Com a publicação da Ophthalmographia, em 1632, o médico Vopiscus Fortunatus Plempius lançou (literalmente) novas luzes sobre a velha questão de como funcionam os olhos e de como se processa o sentido da visão. O cientista respondeu com um convite à experimentação. As indicações aconselhavam a utilização de uma sala escura, um olho de uma vaca recém-abatida e alguns ovos. Ele enfatiza “qualquer pessoa pode realizar essa experiência em casa, exigindo apenas um pouco de esforço e algumas despesas”. O procedimento implica que se corte, cuidadosamente, a parte traseira do referido glóbulo ocular, destacando todas as membranas e tecidos rugosos, deixando visível apenas a parte vítrea do olho. Acrescentando, “de pé, na sala escura, através do olho, verá uma pintura que representa perfeitamente todos os objetos do mundo exterior” (e aqui convirá sublinhar que a utilização da palavra pintura, remete para a forma de representação dominante no século XVII – hoje, esse processo remeterá o espetador, naturalmente, para a fotografia e o cinema).
No entanto há um paradoxo. A imagem do olho de vaca está do avesso, como numa camera obscura ou numa máquina fotográfica antiga. Essa imagem que o olho descobre resulta de um processo puramente mecânico e físico, na condução dos raios de luz para uma superfície sensível. Aquele olho decepado não compreende, não analisa, não interpreta a imagem. Ele apenas olha, inane. Esta relação do olho morto com a máquina fotográfica (e com o fotográfico em geral) é bastante produtiva, especialmente na aura de morte que permeia os dois “suportes”. O olho, morto, só revela imagens durante algumas horas após o abate do hospedeiro, como a câmara só revela imagens do que já foi, do instante que já morreu. Há que matar algo para que a imagens se produzam.
Images (1972), de Robert Altman, consubstancia a relação entre imagem fotográfica e morte numa espécie de tratado metafórico (e semi-aforístico) sobre o tema. Images é um dos melhores filmes do realizador e talvez o mais injustamente esquecido, isto porque o início dos anos setenta foi um período de notável atividade para Robert Altman. O filme surge entalado logo depois de M.A.S.H. (1970) e McCabe & Mrs. Miller (A Noite Fez-se Para Amar, 1971), e pouco antes de The Long Goodbye (O Imenso Adeus, 1973), California Split (Brincando com a Sorte, 1974) e Nashville (1975). Originalmente escrito pelo realizador em meados dos anos 1960, a trama descreve a “espiral descendente” do estado mental de uma escritora de livros para crianças (Susannah York), cujo marido (Rene Auberjonois) pode, ou não, estar a ter um caso extraconjugal.
Os fantasmas que a atormentam são irreais, ela sabe-o (“this is not happening”, comenta para consigo), mas sangram, e beijam, e fodem como toda a gente.
Tudo começa com um espanta-espíritos que se sacode ao vento, logo no primeiro plano. Pendentes tilintantes reaparecerão ao longo do filme em diferentes casas, em diferentes formatos, diferentes divisões e até há um pendurado no espelho retrovisor de um carro. Esta recorrência serve como auguro de uma dimensão fantasmagórica que permeará todo o filme. Altman opera segundo recorrências visuais e sonoras. Os espanta-espíritos são uma. Mas outras haverá, como a questão dos telefones (que ora se multiplicam no prelúdio, ora se extinguem completamente daí em diante), os óculos, binóculos e um visor estereoscópico que ressurgem em diferentes momentos de forma mais (ou menos) evidente (a visão é o sentido das images), os bifes que ficaram por comprar ou que já estão (afinal) na grelha, os cães com e sem dono, as silhuetas na paisagem, o nome de Cathryn sussurrado no escuro, os sobre-enquadramentos em janelas quadriculadas, os veados/unicórnios e, claro, uma máquina fotográfica de grande formato juntamente com as suas objetivas e filtros (mas nenhuma fotografia!).
O título, Images, é misterioso e o filme nunca o esclarece completamente, deixando, ainda assim, múltiplas pistas. Que imagens? Ao longo das menos de duas horas de filme só se concretizam duas imagens (no sentido “material” do termo): uma natureza morta, que o marido está a fotografar (cuja imagem descobrimos no visor da câmara, apesar desta nunca chegar a ser revelada – de notar, mais uma vez, a relação entre fotografia e morte) e um puzzle que se vai compondo, aos poucos, diante de nossos olhos, revelando, peça a peça, a sua… imagem. Estas duas formas de representação são bastante exemplificativas do processo pictórico de Altman: por um lado a natureza morta, forma de estruturação estética da morte, da passagem do tempo e do quotidiano; depois a fotografia, forma de fixação e revelação dessa interrupção compósita da vida; por fim o puzzle, imagem decomposta aleatoriamente cuja reconstrução implica um processo laborioso que revela uma representação.
Se André Bazin defende, na relação entre fotografia e morte, o poder memorialista de uma imagem e a possibilidade de, através da recoleção, evitar uma “segunda morte espiritual”, essa não é, de todo, a sugestão de Images (pelo contrário, a imagem fotográfica confirma uma segunda morte fantasmática). Essa imagem retalhada que se vai montando ao longo de todo o filme, aproxima-se mais da metáfora freudiana do trauma como câmara fotográfica. A câmara foi usada, nos primeiros escritos de Freud, para descrever o inconsciente como um “espaço onde pedaços de memórias são arquivados até ao momento em que são revelados, como impressões a preto-e-branco de um negativo, em memórias acessíveis pela consciência.” A narrativa de Altman funciona, então, como uma sessão de psicoterapia, sendo que, com cada peça do puzzle que se consegue encaixar, emerge das águas cheias de reagentes químicos uma imagem latente, a caminho de uma catarse. A questão (ou o dilema thirllesco) do filme prende-se com a dúvida (ou a confusão – “there is a piece that doesn’t fit”) instalada entre o que é, ou não, real nesse processo de libertação do trauma (e quais as consequências dessa “libertação” – tema que exploraria, e aprofundaria, cinco anos depois, com 3 Women [Três Mulheres, 1977]).
Ao longo de Images o campo/ contra-campo torna-se uma forma de interrogação sobre a natureza fragmentada da identidade de Cathryn, confundindo-se, propositadamente, planos subjectivos e objectivos.
Por tudo isto as imagens a que o título se refere são, naturalmente, formas de projecção interior (isto é, cinema?) de uma mente perturbada. Cathryn, percebe-se rapidamente, vive atormentada por visões que se confundem e mesclam com o real. Assombrações psicanalíticas da sua memória, excitada pela possibilidade uma traição por parte do marido. Como em Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1999), de Stanley Kubrick, também aqui é a “imagem mental” de uma traição que espoleta toda a ação. Os fantasmas que a atormentam (recordando-a da sua própria infidelidade) são irreais, ela sabe-o (“this is not happening”, comenta para consigo), mas sangram, e beijam, e fodem como toda a gente. Altman constrói um ambiente de incerteza, onde tudo é posto em causa e as consequências danosas de cada acto dependerão dos efeitos destrutivos sobre o real… ou a imagem do real.
Isso é literalizado por uma das mais fabulosas cenas do filme, quando Cathryn, cansada do inoportuno espectro do seu antigo amante já falecido, decide disparar sobre ele o cartucho de uma caçadeira. Quando a arma dispara ela mata o espectro do amante e, consequentemente, destrói a câmara fotográfica. Cathryn, nesse momento, tenta destruir a manifestação material (porque sensível) daquela memória viva – uma imagem – e para isso acaba por destruir também a ferramenta que corporiza essas mesmas memórias, a máquina fotográfica. Para matar o espectro há que matar o sistema de representação deste (não por acaso há uma reencenação d’A Criação de Adão de Michelangelo, onde Cathryn faz de Deus e o fantasma de Adão – a criadora de espectros mentais revoltada e apaixonada com as suas criações).
Tudo isto é concretizado com uma enorme subtileza gore, com Altamn a filmar com uma extraordinária câmara lúbrica que se delicia em zooms e elegantes movimentos de câmara e numa montagem que inventa um ménage à quatre fantasmático (“you could call it an orgy”) ou constrói um flashback simplesmente atravessando uma porta no meio da noite. E mesmo a máquina fotográfica, personagem silenciosa sempre presente, sendo de certo modo o centro das atenções, apenas surge como elemento enigmático que (literalmente) acompanha as dúvidas da protagonista.
Ao longo de Images o campo/ contra-campo torna-se uma forma de interrogação sobre a natureza fragmentada da identidade de Cathryn, confundindo-se, propositadamente, planos subjectivos e objectivos. E tudo terminará com um freeze frame de um cadáver (ou como se diz em português, um paralítico: o estatismo da morte dentro da imagem estática dentro da imagem em movimento) e uma sobreimpressão de dois rostos (no vidro de um carro – o adulto e a criança encontram-se) que funcionam como a machadada (facada) final numa espécie de modelo conceptual erguido por Robert Altman que entende as formas do cinema como esquemas visuais para os distúrbios psicológicos. Se nesse processo há uma espetacularização da doença mental (ainda que sempre elegante e delicada), há, mais que qualquer outra coisa, uma reflexão sobre a ontologia da imagem (fixa e em movimento) e, consequentemente, uma reflexão sobre os limites da realidade.