As aulas de António Reis na Escola de Cinema, baseadas em programas curriculares de poucas linhas, giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro, companheira de vida e de trabalho, teriam como essenciais, títulos recuperados pelas vozes de antigos alunos no catálogo que o Cineclube de Faro publicou sobre o trabalho dos dois cineastas[i], no seguimento da morte de Reis.
Parte de uma série de documentos fundamentais para o conhecimento dos dois autores – entrevistas, fotografias, críticas aos seus filmes, história da sua recepção – a lista surge sob o chapéu do magistério de Reis, mantra que ainda hoje ecoa nas memórias, nos olhos e nas mãos daqueles alunos. O catálogo de 1997 e outros esforços mais recentes de recuperação do legado do casal, acolhem a actividade lectiva do realizador como central, determinação perfeitamente justificada se nos lembrarmos que a obra de Cordeiro e Reis se estabelece em diálogo directo com as suas vidas e as actividades que as constituem – a poesia, a psiquiatria – e com outras artes.
A pergunta a que às vezes volto, e que me proponho explorar nestes apontamentos, é o que posso encontrar nesta lista que se relacione com o resto (da vida e da obra), se haverá nela um sentido possível e que sentido é esse – o que vê Cordeiro nestes filmes, o que queria Reis ajudar a aprender com eles? O programa de festas vai de 1916 a 1965, de Griffith a Godard, e está cheio de filmes tão canónicos que a sua inclusão no início de uma conversa sobre cinema (um programa curricular, neste caso) é auto-explicativa para qualquer cinéfilo. Mas depois do reconhecimento das evidências, assomam algumas questões, como se a excessiva familiaridade tornasse mudo o que era eloquente: porquê este Hitchcock, por que não aquele Eisenstein? A escolha deste ou daquele título (há realizadores que contam com duas e até três entradas) deverá algo à contingência – “porque havia uma cópia na Escola”, porque iam ver aquele filme ao IPC –; haveria elementos técnicos e estéticos que Reis achava particularmente proveitosos para as jovens almas de cuja educação o encarregaram; talvez algum dos filmes fosse simplesmente um dos favoritos do casal.
Em vez de ver Cordeiro e Reis como um ponto numa determinada linha, fim e princípio num caminho de continuidade, proponho olhá-los antes como fios de um grande tapete, onde, à la Warburg, há imagens e motivos que se repetem e reaparecem.
Em vez de dedicar-me aqui a uma exploração arqueológica que tente rastrear a origem precisa da lista e as suas motivações, interessa-me antes perceber o que revelam os filmes uns sobre os outros e sobre quem os escolheu, que conversas se estabelecem. Os participantes da lista influenciaram-se, por certo, mutuamente – Renoir e Ford a Welles, Bresson e Rossellini a Godard –, mas o conceito de influência não será o predominante aqui, dando-se primazia ao de afinidade – mais primos, menos pais.
O etnógrafo Jorge Dias, peça central para compreender o cinema de etno-ficção produzido em Portugal nos anos 1970 e 1980, corrente na qual Cordeiro e Reis se incluem, escreve na introdução à sua monografia Vilarinho da Furna: uma aldeia comunitária[ii]: “Em princípio, ainda que sem fundamento, não repugna aceitar uma organização social comunitária extensiva a todo o território ibérico e que existiu possivelmente em toda a Europa, imposta pelas condições da época e do ambiente” (Dias, 1948, p. 2). Comentando o modo de organização comunitário ainda vigente em Vilarinho, Dias atribui a recorrência desse modelo noutros lugares àquilo que caracteriza como um “simples fenómeno de convergência”. Em vez de ter como hipótese explicativa do fenómeno a influência entre povos, relações de contaminação, Dias levanta antes a possibilidade de condições idênticas levarem povos a comportar-se de maneira semelhante.
Longe de querer aplicar o mesmo princípio a esta minha incursão na história do cinema, parece ainda assim útil pensar, neste contexto, que cineastas reconhecem noutros cineastas gestos comuns e que é essa identificação que motiva a aproximação. Em vez de olhar Cordeiro e Reis como um ponto numa determinada linha, fim e princípio num caminho de continuidade (ideia sugerida por Reis nos seus poemas: “…Eu já sou uma Continuação dos Outros — como Outros serão uma Continuação de mim…”[iii]), vejo-os antes como um dos fios de um grande tapete, onde, à la Warburg, parece haver imagens e motivos que se repetem e reaparecem. Como um quirólogo, olho a lista como uma mão, órgão dos sentidos e ferramenta de trabalho, lugar de percepção e de actuação, onde ecos são revelados e produzidos.
Intolerance (Intolerância, 1916) de D. W. Griffith
Faust (Fausto, 1926) de Friedrich Wilhelm Murnau
La Passion de Jeanne d’Arc (A Paixão de Joana d’Arc, 1928) de Carl Th. Dreyer
The Wind (O Vento, 1928) de Victor Sjöström
Staroye i novoye (A Linha Geral/ O Velho e o Novo, 1929) de Sergei M. Eisenstein e Grigori Aleksandrov
Alexandre Nevsky (Alexander Nevskii, 1938) de Serguei M. Eisenstein
Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) de Orson Welles
The Magnificent Ambersons (O Quarto Mandamento, 1942) de Orson Welles
Vredens dag (Dia de Cólera, 1943) de Carl Theodor Dreyer
Germania anno zero (Alemanha, Ano Zero, 1948) de Roberto Rossellini
Stromboli Terra di Dio (Stromboli, 1949) de Roberto Rossellini
The River (O Rio Sagrado, 1951) de Jean Renoir
Viaggio in Italia (Viagem a Itália, 1953) de Roberto Rossellini
Johnny Guitar (1954) de Nicholas Ray
Un condamné à mort s’est échappé (Um Condenado à Morte Escapou, 1956) de Robert Bresson
The Searchers (A Desaparecida, 1956) de John Ford
Pickpocket (O Carteirista, 1959) de Robert Bresson
À bout de souffle (O Acossado, 1959) de Jean-Luc Godard
Sanma no aji (O Gosto do Saké, 1962) de Yasujiro Ozu
Il deserto rosso (O Deserto Vermelho, 1964) de Michelangelo Antonioni
Marnie (1964) de Alfred Hitchcock
Pierrot le fou (Pedro, o Louco, 1965) de Jean-Luc Godard
[i] Moutinho, Anabela e Lobo, Maria da Graça (org.) 1997. António Reis e Margarida Cordeiro – A Poesia da Terra, Faro, Cineclube de Faro.
[ii] Dias, Jorge (1948), Vilarinho da Furna: Uma aldeia comunitária. Porto: Instituto para a Alta Cultura: Centro de estudos de etnologia peninsular.
[iii] Reis, António (1948), Luz, Porto: Portugália