Em Dezembro de 2020, a convite do Goethe-Institut em Lisboa, o walshiano Carlos Natálio e o crítico e programador austríaco Patrick Holzapfel, trocaram algumas missivas digitais refletindo sobre o passado recente de uma confinada espera pelo cinema, os efeitos da desmaterialização da experiência daquele pelo digital, e a importância da dimensão física e comunitária do encontro na sala. Mal sabíamos que, menos de um mês depois, voltaríamos a assistir a mais um fecho das salas e a mais um rigoroso confinamento para travar a interminável pandemia. É já neste contexto que republicamos aqui o texto originalmente lançado na revista digital do Instituto, integrado agora também na sequência de textos que têm vindo a ser publicados decorrentes do manifesto Let’s get physical: contra o fim dos suportes físicos, a favor da liberdade do espectador, redigido pelos editores do À pala de Walsh.
Olá Patrick,
Ainda não nos conhecemos. Mas sei que pertencemos à mesma família, ao mesmo país: o do cinema. Um país cujas memórias são partilhadas através de gerações, países, formas de ver. Temos parentes em comum — personagens — e vivemos, de forma diferente, as mesmas coisas, palmilhámos os mesmos caminhos, chorámos e rimos as mesmas lágrimas e sorrisos.
Olá, Patrick. 2020, foi um ano do caraças, não foi? Subitamente, num abrir e fechar de olhos, estávamos no meio de um filme catástrofe, o cinema parecia ter cumprido as promessas distópicas de um final dos tempos, de uma desconfiança do outro, de uma ordem estatal nas ruas. Romero, Orwell, Huxley, Mad Max. Tudo já visto, mas agora aqui.
Mas nestes tempos, confesso-te, lembro-me de uma coisa distante. Estava calor, os dias eram longos e eu tinha 15 anos. Estava confinado. Os meus pais tiravam as suas férias em junho/julho. E por isso, agosto era um mês-deserto. Nada para fazer, sem amigos perto, sem aulas, ouvia-se o tédio, zumbindo nas paredes e móveis. Confinado, saía apenas a horas regulares. Duas vezes por dia, e sempre o mesmo destino. O clube de vídeo do meu bairro. Alugava filmes e via-os numa televisão velha pelo dia afora, pela noite dentro. Que doença contagiosa! Os anos foram passando e a descoberta do cinema continuou a ser feita pelos cinemas — os comerciais, os da Cinemateca, os das aulas da Universidade. Mas sempre com os ecrãs grandes que substituíam essa minha primeira forma de ver cinema.
Nem terá sido tanto a pandemia, mas sim o digital, a “confinar” o cinema. Quer dizer, o cinema é uma arte do confinamento. Mas um confinamento acompanhado, público, uma solidão no meio da multidão,
Num sopro, vinte cinco anos passaram. Na manhã de hoje vi dois filmes, um documentário canadiano passado na Roménia e um outro a partir de imagens filmadas em criança por uma talentosa cineasta argentina. Não havia cinemas para meter lá estes pedaços de cinema. Uma plataforma, links, um ecrã de computador. Nem terá sido tanto a pandemia, mas sim o digital, a “confinar” o cinema. Quer dizer, o cinema é uma arte do confinamento. Mas um confinamento acompanhado, público, uma solidão no meio da multidão, como diz a expressão. Esses outros que estavam ao nosso lado — um índice da comunidade, da diversidade — já não estão connosco da mesma forma. Estão à distância de um post. Mas digo-te, Patrick, sempre que posso amplifico o digital na parede do meu escritório. Não posso ter as pessoas ali, mas posso ter ainda qualquer coisa do ritual.
E que é feito do nosso tempo sem rituais? O tempo do n’importe quoi é o tempo sem rituais, é o tempo da prisão emocional e intelectual. O cinema sobrevive nesse ritual religioso, nesse espaço da separação, em que acedemos a um portal para uma outra vida. Quando amplificamos um rosto num close up estamos no respeito pelo outro, no verdadeiro cara-a-cara, na dignidade da troca entre os seres.
Dito isto, que sentido faz tornar o ecrã uma superfície indistinta? Um mesmo espaço desritualizado, onde se partilha o cinema, o ecrã das redes sociais, do acesso à informação, da televisão, das SMS? A economia ditou essa ubiquidade do mesmo ecrã, um canivete suíço da eficiência, do stream pulsional que faz lembrar o drogado nas slot machines.
O cinema precisa de reivindicar o seu tempo (mais do que o seu espaço) e isso é a dificuldade que a pandemia tornou mais evidente. E era esse o papel das salas de cinema — escrevo no passado, eu sei — um espaço ritualizado que preservava uma forma de experimentar o tempo. Em concreto, uma forma rendilhada de tempo a que chamámos montagem. Mas como é difícil separar a lucidez da nostalgia…
Um abraço cinéfilo,
Carlos Natálio
Caro Carlos,
Fiquei muito contente por receber a tua mensagem, pois fala de um cinema que conheço.
Não tenho a certeza se este ritual sobre o qual escreves é realmente tão social como costuma ser descrito. Isso prende-se, provavelmente, com o que se entende por “social”. Pessoalmente, vi-me muitas vezes refletido na observação de Jean Renoir de que o filme é também uma arte muito íntima, que fala a uma pessoa de forma direta. Tive as minhas melhores experiências cinematográficas sozinho ou em grande intimidade com outra pessoa.
Se, como Truffaut disse certa vez, o cinema é um lugar para os loucos e doentes, talvez mesmo o único lugar onde estes podem ser livres, onde podem fugir do mundo, então pergunto-me onde eles estarão nos dias que correm.
A propósito desta questão, não penso apenas em mim. Penso também nas pessoas que por vezes via nas filas à minha frente e mais atrás no cinema (estou a escrever num passado que, espero eu, também venha a ter futuro). Um homem velho com um casaco cheio de buracos, que escondia o seu cão debaixo do assento, outro que só via no cinema ou, com um olhar fixo, atrás da janela de um restaurante de fast-food, uma mulher que entrava a correr na sala como se tivesse de esconder-se do mundo, outro homem que trazia sacos com jornais, sobre os quais se deitaria a dormir à noite. Muitas vezes deixavam-nos entrar gratuitamente no cinema e os vienenses que eram podres de ricos costumavam manter alguns lugares de distância (de forma deliberada e ainda sem pandemia) e torciam o nariz. Quando vimos Ladrões de bicicletas juntos, toda a gente chorava, uns porque sabiam e outros porque não sabiam. Pergunto-me o que será que estas pessoas fazem sem o cinema? Se, como Truffaut disse certa vez, o cinema é um lugar para os loucos e doentes, talvez mesmo o único lugar onde estes podem ser livres, onde podem fugir do mundo, então pergunto-me onde eles estarão nos dias que correm.
O mesmo ritual que, em tempos, teve a aspiração utópica de nos tornar iguais diante do ecrã, prende-nos agora a todos. Contudo, acho que nos últimos anos tem havido não apenas uma desritualização tecnológica, mas também uma desritualização moral. Não raras vezes, as imagens, mesmo quando projetadas neste espaço especial, estão contaminadas. Não por um vírus, mas pela lógica da atenção, pela estética, pela paranoia daquilo a que tu chamas desritualizado.
Diria antes que se trata de uma concentração, de uma escola de percepção. Afinal, o cinema como espaço — ou, como escreves corretamente, o cinema como tempo — ensina-nos a olhar para o mundo e não o contrário. Gostaria que me dissesses uma coisa: como sentes tu esses passos que te levam da escuridão do cinema de volta à luminosidade do dia ou da noite?
Um abraço para ti também,
Patrick Holzapfel
Olá Patrick,
Também me lembro bem das pessoas que conheci para quem o cinema era literalmente abrigo, uma casa. Essa é também a função social do cinema, a de abrigar da intempérie, da chuva, do mau tempo que por vezes a sociedade faz incidir sobre nós. O que coloca a questão, talvez tola: Qual a função de um abrigo (cinema) quando temos, pandemicamente, que viver, a todo o tempo, em modo abrigado? De que abrigará o cinema?
Qual a função de um abrigo (cinema) quando temos, pandemicamente, que viver, a todo o tempo, em modo abrigado? De que abrigará o cinema?
Mas quanto à experiência do cinema, concordo sempre contigo, ela é individual. Mas o bonito do cinema como ritual de sala é que era uma individualidade partilhada no tempo e no espaço. Como as crianças que gostam de sentir a presença das mães no quarto até adormecerem, ou as pessoas que trabalham sozinhas num café rodeadas de reconfortantes estranhos. Ter aquela sensação de grande família, de companhia enquanto cada um vive e sente o que tem para viver e sentir.
A escuridão de que falas talvez pressuponha o não ver, o sono, o descanso. Mas ela é, creio, o outro lado do ver. Há um livro que foi muito importante para mim — 24/7: Late Capitalism and the Ends of Sleep, de Jonathan Crary — precisamente porque o seu tema é esse combate à escuridão. Pois a escuridão é o tempo em que não produzimos nem consumimos. A projeção do cinema era uma forma de inverter a contemplação do original de uma pintura por exemplo, mas ainda conservava algo dessa mesma contemplação (distraída). Penso na lógica do stream — da corrente — ou do feed — da alimentação — e em como o cinema deveio conteúdo (cada vez mais indistinto) para essa corrente, para essa contínua máquina de alimentação, que procura afastar-nos desse tempo do “sono reparador”, um tempo da escuridão e da digestão…
Quando surgiu a pandemia e a obrigação de ficar em casa, quantos festivais, exibidores, agentes culturais, críticos, decidiram avançar com o seu top de “filmes para a pandemia”, ou de “filmes que não pode perder enquanto está em casa”, ou ainda “filmes sobre doenças e prisões e recolhimento”. Era uma batalha campal de tops. Fico com a sensação de que, desta amálgama de conteúdos, toda a gente estava a sugerir, a guardar para mais tarde, e pouca gente de facto a ver. É nesse sentido que falo nessa indistinção, em que estamos banhados nessa corrente ininterrupta de conteúdos que aniquila o desejo, isto é, a curiosidade, e que apenas fomenta movimentos bruscos de consumo pulsional. Como se o digital se tivesse tornado uma máquina performativa que já nem precisa de conteúdos, basta o gesto técnico de manipular, sugerir, colar, partilhar, compilar, etc.
Termino perguntando-te como imaginas as idas ao cinema (comercial e festivais) após terminar esta experiência de pandemia.
Um abraço “tuga”,
Carlos Natálio
Caro Carlos,
Gosto do modo como ligas a escuridão à regeneração. Para mim, de facto, também está ligada à proteção, à ficção e à tão importante obscuridade do cinema. Estamos rodeados de imagens que fingem iluminar algo, que querem lançar luz sobre qualquer coisa, que mostram como ela realmente é. Isto é a internet, a televisão, a publicidade. Aí as imagens servem para informar, para apresentar provas, como o olho de falcão no ténis. Essa coisa qualquer é suposto ser atrativa, ser vendida. As imagens esclarecem, tornam claro, e desse modo também simplificam. Em contrapartida, o cinema, no âmbito do seu estado ideal, é um lugar onde as coisas são, na melhor das hipóteses, complexificadas, se movem numa certa obscuridade e permanecem tão intangíveis como a noite. Elas não tentam provar-nos nada, não tentam vender-nos nada. São o oposto daquilo a que chamaste uma alimentação.
o cinema, no âmbito do seu estado ideal, é um lugar onde as coisas são, na melhor das hipóteses, complexificadas, se movem numa certa obscuridade e permanecem tão intangíveis como a noite. Elas não tentam provar-nos nada, não tentam vender-nos nada.
Acredito que o cinema pode proteger-nos das imagens. À primeira vista talvez pareça paradoxal — especialmente olhando para o que hoje em dia se entende por cinema em algumas partes de Hollywood —, mas o cinema pode de facto ensinar-nos que uma imagem não tem automaticamente um significado, que não é necessariamente legível. E o espaço onde é projetado tem tanto a ver com isso como o próprio filme. Esse espaço protege-nos do ruído do tempo.
Quanto à tua pergunta, o modo como imagino a ida ao cinema depois da pandemia: a verdade é que, para mim, ao longo dos últimos anos a experiência cinematográfica já se tem vindo a esgotar, simplesmente por causa dessa constante alimentação e disponibilidade. Acabou por haver uma certa saturação. Tornou-se cada vez mais fácil ser cínico. Já não entendia este lugar como um espaço de exceção, via-o já desprovido da sua aura. Tornara-se a regra. No entanto, o facto de, durante algum tempo, ter deixado de dispor dessa escolha, de não poder ir ao cinema, foi para mim revelador. Por isso, quero apenas dizer que pretendo ir ao cinema com os olhos bem abertos, com os olhos abertos para a escuridão.
Tudo de bom,
Patrick
PS: E temos de continuar a tentar compreender o que é o cinema. Não apenas quando este nos falta.
Olá Patrick,
Conheces a expressão “O Natal é quando um homem quiser”? Pois… Refletia sobre ela a propósito das tuas palavras acerca das imagens que fingem iluminar algo, uma iluminação de Natal em todos os dias do ano. Milenarmente sempre desconfiámos das imagens, como simulacro de uma “realidade”, como duplo. E é por isso que o cinema foi tão importante: um sistema onde se trabalhava com “simulacros”, mas que estava aberto a essa dimensão do ilegível, daquilo que não é vendável; ou então, mesmo quando manipulável para fins económicos ou políticos, a democracia da presença das coisas e a sua materialidade bruta, sempre ajudavam a trair o propósito da veiculação de uma ideia fixa ou mensagem.
Natal é quando um homem quiser. Essa vontade de poder recriar o Natal é também a mesma vontade que pode usar as imagens da publicidade, do audiovisual, das campanhas políticas para criar o “seu próprio Natal”, isto é, a sua própria versão da realidade. “Sim, eu ganhei as eleições”, diz Trump. “Sim, a terra é plana”, dizem os flat Earthers. E isso liga-se ao que dizes sobre a nossa disponibilidade. O cinema, as imagens acabam por funcionar como legos, que usamos para construir o nosso “tailor-made world”. Ou como meros espelhos das nossas crenças sociais, políticas, etc, fechando nós os olhos à diversidade, àquilo que nos contraria e nos faz perder o tempo que sempre vamos perdendo. Assim começam as guerras. É um mundo em que a frase “Eu estou errado” deixa de fazer sentido, ou mesmo a frase “Isso depende do ponto de vista”. Em que se caminha para a frase “Eu estou certo, os outros estão errados”, simplesmente porque não os vejo, não sei quem são, são um índio selvagem, sem alma, no início do género western.
Não quero chocar, nada disto é novo, é como uma maré que vai subindo e só estou um tanto assustado. Como estamos já distantes da ingenuidade emancipadora do “chacun son cinèma”, que anunciava os espaços da diferença. E desse “mandamento” da educação para o cinema que procurava mostrar às crianças e aos jovens que os filmes e o seu cinema não eram apenas instrumentos para a História, a Sociologia, o Português/Alemão. Talvez hoje tenhamos que dar um passo atrás e falar de uma educação para a educação, um espaço que contraria esse “at your service”, que deveria dar-nos “secas”, transtornar-nos ao ponto de não sabermos o que pensar, ou o que fazer.
Estou cansado de ter de concordar ou discordar dos filmes. Reivindico o meu direito a não saber, a não querer tomar partido, a manter-me improdutivo na saúde bartlebiana da impassividade. Compreender o cinema implica manter uma distância, preservar o sono da incerteza, não aderir como fiel de um templo ou consumidor de uma visão do mundo.
Desejo-te um Feliz Natal!
Carlos Natálio
Caro Carlos,
Desde a última vez que me escreveste, a Áustria entrou uma vez mais em confinamento, mais um mês sem cinema. Tenho-me perguntado se se pode desaprender a ir ao cinema. Digo isto num duplo sentido, ou seja, por um lado de uma forma muito concreta, mas por outro da forma como já descrevemos, quando os filmes são e devem ser outra coisa, mas tudo é servido em bocadinhos facilmente digeríveis.
Desde a última vez que me escreveste, a Áustria entrou uma vez mais em confinamento, mais um mês sem cinema. Tenho-me perguntado se se pode desaprender a ir ao cinema.
Imaginei, pois, que já não sabia como ir ao cinema. Não como Bartleby, que também duvido que fosse ao cinema, mas mais como Estragon em À Espera de Godot. Espera-se, espera-se, até que, nesse processo, se acaba por esquecer. Esquece-se o tempo e, ao tentar contar o que aconteceu no dia anterior, começa-se a esquecer. Como se o esquecimento nos permitisse sobreviver.
E depois o quê? Vou ao cinema como se fosse a primeira vez? Ou será que já nem me lembro de que há um cinema? Será que passo diante dessas antigas salas de cinema como o faço diante de tantos outros edifícios cujo significado me escapa? Lembro-me do espanto ou de como se chora?
Não é que haja algo de novo nisso. Esquecemo-nos constantemente, negligenciamos, reprimimos, mas depois surge mais uma qualquer máquina nova que nos diz que está tudo bem. Contudo, desde que nos sentemos aqui à espera, à espera de Godot, do cinema ou de outra coisa qualquer, talvez algo se possa tornar visível. E isso já não seria pouco.
Feliz Natal também para ti, embora receie que também esta época festiva nos faça esquecer qualquer coisa.
Patrick
(um agradecimento especial à Corinna Lawrenz, pelo convite para a escrita do texto e ainda responsável pela tradução alemão-português, português-alemão).