
Dezembro foi um mês interessante de cinema, aparte os habituais tops do ano. Ricardo Vieira Lisboa escreveu sobre David Byrne’s American Utopia (2020) de Spike Lee, Daniela Rôla abordou Undine (2020) de Christian Petzold que passou no LEFFEST (e vai estrear agora em Janeiro), Carlos Natálio sobre Malmkrog (2020) de Cristi Puiu e Siberia (Sibéria, 2019) de Abel Ferrara e ainda um texto colectivo sobre a estreia netflix de Mank (2020) de David Fincher. Tivemos ainda comprimidos de Asa ga Kuru (As Verdadeiras Mães, 2020) de Naomi Kawase, Wonder Woman 1984 (Mulher-Maravilha 1984, 2020) de Patty Jenkins, Sério Fernandes – O Mestre da Escola do Porto (2019) de Rui Garrido e Let Them All Talk (2020) de Steven Soderbergh. (ler abaixo). As palas, como sempre, dividem o burgo.

Depois dos excessos de açúcar de Uma Pastelaria em Tóquio (An, 2015), foi com algumas reticências que abordámos este Asa ga Kuru (As Verdadeiras Mães, 2020). A história da família de uma criança adoptada e da inquietação provocada pelo regresso da sua mãe biológica poderia ser matéria talhada para um filme de Hirokazu Koreeda, na linha de Soshite chichi ni naru (Tal Pai, Tal Filho, 2013). Mas Naomi Kawase está mais interessada na perturbação original, o nascimento de uma criança – como refere uma das personagens a dado momento do filme, “o bebé é uma realidade”. Ao contrário do que poderíamos esperar, o foco não está no confronto entre vínculo adoptivo e vínculo biológico. Tudo são ecos e falsas pistas. A separação de duas crianças que querem brincar juntas, a separação de dois jovens que se amam, as chantagens feitas com muita falta de jeito, a música entoada docemente. Também a natureza é enganadora, discorrendo por entre ramos de cerejeira e raios de sol, calma, serena, ocultando as inquietações dos relacionamentos humanos. Uma tranquilidade que se rompe no milagre do sexo e no gerar de uma nova vida.
Daniela Rôla, 2 de Janeiro de 2021

Wonder Woman 1984 parece sofrer do mesmo problema pelo qual um outro filme de super-heróis ficou recordado: Spider-Man 3 (Homem-Aranha 3, 2007) e o excesso de subplots. Se nesse desapontante Sam Raimi havia 3 vilões, um triângulo amoroso e a exploração do lado negro do protagonista, em WW84 estão presentes uma pedra do desejo, uma armadura bélica, dois antagonistas (cada um com os seus próprios dramas pessoais) e a ressuscitação do interesse amoroso do filme original. “Mais” não quer dizer “melhor”, e o resultado é, previsivelmente, um produto disperso, sobrecarregado e subdesenvolvido. Refiro-me, por exemplo, à forma como algumas personagens perdem inexplicavelmente a importância que antes tinham (vede como Minerva é empurrada cada vez mais para segundo plano, ao ponto de no final não ser mais do que um mero acessório), no desenvolvimento superficial de certos elementos (afinal, a armadura era mais para o marketing do que para outra coisa) e no esquecimento de conferir o devido desfecho a outros (no final, o que é feito da pedra?). Finalmente, o filme confunde ganância com mentira para criar a moral ingénua da importância da verdade, em vez de sumariar melhor aquela para a qual está construído: a de como a colocação irresponsável dos desejos individuais à frente do bem-estar colectivo pode conduzir ao caos e à ascensão de oportunistas auto-centrados (sim, Maxwell Lord acarreta semelhanças com Trump, com a diferença de que o primeiro possui um coração). Tem, no entanto, três qualidades notáveis: a primeira, a de não ser um filme da Marvel (ou seja, um anúncio entediante ao seu merchandising e a outros pastelões do seu “universo” de humor geek auto-referencial e/ou uma seriedade patriótica sensaborona); a segunda, a realização eficientíssima das duas primeiras cenas de acção – respectivamente, a daquela competição olímpica das amazonas com a heroína em criança e a do centro comercial com ela já adulta – com Patty Jenkins a explorar devidamente a topografia, estrutura e plasticidade de cada cenário, adaptando a colocação da câmara ao tamanho da sua protagonista (o modo como deixa de estar à “altura da menina” na 1.ª cena para passar à “altura da mulher” na 2.ª) sem deixar de dotá-las de deliciosos apontamentos humorísticos; e a terceira e última, a de ter essa obra-prima humana chamada Gal Gadot, cujo corpo esbelto e extraordinário, do rosto angelical às pernas tonificadas, é a melhor coisa que aconteceu ao cinema mainstream nos últimos anos. Sim, é a maneira pela qual ainda consigo tirar um certo gozo de alguns destes filmes de super-heróis: o de os encarar como um ginásio excêntrico onde mulheres belas fazem exercício físico.
Duarte Mata, 29 de Dezembro de 2020

Há uma movida, perfeitamente identificável, que caracteriza a produção cinematográfica portuguesa da segunda metade da década dos 2010: o desejo de o cinema se re-centrar no contexto de uma história das imagens em movimento especificamente produzidas em Portugal. Isto é, agora, como nunca antes, multiplicam-se, ano após ano, documentários sobre figuras marcantes do cinema português. Em 2014, Mozos louvava Bénard e Alves de Matos fazia o mesmo para Seixas Santos; em 2015, Manuela Serra regressava a Lanheses, 35 anos depois; em 2016, corrigia-se o lugar de Macedo, Botelho revisitava a sua relação com Oliveira e Nascimento recordava Zé Álvaro; já em 2017, João Pedro Rodrigues olhava-se ao espelho, Bárbara Virgínia e Rino Lupo ganhavam o destaque merecido e Manuel de Guimarães auto-biografava-se através de Leonor Areal; em 2018, recebemos um retrato do ANIM; em 2019, uma radiografia de Pedro Costa; neste ano de 2020, uma revisitação anticolonial do cinema português, e para o ano que vem um abraço do Paulo Rocha. Daí que Sério Fernandes – O Mestre da Escola se apresente neste contexto auto-reflexivo sobre a história (e as histórias) das imagens em movimento e de quem as produziu neste país. A especificidade prende-se, como o título logo recorda, com a dimensão pedagógica do percurso de Sério Fernandes (algo que será inevitável num possível filme sobre António Reis), ele que foi professor de três gerações de cineastas do Porto. Rui Garrido foi seu aluno e o filme percorre, cronologicamente, uma hagiografia do homem e dos seus gatos (sempre pensando o filme a partir do seu olhar de aluno, em debate com o professor que se imiscui na rodagem, desejante de se inscrever no cânone a que nunca pertenceu – sem que nunca se perceba o que é o seu cinema, apenas o seu mito). Pena é que tudo se centre em Sério Fernandes, e o filme não se abra mais aos seus alunos (porque ensinar é isso mesmo, um exercício de troca entre duas pessoas). Conheci, ao longo dos anos, vários que lhe passaram pelas mãos e ouvi deles excelentes histórias que revelam os seus extravagante métodos pedagógicos. As suas vozes dissonantes faziam falta (não apenas os seus exercícios de escola).
Ricardo Vieira Lisboa, 14 de dezembro 2020

Steven Soderbergh tinha-se reformado. E de facto esteve um par de anos inactivo – depois de Behind de Candelabra (Por Detrás do Candelabro, 2013), feito para a televisão, só voltaria à longa metragem de ficção quatro anos depois com Logan Lucky (2017) – ainda que pelo meio tenha feito televisão (para descansar um pouco). Para outros realizadores, isso seria a pausa natural entre um fôlego e outro. Para Soderbergh deverá ter parecido uma eternidade. Enquanto vários cineastas se lamentam com os novos modos de produção da “nova-nova Hollywood” do streaming, Soderbergh encontrou nela uma forma de filmar em contínuo, rapidamente, com “baixos orçamentos” e sem grandes pressões. Daí que entre o início de 2019 e agora, o realizador tenha feito dois filmes para a Netflix – High Flying Bird (2019), sobre a indústria “secreta” do basquetebol, e The Laundromat (O Escândalo dos Papéis do Panamá, 2019) espécie de filme-ensaio-paródia-ficcional sobre os caminhos do dinheiro pelos paraísos fiscais – e agora este, para a HBO Max. Let Them All Talk é, como sempre na filmografia do realizador, sobre o dinheiro (como confessa a protagonista, desiludida, no final, “nada disto é sobre o coração, é tudo por causa do dinheiro… Eu passo-te um cheque, então.”). Sobre o dinheiro e o sucesso e como o seu excesso ou a sua falta modelam o caracter das pessoas. Três amigas de faculdade reencontram-se passados 30 anos, uma é uma escritora famosa nos círculos literários, as outras, mulheres anónimas. Ao contrário do que é seu apanágio, Soderbergh parece ter perdido o medo das suas personagens e deitou borda fora o distanciamento brechtiano que o caracterizava. No entanto ficou-lhe a subtileza no retrato das relações, do trabalho em redor dos não ditos e dos subentendidos. Acima de tudo, em Let Them All Talk descobre-se a elegância do profissionalismo (Soderbergh sempre se viu como tarefeiro) imbuída num estilo hiper-reconhecível filmado como quem vai de férias num cruzeiro. É impressionante (e não creio que haja outro realizador, a filmar hoje em dia em Hollywood, com essa capacidade) como cada plano do filme é perfeitamente soderberghiano, isto é, automaticamente identificável (a sua paleta de cores, o seu trabalho florescente da luz, o seu gosto pelas grandes angulares, o seu posicionamento de câmara quase sempre a abaixo da linha do olhar, a sua montagem cool, a rapidez dos diálogos, etc.). Isso, e o facto de haver uma generosidade no seu olhar que lhe permite abrir-se aos figurantes (feitos personagens secundárias), construindo um documentário secreto dentro do filme (porque fazer um filme só não lhe chegava).
Ricardo Vieira Lisboa, 14 de Dezembro 2020