Acredito que temos de aprender a comportarmo-nos como convidados uns dos outros para sobrevivermos.
George Steiner, em Entrevistas da Paris Review 3
O que por estes dias tem entrado na nossa casa pelas janelas da televisão, perante a insensata condescendência com que, em tempo de contendas eleitorais (nos EUA e por cá), desobrigamos o discurso político ao usar as palavras, deveria alertar-nos para que não estamos livres da barbárie, pois “à medida que a nossa civilização passa a evoluir à deriva, a literacia torna-se incerta”.
E, talvez, não devêssemos concluir que a única justificação para a afirmação de George Steiner, segundo a qual “nesta fase da vida as recordações do passado convertem-se no único e verdadeiro futuro interior”, reside no facto de a mesma ter sido proferida no final da vida e publicada numa entrevista póstuma, concedida a Nuccio Ordine.
Já em Quatro Entrevistas conduzidas pelo filósofo iraniano Ramin Jahanbegloo, publicadas em francês no início dos anos noventa e de cuja tradução para português existe agora disponível uma nova edição, George Steiner classificara como uma invenção magnífica a conjugação verbal designada por Kierkegaard “o passado presente” que permite caracterizar o modo como “o clássico representa uma fonte inesgotável de erros e revelações, fonte do diálogo dos vivos”[i], sendo que existe uma outra razão para o nosso apreço pelos clássicos: “A sua riqueza é tal que, ainda que tenhamos perdido um certo modo de percepção imediata dos grandes textos, nessas obras que definiram o alfabeto das nossas emoções, se desdobram e crescem novas formas”.[ii]
Na luta travada ao longo de uma longa vida em prole da cultura, George Steiner, ainda que se lhe tenha tornado cada vez mais difícil acreditar em que esta nos salve da barbárie, evocou por diversas vezes uma “cena infantil” em que o seu pai lhe ensinou a ver a história no que se passava lá fora, na rua.
Reproduzo uma: “Foi em 1934, tinha cinco anos. Paris estava a atravessar momentos duros. O movimento de extrema-direita dos Croix-de-Feu, que poderíamos comparar a uma parte do actual movimento de Le Pen, subia a Rue de la Pompe. (…) Gritavam ‘morte aos judeus’. A minha ama alemã, que falava o alto-alemão porque vinha de Potsdam, correu a buscar-me ao infantário para me levar o mais depressa possível para casa. Lembro-me ainda hoje de ouvir os manifestantes ritmarem a sua marcha entoando a palavra de ordem: ‘Mais vale Hitler do que Blum’. Quando chegámos a casa, a minha mãe fechou as portadas, enquanto o meu pai permanecia absolutamente calmo. Ora, eu queria ver o que se estava a passar lá fora e pedi à minha mãe que abrisse outra vez as portadas. Olhei aquela multidão que passava na rua, partindo montras e uivando as suas palavras de ordem. Nesse preciso momento, o meu pai aproximou-se de mim e disse-me com a sua voz perfeitamente serena: ‘Estás a ver filho, é isto a História'”[iii].
O efeito que esse momento terá tido na vida de Steiner ― a ponto de, como o próprio confessa, ter “passado a ver o mundo a uma nova luz” ― justifica que numa outra entrevista tenha esclarecido que o pai lhe dera a mão para saírem e verem o que se passava na rua, enquanto lhe dizia: “Nunca tenhas medo; aquilo que estás a ver chama-se história”, para depois concluir: “É bem possível que esta frase tenha decidido toda a minha vida”[iv].
Hoje, de entre todas viagens, elejo outra, feita de Sul para Norte, ao ritmo da marcha da libertação da Itália dos alemães e dos fascistas e pondo fim à guerra, como nos é dado ver em Paisà (Libertação, 1946).
A sorte que reconhece ter tido (pois os seus amigos de liceu morreram nos fornos crematórios) e o muito interesse que passou a ter pela história e por olhar pela janela para o que se passa lá fora, terão contribuído para não se esquivar à questão “como nos comportaremos quando o momento chegar?” e, sobretudo, para equacionar essa outra assim enunciada “que finalidade dar a um destino de sobrevivente?”, tendo eleito como tarefa, perante “a obrigação e nunca esquecer”, levar aos seus alunos e aos leitores “as cartas que recolheu junto dos grandes”, algo que, como afirma, não se consegue realizar sem o “sacramento da rememoração”[v].
Italo Calvino que, também ele, escrutinou quatorze boas razões para lermos os clássicos (ainda que aos mais renitentes se possa sempre lembrar a única razão decisiva, isto é, “ler os clássicos é sempre melhor que não ler os clássicos”)[vi], recorreu a esses “exercícios de memória” ― como Esther Calvino os denominou quando reuniu cinco textos para publicação póstuma em livro, sob o título de O Caminho de San Giovanni ― nos quais, mais do que o cariz autobiográfico e para além da marca fortemente espacial e visual, sobressai um elemento que confere movimento ao conjunto ― a memória. Uma rememoração constantemente reconduzida ao presente, como acontece em particular num dos capítulos, Recordação de uma batalha.
Grão sob grão, “no húmido leito de areia que se deposita no fundo da torrente dos pensamentos”, a relação entretecida entre acontecimentos da luta partigiana em que participou e a rememoração dos mesmos produz um presente contínuo na narrativa, um presente reencontrado, que não cessa de lidar com a metamorfose do olhar (de olhar próprio de espectador no de actor da realidade), que a “passagem” decisiva à participação na Resistência ilustra, numa cadeia em que os actos procuram ainda encontrar a justa posição em relação ao sentido.
Na reconstrução narrativa, que é também uma batalha com a memória, para além da razão expressa por Italo Calvino, segundo a qual “se me concentro num certo pormenor aumentado é para não me dar conta de quantos buracos há na minha memória”, o exercício de recordar e de discorrer sobre o acto de recordar permite aproximar o processo narrativo da sua origem na tradição oral: “durante a guerra partigiana as histórias que acabávamos de viver transformavam-se e transfiguravam-se em histórias contadas à noite à volta da fogueira, desde logo ganhavam um estilo, uma linguagem, um humor algo bravateiro”[vii], ao mesmo tempo que essa evocação parece já guiada pela “aproximação progressiva a uma definição daquele tipo particular de conhecimento aberto pela fotografia”, como dirá num texto de homenagem a Roland Barthes.
Ao incluir “a Visibilidade na [sua] lista de valores a salvar”, Italo Calvino releva, como traço distintivo dessa faculdade humana fundamental em risco de se perder, “o poder de focar visões de olhos fechados, (…) de pensar por imagens”, e formula a partir de versos de Dante (“Depois choveu nesta alta fantasia”, Purgatório, XVII, 25) a questão sobre qual possa ser a origem e a fonte da parte visual da criação fantástica e do “mundo figurativo transmitido pela cultura”, traduzindo-a nos seguintes termos: “Donde provêm as imagens que ‘chovem’ na fantasia?”[viii]
Uma tal interrogação leva-me a retomar uma convicção de Steiner segundo a qual “é uma viagem para trás baseada na memória, o que nos permite alimentar algumas esperanças”, arriscando-me a apresentar um corolário à hipótese por ele deixada em aberto (tanto mais que confessa como erro seu não ter entendido, “por exemplo, que o cinema, como nova forma de expressão, poderia revelar talentos criativos e novas visões melhor do que outras formas mais antigas”) nestas palavras: “Schelling dizia que, quando pensamos, somos todos gregos. Talvez sejamos todos hebreus quando rezamos ou sofremos”[ix].
Ora, ainda que não nos digamos todos italianos quando um cinema mental “funciona sempre em todos nós (…) e nunca deixa de projectar imagens na nossa visão interior”, de há muito que a chuva que cai na Itália não deixa de alimentar as nossas fontes.
Houve uns tantos, muitos mesmo, que reconheceremos como homens de cultura, que nos precederam a saboreá-la, nas suas viagens. Fizeram-nas habitualmente de Norte para Sul elegendo uma cidade, entre as muitas possíveis, por motivos que ainda hoje apreciamos através do impacto causado pelo que esses viajantes viram.
Steiner , por exemplo, afirma que não pretenderá ter uma segunda oportunidade de “ir para o céu” porque já lá esteve – em Milão. E descreve-o assim: “É a Galleria em Milão. Eu sentado à frente de um cappuccino a sério, o La Stampa, o Frankfurter Allgeimeine, o Le Monde, e o Times. Tenho um bilhete para o La Scalla no bolso e sinto dez ou doze cheiros complexos da Galleria – do chocolate, da padaria, das vinte livrarias (que estão entre as melhores do mundo); os sons dos passos das pessoas dirigindo-se à ópera e aos teatros nessa noite; o modo como Milão vibra em nosso redor”[x].
De Goethe conhecemos a revelação de como, nessa longa viagem à procura do centro, a passagem por Roma (1786) constituíra para si o início de uma nova vida. Com Freud podemos partilhar o sentimento que o invadiu, depois tanto de ter hesitado em aventurar-se a ir além dos Uffizi em Florença, quando escreve da primeira vez (1901) que desceu até ao Vaticano: “E pensar que durante tantos anos tive medo de vir a Roma”.
Mas foi Stendhal que de uma viagem a Florença deu a visão mais arrebatada, com as recordações a apertarem-lhe o coração à medida que se aproximava de Santa Croce, onde a visita aos túmulos de Michelangelo, Alfieri, Machiavel, Galileu lhe causou a mais profunda emoção: “A ideia de estar em Florença e a proximidade dos grandes homens de que acabara de ver os túmulos fizeram-me cair numa espécie de êxtase. Absorvido na contemplação da beleza sublime, via-a de perto, tocava-a. Atingira o ponto da emoção em que as sensações celestes proporcionadas pelas bela-artes e os sentimentos passionais se encontram”.[xi]
Hoje, de entre todas viagens, elejo outra, feita de Sul para Norte, ao ritmo da marcha da libertação da Itália dos alemães e dos fascistas e pondo fim à guerra, como nos é dado ver em Paisà (Libertação, 1946). Um filme em que Rossellini ousa experimentar, em cada um dos seis episódios que compõem essa viagem, uma nova possibilidade estilística. Da Sicília a Roma o filme pudera mostrar que a variedade de culturas e a diversidade de dialectos não é o que mais separa. Mas em Florença – dividida pelo rio Arno, com o sul já libertado, ao passo que a norte nazis e milícias fascistas, de um lado, e resistentes partigianos, do outro, ainda se digladiam – a luta da comunidade contra o invasor, na sua valentia e temeridade, é encarnada por Harriet, uma enfermeira inglesa que vemos determinada nessa travessia em direcção ao norte da cidade ainda sitiada pelos alemães, na companhia de Massimo que procura reencontrar a família.
Nesse trajecto, para atingir a “outra parte”, há um caminho que só os resistentes conhecem: é o Corredor Vasari anexo à Galeria Uffizi, com mais de 700 metros de comprimento que, vindo dos Jardins Boboli e do Palazzo Pitti, passa pela Ponte Vecchio, segue paralelo ao Arno por um trecho considerável e depois se liga ao Palazzo Vecchio, na Piazza della Signoria. Trata-se de uma verdadeira galeria de museu, onde centenas de obras, especialmente estátuas, foram guardadas, alinhadas e protegidas para evitar que as explosões as destruíssem.
Há nesta sequência um plano que exemplifica, na perfeição, o alcance do regime discursivo que Pasolini denominou de subjectiva indirecta livre: com a câmara cinematográfica a assumir uma presença subjectiva, correspondente a uma visão interior, cuja força se manifesta na linha vertical traçada pela panorâmica da torre do Palazzo Vecchio descendo a pique sobre o vazio raso da Piazza della Signoria, ainda ocupada pelos nazis.
Numa anterior passagem por Florença, Harriet conhecera Guido Lombardi, então pintor; agora, sem que ela chegue a revelar que em Florença ficou presa a um amor do passado, dizem-lhe que todos o conhecem, mas também que ele se converteu num fantasma; como chefe partigiano passou a chamar-se Lupo, a ser um homem-lobo, para não dizer um mito.
Tendo atingido o “outro lado”, os confrontos intensificam-se. “– Hoje tudo deu errado desde que Lupo morreu”, são as palavras, que saídas da boca de um partigiano que agoniza nos seus braços, dão a Harriet a notícia da morte de Guido.
Porquê regressar ao mesmo episódio ou à mesma cena ou ao mesmo plano vezes sem conta, para quê memorizar a inclinação de um rosto?
Talvez a anedota contada por Steiner sobre Shumann possa conter algum esclarecimento: certa vez, relativamente a um étude muito difícil, um aluno perguntou-lhe se podia explicá-lo. “– Sim, respondeu Shumann, e tocou-o outra vez”.
Se confinado um espectador tentará, talvez, dar seguimento a essas outras notas de Steiner que recordam que “em hebraico não existem verbos no futuro” ou que “aquilo que sabemos de cor é inalienável”. Se bem que, ao propor-se acompanhar Harriet, na sua própria travessia interior, “errava / mudo onde o Arno é mais deserto, e os campos / e o céu olhava insatisfeito” e, como Stendhal, tem necessidade da voz de um amigo que partilhe a sua emoção, agarra-se por isso a uns versos, escritos como os precedentes por Ugo Foscolo que, naquele 22 de Janeiro de 1817 em que chegou a Florença, Stendhal trazia na carteira, prosseguindo assim: “e tinha na fronte / o palor da morte e a esperança”.
[i] Ramin Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, trad. Miguel Serras Pereira (Lisboa: VS., 2020), 96.
[ii] Jahanbegloo, 120.
[iii] Jahanbegloo, 27–28.
[iv] AA. VV., Entrevistas da Paris Review 3 (Lisboa: Tinta-da-China Edições, 2017), 118.
[v] Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, 77–78.
[vi] Italo Calvino, Porquê ler os Clássicos?, trad. José Colaço Barreiros (Lisboa: Teorema, 1994), 13.
[vii] Italo Calvino, Sentiero dei nidi di ragno (Milano: Oscar Mondadori, 1993), (Prefácio).
[viii] Italo Calvino, «Visivibilidade», em Seis propostas para o próximo milénio (lições americanas), trad. José Colaço Barreiros, [1990] (Lisboa: Teorema, sem data), 112.
[ix] Jahanbegloo, Quatro Entrevistas com George Steiner, 117.
[x] AA. VV., Entrevistas da Paris Review 3, 132.
[xi] Stendhal, Rome, Naples et Florence (Paris: Michel Lévy Frères, Libraires-Éditeurs, 1854), 206–7.