A um nível quase estritamente intuitivo, a imaginação é como uma paisagem sem limites ou fronteiras, onde é permitido que tudo aconteça, mesmo subvertendo as leis da verosimilhança ou rebentando com os grilhões que nos prendem a este mundo. Imaginar pode significar, a esse nível intuitivo, viajar ou expandir livre e despreocupadamente. É, nesse sentido, um espaço de recreação desregrado que vai sendo construído, peça a peça, até eventualmente se tornar um universo à parte, pensado, sonhado, mas não realizado. Podemos realizar esse universo através da escrita ou de qualquer outra arte efabulatória – aquela que nos ocupa aqui é, claro, o cinema. Portanto, a imaginação expande-se, cria, recria num recreio sem limites. Mas a imaginação em Dans la maison (Dentro de Casa, 2012) não só tem os pés firmemente assentes na realidade como está delimitada pelo espaço da casa – o título sugere mesmo a ideia de que a ficção vem de “dentro” e não de “fora”. É, então, um exemplar de uma imaginação realizada pelo cinema, que aparece perfeitamente contida ou, para usar um termo mais em voga, perfeitamente confinada.
Estamos ali “dentro”. E especularemos sempre, por via da “escrita” de imagens de Ozon e das palavras do seu jovem protagonista, um aspirante a escritor de imaginação prodigiosa e revelando boas doses de perfídia – será ele como o realizador ele mesmo, em suma? O protagonista é um aluno de secundário que convida “a entrar” o professor de francês cheio de si, que é, na realidade, um escritor desiludido que alimenta o ego dando notas baixas aos alunos cuja escrita não beije os pés a Flaubert ou Dostoiévski. Dizia: o aluno convida o mestre a entrar. Entrar onde? Na casa de um colega – a casa existe, o colega também, achamos… – tal como descrito num romance que vai sendo construído a cada nova redacção destinada à avaliação ou entregue como singelo T.P.C.. A regra inviolável é definida pelo rapaz logo à entrada: será aceitável que o professor se constitua como uma espécie de “orientador” na construção desta história, contudo, está fora de questão que a narrativa ponha os pés fora da casa, isto é, ultrapasse os seus limites, desfazendo a tal relação opaca com o exterior. O aluno-escritor não pretende, de maneira alguma, afastar-se um milímetro desse esforço, algo detectivesco, de inspeccionar a típica “vida de classe média” da família do colega de turma, registando cada uma das leis ou rotinas que delimitam o interior daquela casa.
Um dos dados curiosos – dos que são lançados desde cedo nesta história ou meta-história, qual narrativa sobre o seu próprio “fazer” – prende-se com esta espécie de inversão produzida por Ozon no seio da relação entre mestre e aluno. À medida que o mestre põe o nariz na escrita do aluno, brandindo lições cheias de certezas quanto ao que é e como se faz “a boa literatura”, o narrador-pupilo vai ganhando distância sobre a pureza descritiva, e o afiado sentido observacional, político ou “de classe”, que caracterizava a primeira recensão. Sob influência de fórmulas academizantes, o aluno perde a mão sobre a sua história, sobre os limites que, desde cedo, o fascinam. A maturidade literária do rapaz – a sua imaginação auto-contida – vai sendo ameaçada pelo pensamento gasto, saturado de fórmulas e jactância peneirenta, do professor.
Dans la maison é capital para se perceber este movimento em direcção a um cinema que é puro exercício de escrita ou puro exercício intelectual comandado pelo efeito do novelo e das palavras que o vão desenrolando, a velocidades muito variáveis e traiçoeiras.
O resultado é que o filme de Ozon, tão promissor no começo, vai sendo minado, bem “de dentro”, pelos “bitaites” do professor presunçoso. A presunção é a capa dos fracos de espírito e Ozon é simultaneamente dos mais inteligentes e menos vaidosos dos cineastas, mas também é dos mais perversos. A sua escrita fílmica tem-se tornado cada vez mais imprevisível filme após filme, ainda que evidenciando uma muito ilusória “ausência de esforço” . De Dans la maison ao mais recente Été 85 (Verão de 85, 2020), passando ainda por L’amant double (O Amante Duplo, 2017) e Grâce à Dieu (Graças a Deus, 2018), só para citar mais dois títulos, Ozon colecciona “exercícios de escrita” muito habilidosos, que, enquanto nos divertem – nos divertem de maneira superficial, entenda-se -, lá vão, nas entrelinhas, minando as fórmulas tradicionais do thriller sob a capa de uma bem falsa leveza literária – capa essa que vai sendo levantada, em jeito de strip tease intelectual, permitindo verificar, à maneira não de um Hitchcock mas já de um Brian De Palma francês, que o que está sendo posto em jogo é quase sempre a própria mecânica do filme na relação com o espectador. Dans la maison é capital para se perceber este movimento em direcção a um cinema que é puro exercício de escrita ou puro exercício intelectual comandado pelo efeito do novelo e das palavras e acções que o vão desenrolando, a velocidades muito variáveis e traiçoeiras.
É isso que me seduz mais aqui, neste Ozon, neste Ozon desde Dans la maison: este é um filme tomado pelas suas personagens e por um certo modo de estas se – e nos! – emaranharem numa teia narrativa tão trabalhada que acaba por correr o risco de se tornar simplesmente má. Quando digo “má”, digo: “mau cinema”. Ozon – como sabemos de outro filme subestimado e muitíssimo “de palmaniano”, Une nouvelle amie (Uma Nova Amiga, 2014) – não tem medo do kitsch, das soluções visuais e narrativas esdrúxulas ou inverosímeis (as mais esdrúxulas e as mais inverosímeis, por vezes). A sua imaginação é tão inteligentemente perversa que este não tem receio de “sacrificar o bom cinema” em benefício desse exercício de tomada de poder das personagens sobre a história. Com efeito, há sempre dois tabuleiros, onde Ozon joga, a dada momento nos seus filmes, de maneira simultânea: a história no filme e a história do filme, a história que é narrada e a narração propriamente dita. Se uma das personagens – no caso, o professor – impõe más soluções através das suas lições académicas e serôdias, pois então é “natural” que a narração acabe reduzida a uma mão cheia de clichés ou termine sequestrada por fórmulas mal temperadas.
Pois bem, a última imagem de Dans la maison é um “Hitchcock de trazer por casa” tão excitante quanto liminarmente tosco: uma fachada de um prédio moderno é “objecto” de todo o tipo de efabulações por parte do aluno e o seu professor, agora já “ex-professor”. Num banco de jardim, os dois brincam aos escritores, imaginando narrativas associadas a cada “quadrado” dessa fachada (cada janela ou apartamento). É um Rear Window (Janela Indiscreta, 1954), mas “jogado” de fora para dentro, de um exterior para vários interiores. O movimento narrativo continua a obedecer à regra – a única que se manteve relativamente inviolada ao longo do filme – estabelecida pelo aluno: “não sair dos limites de uma casa”. Como o predador que mede a distância em relação à presa, o aluno, na companhia do tutor caído em desgraça, congemina o futuro da próxima ficção. Tenho quase a certeza que, se o filme continuasse, e mostrasse o resultado destas novas “investidas literárias”, a qualidade do cinema baixaria ainda mais, porque Dans la maison é, no fundo, a história de um mau escritor, que vai perdendo a vontade de fazer a barba, a tentar dominar e ensinar um óptimo escritor sem pêlo que se veja no rosto, sendo que este último nunca contestou – e certamente não contestará, como indica esse final parahitchcockiano – a relação de poder previamente instituída.
O vilão da história – porque acaba por matar o bom cinema contido na história que nos é narrada logo no início, na primeira redacção – não é, assim, o puto de inteligência pervertida, voyeurista, de intenções obscuras e olhar gélido, mas o professor de classe média, homem muito seguro de si quanto à sua alta educação e sensibilidade estética, mas cozinhando por dentro, a altas temperaturas, as suas mil e uma frustrações enquanto escritor fracassado. O rapaz – alter ego de Ozon aqui – não é o mau da fita, mas também não é o herói – de facto, se calhar é só mesmo isso: um alter ego do narrador-mor, o próprio Ozon. O cinema de Ozon tem apostado, a espaços genialmente, nisto, quer dizer, na destruição de vários lugares-comuns associados às narrativas tradicionais e na traição aos limites da própria imaginação, aliás, uma imaginação delimitada por aquilo que ele visa destruir, esses mesmos lugares-comuns. Faz lembrar a térmita ou todos os insectos que se alimentam da sua própria destruição. E como é divertido ver e participar virtualmente neste rico e imaginativo trabalho de destruição.
Dans la maison está disponível na plataforma de VOD nacional, Filmin. Outros filmes citados – e recomendados – neste artigo presentes na dita plataforma são: Une nouvelle amie, L’amant double e Grâce à Dieu.