A cinefilia de Portugal, ao menos pelo que observo em minhas redes sociais e em meus contatos de amizade, assemelha-se a uma certa cinefilia brasileira dos anos 1950 aos 1980. Uma cinefilia marcada essencialmente pelo cinema americano clássico, de diretores como John Ford, Howard Hawks e Raoul Walsh. Parece-me também uma herança de João Bénard da Costa e das excelentes mostras que programou na Cinemateca Portuguesa e na Fundação Gulbenkian entre os anos 1970 e 1990. Uma dieta semelhante à que os franceses receberam no pós-guerra, quando constataram a renovação do cinema americano capitaneada por Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941) e o quanto o cinema francês estava defasado. Surgiram então os Cahiers du Cinéma, os jovens turcos, e o resto é história.

A meu ver, não se trata de um atraso, mas de um reconhecimento. Muito do que melhor se fez na história do cinema veio dos EUA ou teve influência do cinema americano (o cinema japonês, por exemplo). No Brasil, a cinefilia engajada tende a valorizar mais a busca pelo real, o documental, um neorrealismo tropical, contra a teatralidade do cinema clássico americano. Talvez seja uma tendência que exista também em Portugal, ainda que alguns degraus atrás. Um site chamado À pala de Walsh não seria possível no Brasil do século 21 por dois motivos: a) quase ninguém aqui sabe o que é pala, e eu mesmo só o soube quando morei em Portugal, e soube por acaso, pelo saudoso José Lopes; b) cinema americano? Não, obrigado.
Obviamente, os motivos que fazem com que os brasileiros não saibam o que é pala não interessam. O segundo motivo, contudo, é curioso, e me parece um pouco nebuloso, pois não é algo que seja passível de confirmação; está nas reações de alguns amigos, em algumas olhadas tortuosas, num círculo pessoal, portanto. Percebi isso em 2011, quando escolhemos, eu, Juliano Tosi e Bruno Cursini, o nome Interlúdio para a revista que editamos até o início de 2018. Interlúdio é o título brasileiro para Notorious (Difamação, 1946), de Alfred Hitchcock. Um filme americano. Hitchcock é permitido por aqui. Ninguém resiste a ele e a seus filmes. Ainda assim, percebi um estranhamento. Porquê um filme americano dos anos 1940 e não um nome mais brasileiro? Se a revista se chamasse Zelig, seríamos moralmente linchados. Quando mencionei, ainda num mundo pré-pandemia, que Richard Jewell (O Caso de Richard Jewell, 2019) tinha tudo para ser o filme do ano, alguns amigos chiaram, ou até se revoltaram: “como pode um filme de Clint Eastwood merecer mais entusiasmo de sua parte do que o melhor dos filmes brasileiros?” Eu confesso não entender essa ideia, e por isso prefiro não julgá-la, até por ter vinda de amigos (o leitor, entretanto, está livre para fazer o seu próprio julgamento). Há, também, a ideia contrária, de que nenhum filme brasileiro seja digno de nota a não ser que tenha sido realizado por Julio Bressane. Mas esses estão em minoria.
A que se deve esse preconceito? O cinema americano é a arte do imperialismo econômico, do país que se mete em outras nações sem ser chamado, da terra que elegeu Trump (e quase reelegeu). Isso tudo eu posso entender. Sim, os EUA estão mal na fita. Mas é também a nação que nos deu o cinema de Ford, Hawks, Walsh, mais Orson Welles, King Vidor, Henry King, Samuel Fuller, Nicholas Ray, Robert Aldrich, Brian De Palma, Martin Scorsese, James Gray e o cinema de estrangeiros como Michael Curtiz, Otto Preminger, Billy Wilder, Fritz Lang, Ernst Lubitsch e tantos outros que realizaram tanto e tão bem no exílio americano quanto em suas terras natais. E a literatura, a pintura? Quanta riqueza. Para não falarmos de outras artes, de uma música maravilhosa (e de filmes musicais igualmente maravilhosos), da NBA ou a NFL, também uma forma de arte. Vale desprezar o que dão de bom ao mundo por uma questão anti-imperialista? Não seria como um adolescente evitar o McDonalds ou deixar de beber coca-cola para não dar dinheiro a ianques engravatados? Não seria um esforço estéril que só prejudicaria a nós mesmos?
A formação de um cinéfilo brasileiro nos anos 1980 e 1990 (décadas de minha formação, por sinal) passa necessariamente pelo cinema americano. Não existia torrent, os cineclubes estavam em crise (principalmente nos anos 1990), as locadoras não tinham cinematografias orientais, a não ser um ou outro título, mas os canais de TV exibiam com frequência os filmes americanos. Era possível ver, num mesmo dia, uma obra-prima de Jerry Lewis à tarde, um longa de Scorsese no horário nobre (foi a primeira vez que vi Taxi Driver, 1976, anunciado com pompa e circunstância) e um clássico em preto e branco de madrugada. Via os filmes dublados, muitas vezes com formato de tela errado e com intervalos comerciais. Mas eles resistiam. Continuavam sólidos, apaixonantes.
Lembro das discussões com amigos de faculdade no dia seguinte ao da exibição de The Man Who Shot Liberty Valance (O Homem que Matou Liberty Valance, 1962) na Globo, o maior canal da TV brasileira. Falávamos empolgados da figura de John Wayne e de James Stewart, da maneira como o jornalismo é respeitado por Ford, da excelência do flashback que compõe o corpo narrativo principal do filme. E ainda hoje, quando o revejo, percebo o quanto ele nos ensina, a críticos e pretensos realizadores. Com visões e revisões atentas de alguns filmes de Ford, um aspirante a cineasta estaria muito mais preparado do que ao consumir apenas cinema contemporâneo. No entanto, ainda parecemos embriagados pelo contemporâneo, mesmo quando ele demonstra um convencionalismo maior que o do clássico americano. Noto em alunos e amigos mais jovens uma resistência um tanto inexplicável ao cinema americano da primeira metade do século 20, eventualmente até o dos anos 1950 e 60 é visto com ressalvas. Até mesmo os filmes de Clint Eastwood, diretor simploriamente tido como clássico. Como se a busca pelo real impedisse um real entusiasmo pela dramaturgia de outras épocas. Um gosto fechado, portanto, quando tudo que precisamos é de abertura.
Porque não se trata aqui de desprezar o contemporâneo, que tem, sim, seus encantos. Nem mesmo de enaltecer a cinefilia portuguesa em detrimento da cinefilia brasileira, pois percebo que a cinefilia portuguesa também tem seus preconceitos e suas miragens (como, de resto, eu também os tenho). Também não pretendo dizer que o ideal seria buscar uma pureza cinematográfica que renegue os cacoetes do contemporâneo em prol das benesses discutíveis de um certo cinema já legitimado pelo decorrer do tempo. Um filme de Fred Zinnemann pode ser inferior a inúmeros filmes brasileiros dos últimos dois anos. “A ferrugem jamais dorme”, já dizia o bardo canadense. Minha intenção é mostrar que só perdemos quando não temos abertura e tratamos com desinteresse o bom cinema americano, menosprezando algumas soluções de mise en scène que até hoje podem servir a realizadores atentos. Ou deixando escapar a riqueza das elipses do cinema clássico americano, que pode ser tão moderno quanto o mais moderno dos cinemas.