Estou muito mais interessado na história da amizade entre dois homens do que na história das razões das lutas ou qualquer coisa do género. Não existe provavelmente emoção mais forte do que a amizade entre homens.
Howard Hawks em entrevista a Joseph McBride
Sim, eu sei. Depois de 60 anos de críticas, ensaios, explicações, capítulos e exegeses, o que há para dizer que não tenha sido já dito sobre Rio Bravo (1959)? Analisado, reanalisado e rereanalisado até à exaustão, para quê pegar de novo num filme cujo estatuto canônico lhe está seguro e assegurado enquanto a arte cinematográfica perdurar na memória humana? A culpa não é (só) minha. Pediram-me um texto para este dossier cinéfilo sobre a amizade, e a verdade é que não conheço melhor cineasta que tenha falado sobre ela do que Howard Hawks. Porque, como Turner a pintar paisagens marinhas beijadas pelo Sol, como Dickens a escrever jornadas de órfãos gentis da indigência à riqueza, Hawks foi um desses artesãos que expressou no seu ofício quase sempre o mesmo: filmou a amizade entre os homens. Certo, há A Girl in Every Port (Uma Rapariga em Cada Porto, 1928), há Only Angels Have Wings (Paraíso Infernal, 1939), há The Big Sky (Céu Aberto, 1952), há tantos e tantos outros, mas é, para mim, Rio Bravo aquele que cristaliza a amizade hawksiana na forma de diamante lapidado mais resplandecente.
Como Hawks gostava de denominar algumas das amizades masculinas da sua obra, trata-se de uma “história de amor entre dois homens”. O primeiro, o xerife de Rio Bravo, Chance (John Wayne). Seguro, confiante, intrépido, figura de ordem e autoridade que percorre diariamente as ruas poeirentas da cidade da qual é o principal guardião. O segundo, o seu adjunto, Dude (Dean Martin). Alcoólatra, desconsolado, vulnerável, um campeão de outros tempos levado ao seu nadir pela rejeição de uma mulher, andando pelas ruas da mesma cidade na busca sedenta do líquido vicioso que lhe reconstrua temporariamente o peito partido.
Dada a masculinidade estóica na qual se alicerça o etos hawksiano, os homens do cineasta nunca dizem que gostam uns dos outros. Ao invés, mostram-no.
Já muita tinta correu sobre a cena de abertura sem diálogos e a forma como as relações entre as personagens com as suas caracterizações singulares ficam delineadas, resultando um momento primorosamente exemplar de uma história a ser contada visualmente pela interpretação física dos actores (expressões faciais, posturas de corpos, pequenos movimentos e depurados gestos), pela montagem e pela colocação da câmara. Basta-nos a inquietação das mãos de Dude a acariciarem desesperadamente o queixo, o seu andar titubeante com o qual atravessa o saloon e o brilho dos olhos com que contempla um copo estendido para sabermos do alcoolismo que o corrói espiritualmente. Tal como basta o incompassivo atirar da esmola – pelo cowboy que lhe estende o dito copo – rumo ao interior de uma escarradeira para sabermos quem é, de imediato, o vilão. E depois, claro, à medida que Dude se debruça para o recipiente imundo, surge um pontapé salvador, um corte abrupto para um contra-picado, o princípio hawksiano da “câmara à altura dos homens” a ser desfeito para mostrar o olhar reprovador de Chance. É o primeiro sinal que temos desta amizade, a forma como fica estabelecido com um pontapé e um olhar que Chance nunca permitirá o degradamento e humilhação de Dude pela colocação da mão no vaso surrento. Não há outra coisa que aquele contra-picado diga a não ser isto: Chance é, para Dude, um colosso, é ele que o ajudará a erguer-se da sua gradual decadência e a fazer do adjunto o profissional dedicado de outrora.
Mas Chance é também esse tipo de amigo de carácter nobre no modo como repele qualquer tipo de reconhecimento em torno da forma fraternal como olha por Dude, simulando ser o elemento mais desprotegido e necessitado daquela relação. Sucessivas vezes vemos isso a acontecer ao longo do filme, como quando alguém lhe pergunta se está a tomar conta do amigo, ao que ele responde: “Ele é que está a tomar conta de mim”. Ou quando vê os tremores e dores que a falta de bebida está a provocar no companheiro e convida-o para o acompanhar num passeio, dizendo-lhe que é ele (Chance) quem precisa de sair e não Dude. O xerife sabe que reconhecer a fragilidade da condição do amigo é, para este, um acto de vexação, dificultando-lhe a libertação do lago tóxico de pensamentos de inutilidade e auto-comiseração em que se afunda e de que só pelo seu próprio pé pode sair. É Chance que tem de se mostrar como precisado do outro para que Dude possa recuperar a confiança, auto-estima e força de vontade que lhe permitirão a possibilidade de redenção.
Porque são os laços de amizade alimentados pelo ofício comum que, em Hawks, conduzem ao (auto-)respeito e auto-afirmação. Como naquele momento-chave do filme onde um criminoso foge ferido para dentro de um saloon: Chance diz que Dude pode entrar pela porta das traseiras, mas este, necessitado de demonstrar o seu valor (a si e a todos), pede para atravessar a principal. “Think you’re good enough?”, pergunta-lhe Chance. Sim, é good enough. E, ao prová-lo, justifica-se, deixa o amigo que nele confiou com um orgulho subtilmente sugerido pelo olhar aprovador e aquele “I guess they’ll let you in the front door from now on”. É um gesto crucial do seu percurso expiatório, onde evidencia a capacidade de colocar o trabalho, o profissionalismo do grupo e o bem-estar colectivo à frente de tudo, pois o homem hawksiano justifica a sua existência pelo exercício exímio do seu cargo e fidelidade prestada à comunidade em que se integra.
Os dois parágrafos anteriores são exemplos da maior habilidade de Hawks para falar da amizade: a subtileza. Dada a masculinidade estóica na qual se alicerça o etos hawksiano, os homens do cineasta nunca dizem que gostam uns dos outros. Ao invés, mostram-no. Daí o ajuste ao dedo deslocado que está em The Big Sky e A Girl in Every Port, e daí os cigarros que Chance passa a Dude quando este último não os consegue enrolar. Para os desatentos, parecerão simples gestos quotidianos insubstanciais. Para Hawks, é das maiores expressões de afecto conhecidas, um auxílio imediato a ser prestado sem necessitar de ser pedido, fazendo as pequenas coisas acarretarem o carinho, o zelo e a disponibilidade que caracteriza a camaradagem sincera dos seus profissionais. Como Gerald Mast aponta por outras palavras em Howard Hawks, Storyteller, tal como a moeda viciada de Only Angels…, a bracelete de Red River (Rio Vermelho, 1948) ou os fósforos de To Have and Have Not (Ter ou Não Ter, 1944), os cigarros de Rio Bravo são desses objectos que, pela forma como são segurados, usados ou passados, exprimem o que as personagens sentem, pensam, vivem, mas que optam por deixar em surdina. Ou, trocado por miúdos, os homens de Hawks manifestam o seu apreço por algo tão simples como cigarros enrolados em vez de abraços sentidos.
Olha-se para a amizade que ocupa o núcleo do filme e é impossível não ser suscitada alguma ressonância com a história individual de cada espectador. Uma amizade onde há provocações mútuas (“He’s been a stinker all his life.”, diz Dude de Chance), onde se aprende a rir dos próprios infortúnios (não tardará que Dude comece a gargalhar sobre a sua relação falhada), onde a auto-compaixão tem de ser exorcizada (a conversa no estábulo entre os dois, após o resgate de Dude de um grupo de foras-da-lei), onde os pontuais confrontos físicos são facilmente ultrapassados e esquecidos, e, obviamente, onde não faltam esses breves momentos memoráveis, deleitantes e criativos, como aquela sequência musical onde os três adjuntos (Dude, Colorado e Stumpy) cantam “My rifle, my pony and me”, enquanto um paternal Chance olha sorridente para o grupo ao qual serve de modelo inspirador. Cito Robin Wood – que disse que escolheria Rio Bravo como o filme que justifica a existência de Hollywood – no livro que dedicou ao cineasta: “É talvez a melhor expressão na obra de Hawks da simpatia espontâneo-intuitiva que ele torna tão importante como a base das relações humanas. As composições e a montagem (ao nos conscientizarmos da troca de olhares), assim como a representação, contribuem gradativamente para unir os três homens num laço de companheirismo pela experiência compartilhada da música.”
E se o filme fala da reascensão de Dude a pistoleiro renascido, então o clímax (como sugeriu Bogdanovich na entrevista que fez a Hawks) não é dado no tão afamado duelo, mas sim 20 minutos antes, quando este está nervoso, suado e em desespero, prestes a beber, na esquadra, um copo de whisky que o arrastará de novo para o báratro interno de que, a espaços, tinha vindo a conseguir evadir-se. É então que ouve, lá fora, o som do tema El Degüello, aquela canção fúnebre que, como é dito a certa altura, significa “No mercy for losers”. E pára na sua discreta epifania. Compreende que a bebida será o seu fim, que ninguém chorará na sua campa pela sua fraqueza tornada lento suicídio, que terá desapontado Chance e entrado por sua iniciativa num estado corrosivo de abandono e depressão, tornando-se num triste e solitário loser. E faz a única coisa certa: volta a pôr o líquido acastanhado na garrafa, olha para o copo vazio na mão, e solta essa frase denunciadora da sua total reabilitação pelo cumprimento de um pequeno acto de grandeza, “Didn’t spill a drop.”
Sempre gostei muito de Hawks, e principalmente de Rio Bravo, por isto. Por ser um cinema que fala da amizade como a vejo: sem grandes arengas nem sentimentalismos, com uma profunda estima mútua a percorrer cada uma das partes, e onde a coragem, a lealdade e o sentido de dever implícitos para consigo e com os outros permitem alcançar, como aquele que Dude alcança, pequenos actos de grandeza. Ou, dito de maneira mais fácil, de como tudo isto pode levar um tipo a ser um pouco melhor do que aquilo que era. É simples. É muito. É tudo. E é recordando-o que saúdo os meus amigos, os deste lado e os do outro do Atlântico.
Este texto foi publicado, em simultâneo, no À pala de Walsh e no Estado da Arte – Revista de Cultura, Artes e Ideias.