Ozu tinha também poucas esperanças de que os estrangeiros pudessem apreciar o seu trabalho: «Eles não percebem — por isso é que dizem que é Zen e coisas do género». Ao que Shinbi Iida, o crítico com quem estava a conversar, acrescentou, «Sim, eles tornam tudo enigmático».
Donald Richie, Ozu, 1977 [Tradução de António Nuno Júnior da nova edição portuguesa publicada pela The Stone and The Plot].
1963, Janeiro. O elegante e delgado Kijû Yoshida comparece ao jantar de Ano Novo organizado pela produtora Shôchiku que reunia alguns dos seus mais célebres e promissores realizadores. O escrupuloso cineasta, então com 29 anos, afamado pelas propensões filosóficas e por um inflexível mas cerebral sentido crítico, era o mais novo do grupo. Sentado no canto da mesa, como mandam as normas de etiqueta social, podemos imaginar que adoptava um silêncio fino, mas não deferente, o tipo de quietude de quem se quer manter firme perante as suas convicções sem agitar as águas ou polemicar desnecessariamente. Depois do banquete, uma figura marcha sem pressa para o canto do benjamim. Tal como num dos seus filmes, senta-se à sua frente e serve-lhe copos de maneira reiterada sem pronunciar uma palavra, porventura retribuindo o mutismo atrevido com a taciturnidade de um sorriso pálido. Era Yasujirô Ozu, com 59 anos, desconcertando a juventude do novato com quatro longas metragens feitas.

A razão deste hipotético desconforto era simples: nesses anos, o estúdio esforçava-se em patrocinar uma recém gerada linha de realizadores anti-sistema, na qual Yoshida estava inserido, que variadas vezes tinha manifestado uma desconexão, mesmo discórdia, com a geração que lhe precedia. Yoshida, um ano e pouco antes, inclusivamente chegara a reprovar Ozu numa crítica por este ter alegadamente inserido cenas em Kohayagawa-ke no aki (Fim de Verão, 1961) que eram indulgentes para com os jovens, questionando mesmo a integridade artística do cineasta até esse ponto. E, no entanto, o velho mestre – desconhecendo que esse seria o seu último ano de vida e que mais não filmaria – fazia questão de encarar o jovem crítico de frente, descartando a linguagem em virtude do gesto – algo por si só ozuesco. Segundo o próprio Yoshida, que, assombrado, documenta este episódio nas primeiras páginas da sua monografia sobre Ozu, a noite assemelhava-se mais a um velório do que a uma festa. E depois veio a boutade, conclusão lógica da prolongada ausência verborrágica. Yoshida rememora:
Enquanto bebíamos, e, começando a ficar um pouco embriagado, Ozu endereçou-se a mim nestes termos: “Os realizadores de cinema são como prostitutas cobertas por um casaco de palha que arrastam os clientes para debaixo das pontes.” Era assim o humor de Ozu: tinha um modo de se exprimir por via da jocosidade. Ele queria relembrar que o cinema não poderia passar sem o investimento monetário. Também queria questionar-me se poderíamos continuar a fazer filmes sem pensar nas entradas de bilheteira. O verdadeiro sentido desta frase permanece obscuro, portanto. Mas será mesmo necessário esclarecê-lo? Ozu falava de tudo em tom de brincadeira e detestava que levássemos aquilo que dizia como se fosse a palavra de um evangelho.
Kiju Yoshida, Ozu ou L’Anti-Cinéma, 2004 [Traduções do autor, excepto se for mencionado o contrário].
“Como se fosse a palavra de um evangelho…” E, todavia, é-nos impossível pouparmos a essa tentação. Há um quantum de sabedoria proverbial em todos aqueles que habitualmente se expressam pouco. Quando o fazem, o poder sentencioso e parabólico é maximizado ao infinito, como se ao silêncio se seguisse um acorde musical curto porém pleno, para novamente desvanecer na placidez sonora. No caso de Ozu, esta qualidade de douto discreto é agravada: para além de nunca aspirar a ser um teórico (nem tão pouco um intelectual), tudo na sua estilística aponta para o reverso. É a sede de sistematização, tendemos a crer, que vibra na sua gramática cinematográfica. É, digamos assim, a praxis, ocultadora da theoria, que faz o espectador atento inverter a relação de forças, reconstituindo uma theoria por peças para alumiar a praxis supostamente auto-evidente. Pede-se, então, ao fantasma do cineasta esclarecimentos directos dentro dos confins da linguagem – como se fosse preciso clarificar imagens, como se elas não bastassem.
Escavamos tanto nos discursos directos raros do autor como nos relatos de quem o conheceu, sacralizando a dimensão mais esquiva e decididamente mais volátil do seu testemunho artístico. Nasce assim uma espécie de mitologia das máximas vagas, segredos sussurrados que ecoam nas cabeças de obsessivos debruçando-se numa obra com intuito de desvendar um enigma. E Ozu é, com efeito, o mais enigmático dos cineastas, ou talvez o mais translúcido de todos, mas é por estas duas dimensões nunca se destrinçarem e jogarem às escondidas uma com a outra que a primeira toma sempre a dianteira da segunda: a claridade cega. Também Yoshida, tornando-se vítima e criador da evangelização ozuesca, vai contra a sua advertência prévia e narra um segundo encontro com o mestre, dez meses mais tarde, aquando de uma visita ao hospital. Ozu definhava com o cancro que lhe ceifaria a vida, mas o relato seguinte adquire a natureza de uma revelação perturbante. Será embalado pelos trilhos insondáveis deste balbucio no leito de morte que o autor de Ozu ou o Anti-Cinema convoca a imagem de um cineasta paradoxalmente disruptor:
Lembro-me muito bem desse dia de Outono fresco e chuvoso. Quando entrei no quarto, o seu corpo outrora tão imponente, aparecia-me agora diminuído. Ele já não era o mesmo. Agradeceu-me a visita e depois calou-se. E eu não soube o que dizer vendo-o nesse estado. Foi então que, no momento da minha saída, Ozu murmurou: “O cinema é uma escrita dramática, não uma sucessão de acidentes.” Repetiu-o duas vezes, em voz baixa, como se falasse consigo mesmo. Foram as últimas palavras que ouvi dele. Morreu dois meses mais tarde, no dia 12 de Dezembro de 1963, no dia dos seus sessenta anos.
Idem, ibidem.
A que poderá corresponder esta exigência de significação, sobretudo se considerarmos a altura em que foi proferida bem como o destinatário da mensagem? Seria mais uma das provocações levianas de Ozu, uma das suas partidas? Se o cinema dele é “escrita dramática”, então ele não é “uma sucessão de acidentes”. Este enunciado de identidade perante a diferença surpreende nem que seja porque dinamita um certo entendimento que se pode fazer acerca do seu cinema – não se acha dele, a maior parte das vezes, precisamente o oposto? Afinal, o que o diferencia dos supostos cinemas logocêntricos do Ocidente senão a distensão do presente narrativo até se trivializar, por completo, as preocupações, os avanços e recuos da trama? Não era este o cinema da rotina, que ia da infinidade ao cosmos e não do cosmos à infinidade? Dirigindo-se aos seus futuros apreciadores, parece que o próprio Ozu previa os perigos da sua obra se ozuizar, ficando aprisionada numa marca estilística conspurcada por bocas alheias em oposição à regularidade dos “outros cinemas”.
Ora, na declaração a Yoshida, parece haver uma estranha reivindicação de uma ortdoxoia fílmica, ou seja, uma pertença ao status quo criativo, mas a sua necessidade expressiva surge só no decorrer do esclarecimento de um possível erro de leitura, isto é, quando o cinema de Ozu se mitifica. Não a despropósito, o mais influente dos críticos japoneses, Shigehiko Hasumi, no seu Ozu fez questão de assinalar, uma e outra vez, que a monolítica adjectivação presente nos termos ozuesco ou ozuidade tem de ser destilada no contacto, filme a filme ou de um filme com os outros restantes, até ao ponto em que tal definição se torne irreconhecível. É começar o filme com os olhos e não com a cabeça. Hasumi traça a proveniência desta décalage entre mito e realidade:
Se toda a gente conhece Ozu e crê poder viver uma situação ozuniana como se se tratasse de uma situação sem perigo, isso é porque poucas pessoas sabem olhar para os filmes. Aquilo que é ozuniano é um jogo que se torna possível depois de se ter eliminado a imagem, jogo esse sem qualquer relação com o cinema. No instante em que olhamos realmente para um filme, não nos podemos divertir mais como num jogo. Porque, uma vez observando, nenhum dos seus filmes se assemelha ao que é pretensamente ozuniano. (…). A única regra que podemos apreender ao ver os filmes de Ozu, é que o seu cinema não se sobrepõe jamais àquilo que é ozuniano, e que o jogo consiste em abandonar-se à décalage que encurta ou alonga as distâncias. Este jogo entre mito e realidade chamado de décalage é eminentemente social. Podemos substituir o epíteto «social» por «burguês», pois este prazer de jogar com o mito, esvaziando por completo a imagem real que devíamos ver constitui uma atitude histórica relativamente recente. (…). Aquilo que é ozuniano, sendo assim preservado, impossibilita a décalage do cinema de Ozu de atingir a consciência. Vemo-nos assim, no meio do acontecimento, e escapamos à mudança. (…). É nesta perspectiva da décalage entre mito e realidade que eu vou analisar o universo fílmico de Yasujirô Ozu.
Shiguéhiko Hasumi, Yasujirô Ozu, 1998.

Mas voltemos à “escrita dramática”. Mesmo um autor como Paul Schrader, que, segundo Hasumi, integra o rol de culpados da ozuização de Ozu (os que afirmam a sua diferença essencialmente pela negativa, por aquilo que ele não é por oposição ao que o cinema se julga normalmente ser), mapeará uma fórmula na concepção dramática nos filmes do realizador. Segundo o argumentista de Taxi Driver (1976) na obra Transcendental Style in Film, a escrita de Ozu obedece a uma fórmula transcendental exposta sumariamente em três momentos: 1) “a representação do quotidiano”, 2) “a disparidade entre o homem e o seu meio que culmina numa acção decisiva”, 3) “a estase, uma visão congelada da vida que não resolve a disparidade, antes transcende-a”. Poderíamos deter-nos na elucidação de cada um destes pontos, mas interessa-nos aqui a assunção deste projecto definido como formalista que encara o percurso narrativo como a simulação progressiva de uma epifania. Neste sentido, a “sucessão de acidentes” sem substância diegética podia inserir-se apenas na primeira etapa do master plan, estando lá para espoletar o arranque do estilo transcendental. Poderíamos dizer que o quotidiano é sucessivo e acidental apenas por distracção e quanto mais assim ele nos parece, mais bem “escrito” ele está. O quotidiano é, pois, roda dentada na engrenagem da estase, mero estádio iniciático e jamais um fim em si mesmo.
Será Ozu, portanto, um formalista, um mero desembargador de regras prescritas? Era nisso que se baseava a expressão “escrita dramática”, afinal? Como se o velho mestre no fim de vida tivesse a ousadia de desmascarar-se apontando para uma edifício artístico inquebrável e fechado, levantando o véu da fórmula sigilosa? Ou seria simplesmente uma advertência resmungona para a nova geração (a de Yoshida) que se entretinha a desconstruir estórias por via do absurdo e da linguagem da carne? Uma chamada de atenção para o valor da narratividade do cinema? É Ozu um vanguardista ou um tradicionalista? Querendo ainda complicar mais as coisas, relembremos o modo como Donald Richie na sua monografia, recentemente publicada em Portugal, descreve estes atributos do cineasta, não conseguindo porém fixar uma definição do termo tradicionalista sem lhe dar uma abébia que vai no sentido inverso:
Um homem que reconhecia atributos espirituais, um artesão dedicado, um artista que se dedicou inteiramente a um status quo em desagregação — há um termo para definir um homem assim. Ozu é um tradicionalista. Trabalha com o que possui e com aquilo que encontra, posicionando-se muito atrás das vanguardas do conhecimento e das técnicas em expansão. Desta forma, Ozu é, como os japoneses não cessam de nos dizer, o mais tradicional dos seus realizadores. (…). Como observámos, o público japonês considerava-o uma espécie de porta-voz, um artista que possuía “o verdadeiro sabor japonês”, e fez dele o seu mais distinguido realizador. E, como vimos igualmente, ele foi também criticado por ser reaccionário, formalista, dado à tradição. É certo que Ozu é um artista tradicional; o que resta saber é que tipo de artista tradicional é ele. (…). É neste sentido espiritual que considero Ozu um tradicionalista criativo. Os atributos que constituem os seus filmes, em particular o estado de graça espiritual que forma a “bondade” das personagens de Ozu, permanecem viáveis; o cinismo ainda não erodiu a crença generalizada na dignidade humana; e, de certo modo, a natureza continua a ser a medida pela qual o homem deve ser avaliado. Consequentemente, a elementar e, aos olhos japoneses, antiga e tradicional construção dos filmes de Ozu continua viva. Ao trabalhar com materiais e processos completamente tradicionais, Ozu teve a energia e a visão suficientes para evitar que o formal tombasse no formalista, que a forma se esvaziasse, e que o espírito se transformasse em mera letra. O seu método é sempre o mesmo. O seu antitradicionalismo, para usar a expressão de Tange, reside no seu ponto de vista completamente contemporâneo e na sua extraordinária honestidade. Devido a esta combinação de características, a repetição passa a significar uma vitalidade auto-sustentada; a quietude não implica necessariamente o estático.
Donald Richie, Ozu, 1977 [Tradução de António Nuno Júnior].
“Um tradicionalista criativo”, quer dizer, um tradicionalista com um pé fora da tradição, isto é, um tradicionalista com uma faceta anti-tradicional, razão pela qual o cinema de Ozu consegue ser algo e o seu antípoda ao nível da apreensão crítica – é jogando assim com o princípio do terceiro excluído que Richie resolve o impasse morfológico, apoiando-se também na suposta liberdade conceptual da cultura japonesa para cimentar a sua visão de observador distante. Claro que toda a grande arte se incompatibiliza com estas definições comezinhas e talvez mais não fizemos do que discutir o sexo dos anjos. Todavia, o modo como Ozu se constitui como enigma – naqueles que o tentam definir, nesse processo apagando as imagens como nos diz Hasumi, e recorrendo a caixas conceptuais tão gerais como as que atrás apresentámos – parece perpassar no esforço de o trazer para o reino da linguagem, mais do que todos os seus pares. Um cinema cuja sistematização endógena, presente na robusta gramática visual e temática, não se deixa traduzir a papel químico num conjunto de regras estipuladas ou muito menos numa simples atitude ou num único posicionamento artístico.
Mas será que toda esta equivocidade nos deveria fazer rir? Seremos nós mais uns estrangeiros que gostam de complicar tudo e convertem o forâneo em exótico e enigmático? Quando o problema vem do observador nada no que é observado pode salvá-lo ou desmenti-lo. Assim que chegamos a este tipo de torpor cerebral, podemos virar-nos para o humor como forma de consolo. No labirinto da adjectivação artística, a única maneira de sairmos pela porta grande do “quem veio primeiro, o ovo ou a galinha” é rirmos. Felizmente para nós, o humor em Ozu pode estar na origem da sua indecifrabilidade (mas também da sua redenção), principalmente se faltar ao seu observador um sentido do ridículo. Relembre-se David Bordwell quando pinta o retrato de um maduro artesão que conserva o menino traquinas brincando com as formas e desacreditando da sua importância:
[Podemos dizer] que nos seus filmes, a natureza é transformada em artificio e o artifício torna-se hiper-artificial. Tudo isto devia implicar um árido estetismo. Não menos importante dos feitos de Ozu, no entanto, é o modo como ele mistura o negócio sério da ‘forma artística’ com uma atitude que é profundamente cómica. Jamais alguém poderia chamar de ‘brincalhona’ à dialéctica das normas paramétricas de Dreyer ou Bresson da mesma maneira que a de Ozu é. Ao contrário destes realizadores, ele descobriu que, se a partir de um certo ponto o jogo se torna rigoroso, desde o princípio uma disciplina presunçosa é inerentemente cómica. As suas escolhas desarrazoadas de posição de câmara, o espaço do ângulo 360, a correspondência gráfica são tão absurdas como latas de conserva dançantes, mudanças quase imperceptíveis de composição, movimentos de câmara que deslizam através de divisões vazias, ou uma montagem que permite ao Nipper [cão do logo da marca His Master’s Voice] de participar numa conversa. Para Ozu, toda a arte pura trazia consigo algo tolo.
David Bordwell, Ozu and the Poetics of Cinema, 1988.

O que é que Ozu esqueceu? O que é que dele não ouvimos dizer? Lendo alguns dos seus escritos sobre cinema, podemos reconstituir um interlocutor claro, mas cuja concisão levanta algumas perplexidades. Tem sido sempre este o nosso dilema ao correr da pena: como não ver mistério, mesmo no mais categórico dos enunciados? Pedimos desculpa, mas continuamos no reino da evangelização distorcida. Leiamos, a propósito do Ozu cineasta-artesão, este primeiro excerto:
Há fabricantes de natto [alimento tradicional feito de soja fermentada], há fabricantes de abura-age [tofu frito em azeite], e depois vem o tofu. Talvez a única coisa que me condiz é fabricar natto… O que acontece é que, mesmo tratando-se sempre de natto, gosto de variar a produção, produzir um completamente distinto. Mas, em qualquer caso, dedico-me ao natto que hei de fabricar de corpo e alma.
Yasujirô Ozu, “Uma arte rica em variedade” in Kinema Junpo, Junho de 1948 [Franco Picollo & Hiromi Yagi, Yasujirô Ozu: Scritti sul Cinema, 2016].
E este segundo, também:
[Naoya] Shiga afirma que, de uma maneira ou de outra, existem obras que se criam, se recriam e refinam-se um número infinito de vezes: não se pode dizer que não sejam obras de arte, é certo, mas há que ter em conta que quem as criou não se divertiu em absoluto. Mais, em alguns aspectos parece que se levou a cabo uma tarefa artesanal. Neste sentido, eu, por exemplo, não sinto que tenha ainda alcançado esse nível, o do artesão.
Yasujirô Ozu, “Vivo de amor pelo cinema” in Eiga Shinchô, Novembro de 1951 [Franco Picollo & Hiromi Yagi, Yasujirô Ozu: Scritti sul Cinema, 2016].
A metáfora culinária supracitada vai ao encontro da mais comum percepção do ozuesco enquanto estilística da repetição. A não-variedade compreende um aperfeiçoamento do mesmo e, portanto, o processo reiterativo abre espaço para a actualização da novidade, mas uma novidade relativa. É encontrar a liberdade na necessidade, portanto uma liberdade nunca neutralizadora dos constrangimentos que a origina. Por outro lado, o facto de Ozu, seriamente ou não, não se considerar (ainda) um artesão parece implicar uma corrida infinita, ao modo do Aquiles e da tartaruga, em direcção a um ideal que deveria hipoteticamente ser mais pragmático (isto é, o do artesão, um ideal menos idealista – perdoe-se o pleonasmo) do que, por contraste, o do artista. É inevitável, pois, vermos nesta inversão de forças, uma reconfiguração da própria noção de artesanato cinematográfico. Mas noutras publicações e acerca de temas semelhantes, ficaram igualmente expressas certas opiniões que não esperaríamos do realizador de Banshun (Primavera Tardia, 1949).
Para fazer um filme são necessárias muitas pessoas que vivem desse trabalho e uma equipa e instalações importantes. Ou seja, faz falta muito dinheiro. Se o filme, uma vez terminado, não dá um retorno financeiro, a empresa de cinema não funciona. Naturalmente, se eu tivesse muitíssimo dinheiro, também queria experimentar e fazer filmes ao meu gosto, mas, na realidade, o cinema existe apenas enquanto actividade empresarial e, por isso, há que fazê-lo o melhor que consigamos dentro dessa dimensão.
Yasujirô Ozu, “Uma arte rica em variedade” in Kinema Junpo, Junho de 1948 [Franco Picollo & Hiromi Yagi, Yasujirô Ozu: Scritti sul Cinema, 2016].
Imaginemos: a que corresponderiam os filmes ao gosto de Ozu? À tal liberdade artística sem limitações de estilo e fabrico personificadas pelo sistema empresarial de estúdios acima aludido? Quão diferentes seriam eles dos que ele nos deixou? Teria o oleiro mesmo vontade de ser Picasso ou isso não passa de retórica? Mais uma rasteira, então? Que alegada vontade de experimentação é esta que sobrevive ao projecto de gramatização plenamente subjectivo que o seu cinema já acarreta? Como conceber sequer Ozu como um cineasta em aberto? Sentir-se-ia Ozu um funcionário a esse ponto? Se atendermos ao modo como variadas vezes ele menciona a inexistência de uma gramática cinematográfica, inferimos que a experimentação, que ele refere estar originalmente impedida pelas contingências do ofício, sempre esteve do seu lado. Leia-se:
Muitas vezes ignoro a gramática do cinema. Não gosto de dar muita importância à teoria, mas também não gosto de a descurar. Será um capricho meu, mas valorizo as coisas em função do simples facto se me agradam ou não. O cinema é uma arte recém nascida, se a compararmos com a literatura ou as artes figurativas. Acredito que não pode existir uma gramática específica. Quando filmo não quero limitar-me a obedecer a um conjunto de regras.
Yasujirô Ozu, “A Gramática do Cinema” in Gekkan Sukurin Sutêji, Junho de 1947 [Franco Picollo & Hiromi Yagi, Yasujiro Ôzu: Scritti sul Cinema, 2016].
Num artigo pomposamente intitulado, “No cinema não há gramática”, Ozu vai ainda mais longe e confessa-se um contendor da ideia de que só há um modo de composição e articulação das imagens em movimento:
Converti-me num firme opositor da gramática cinematográfica, se a entendermos enquanto uma regra fixa (…). No caso da literatura, a gramática é uma questão fisiologicamente ligada, por assim dizer, à faculdade de compreensão das pessoas: se alguém se engana na conjugação de um verbo, a leitura torna-se mais complicada, pois não se entende sequer o tempo narrativo. Estes aspectos, os chamados fisiológicos são os que temos de respeitar. No cinema, contudo, aquilo que se apelida de gramática não tem esta conexão directa com a capacidade de compreensão do espectador, mas sim com os aspectos técnicos, específicos da rodagem. Por outro lado, nos dias de hoje, também o olhar do espectador amadureceu: disso não há dúvida. Quando vou ao cinema, vejo o público rir-se abertamente de uma cena que antes não provocava a menor gargalhada. Cada vez que isto ocorre fico estupefacto com uma sensibilidade tão articulada. Por outras palavras, são os próprios espectadores que pareceram captar a sensibilidade própria do cinema. Assim, quando um crítico elogia um filme porque responde aos ditames da gramática, os espectadores, com total franqueza, aborrecem-se com cenas [desse género]. O que move o espectador é a sensibilidade do realizador que consegue tocar a fibra da sua percepção (…). O que conta é a sensibilidade expressiva do autor.
Yasujirô Ozu, “No cinema não há gramática” in Geijutsu Shinchô, Abril de 1959 [Franco Picollo & Hiromi Yagi, Yasujiro Ôzu: Scritti sul Cinema, 2016].
Pode haver um bom funcionário que não goste de obedecer a conjuntos de regras? Um banqueiro anarquista? É nessa zona indiscernível que Ozu parece intuitivamente se classificar. Por outro lado, a insistência na refutação de um único método gramatical no cinema tem implicada uma outra (ou outras) maneiras gramaticais alternativas. Neste ponto, o artesão deixa nas entrelinhas o autor presumido, criando à medida da sua “sensibilidade expressiva” e do seu “capricho”. Algo que nestas passagens nos pasma é, precisamente, o anátema dirigido à “rigidez das regras”, como se a variação desse gosto subjectivo assumisse uma quase aleatoriedade de critérios. Sabemos, no contacto e na análise do corpo filmográfico em questão, que isso não é integralmente assim, que há mais ordem, em todos os sentidos, do que caos. Que há padrões, firmeza e austeridade. Mas interessa aqui a auto-análise, de Ozu para Ozu: será que ele não via o seu cinema como sistemático? Ou mesmo como arauto de um rigor classicista? Num texto do mesmo ano, ele clama pela nova geração progressista de cineastas, que tantas e tantas vezes, se apresenta numa certa contextualização crítica como sendo sua antagonista a todos os respeitos.
Com Ukikusa (Ervas Flutuantes, 1959) cheguei aos cinquenta filmes, mas as coisas são muito distintas da época do alvorecer do cinema, quando eu me iniciei. O nosso trabalho deve muito aos avanços tecnológicos e, em boa parte, não depende exclusivamente de nós. Eu defini um estilo meu, próprio, mas não creio que exista uma gramática para fazer cinema. Por isso, seja bem-vinda a Nûberu bâgu [Nouvelle Vague], ânimo para os realizadores novos e originais.
Yasujirô Ozu, “Vou pela minha estrada” in Nikkan Sports, Dezembro de 1959 [Franco Picollo & Hiromi Yagi, Yasujirô Ozu: Scritti sul Cinema, 2016].
A colagem à Nûberu bâgu da Shôchiku (iniciada nesse mesmo ano de 1959) representa a última das provocações aqui transcrita. Regressemos ao início, quando Yoshida esboçava Ozu como uma espécie de diabo faustiano, inquietando a arrogância dos ainda verdes aprendizes com pretensões de cineasta. Será esse o mesmo Ozu que celebra o advento de uma nova vaga que, à semelhança dele no seu tempo, proclamaria novos estilos e novas gramáticas ao mundo? Desconhecemos se Yoshida alguma vez leu este artigo ou se o integralismo de Ozu era apenas um curvar-se servil perante a palpitante linha de montagem do estúdio para quem laborava, no entanto, conjugado com os seus outros textos, fica claro um retrato de alguém indecifrável e, no limite, inadjectivável. Tão enigmático como os relatos daqueles que o tentaram caçar.

Entre conjecturas e mitologizações, decidimos infiltrar-nos no enigmático labirinto chamado Ozu, sabendo de antemão que dele não sairíamos. Com a escrita não tencionamos investigar a verdade, mas patrocinar a aporia. Deixámos os autores discordarem uns dos outros (ora aproximando-nos deles, ora refutando-os com as palavras de outros), e, finalmente, permitimos ao responsável primário, Ozu, de entrar em diálogo consigo e com as suas próprias incongruências de testemunho. E, no entanto, nada é mais visível do que o seu cinema. Não será esta a ironia máxima: quanto mais diáfano, mais obscuro? Em certo sentido, a história da crítica é a genealogia de um engano. Mas não queremos assumir mais as dores da verdade quando confrontada com a heterogeneidade dos olhares discordantes. Quando esses olhares mediados se confrontam com as imagens cruas, imediatas – é nesse impacto que nasce o cinema. Veiculemos, assim, a derradeira dificuldade de leitura visual, quando apenas contamos com as imagens escoantes nascendo e morrendo nas nossas pupilas: quando nada é enigmático, tudo é enigmático. É neste autofágico vórtice que o desafio do espectador ozuesco se inaugura. Citando Hasumi, uma derradeira vez:
Ver não é algo fácil. Principalmente no caso de Ozu. Não é que o seu cinema veicule ideias difíceis de compreender. As intenções do cineasta são habitualmente inteligíveis e nada é mais estranho para Ozu do que o mal-entendido. A dificuldade vem do contrário, que tudo nos seus filmes é representado com contornos nítidos. Literalmente, mais não há do que a imagem e essa imagem nada encobre: tudo está na superfície do ecrã. Se a imagem presente esconde qualquer coisa, será uma outra imagem que é invisível, mas actualizável (…). Este relato do escondimento não diz respeito apenas à presença ou à ausência. Acontece que aquilo que está presente esconde a presença. (…) É aqui que reside a crueza de Ozu. Podemos nós imaginar uma experiência mais incómoda do que olhar para um filme onde somente encontramos imagens?
Shiguéhiko Hasumi, Yasujirô Ozu, 1998.