesmo tempo da perfeição e do vazio: porque o espelho não é em si mesmo nenhuma imagem, mas a infinita possibilidade da imagem”. [Prefácio de Teolinda Gersão a Ondina, de La Motte-Fouqué, Antígona, 2011]
Christoph apercebe-se do sobressalto de Undine quando se cruza com Johannes porque Undine e Christoph tornaram-se um, ela uniu-se à sua alma e tornou-se parte dele. Mas duvidar do amor de Undine representa o fim. O homem que não ame a ondina irá perdê-la para as águas e assim perde-se também.
Christoph deverá mergulhar nas águas para resgatar Undine, mergulhar em si próprio. É esta a duplicidade que o mito encerra – mergulhar nas águas para resgatar a ondina é mergulhar no seu próprio inconsciente, encontrar-se a si próprio.
Cedo detectámos algo de inquietante e nocturno em Undine, permanentemente contida na sua armadura negra (o cabedal e a roupa escura que a envolvem). Ter um trabalho, vestir uma farda (por contraponto à roupa escura que Undine veste fora do trabalho), é assumir uma identidade. Aqueles que não conseguem aceder a esse estatuto vivem nas margens, ficam excluídos, sem pertença ao espaço que habitam como fantasmas. A cidade nova, sem história ou infecta de revivalismo kitsch apenas reforça este sentimento. À medida que o filme se vai aproximando do seu final, Undine vai ficando desapossada dos seus acessórios sombrios – perde o casaco de cabedal preto, vai revelando roupa mais clara, a ponto de a blusa que vestia (num cetim que lembra a superfície espelhada da água) se fundir com a sua pele quando mergulha na piscina, revelando-a no seu elemento, no regresso ao reino das águas. Os seus braços que envolvem no amor são os mesmos braços de água em que o amante traidor se afunda. Lembrando que o mito dita que a traição da ondina significa a morte. “Deve haver algo de desejável mas também algo de terrivelmente assustador numa alma, […] não seria melhor nunca a termos?” [Ondina, La Motte-Fouqué, Antígona, 2011]
No final, Undine tem a força necessária para escapar àquilo que o mito determina, ela é capaz de poupar a vida de Christoph, atraí-lo até aos braços da água e deixá-lo partir. A salvação dele é a salvação de Undine, é a afirmação ou emancipação da mulher das águas, a revolta contra o fim que estava determinado. E a ela pertence o olhar derradeiro, um olhar subjectivo a partir da superfície do lago, antes do mergulho final de regresso à profundeza das águas. Convocando uma frase de Claude Chabrol a propósito da forte presença feminina nos seus filmes (e por diversas vezes citada por Christian Petzold) – “Os homens vivem e as mulheres sobrevivem.” E a sobrevivência é matéria do cinema.
Undine teve a sua estreia nacional no LEFFEST – Lisbon and Sintra Film Festival, e prevê-se uma distribuição comercial nas salas portuguesas para breve.