Repara, Bill, a tua piscina prova que vale a pena nadar. Sei que não nos conhecemos bem, talvez nos tenhamos cruzado em momentos oníricos, mas é importante dizer-te isto. A tua piscina, aquele caldo gelado de Dawson, atira-me para a minha prateleira como gente grande, mesmo que algumas caixas tenham o plástico manhoso da protecção eterna.

Deixa-me contar-te: o cinema chegou grosso, com um cartão de cliente para carimbar, três ruas para subir, e não esquecer de rebobinar no fim, antes da entrega. Havia um leitor de três cabeças, o cuidado para a cassete não bloquear na saída, a maravilha de um ecrãzinho digital (era a tecnologia a fazer-se sexy) e o cinema ia-se buscar. Vinha na mão, no Verão suada, no Inverno na mochila, e era uma posse. Era ter o cinema na mão, tanto quanto se tinha o bilhete no espaço. O cinema era existência, da sala mais larga que funda do Berna às VHS em casa. O cinema era também escolher com as mãos, tirar da prateleira, virar, mudar de mão, vale a pena seguir o Bruce de novo, este Lee? Vale porque aqui há este Lee e os outros, o Christopher, o Spike, o Daniels. Estavam todos, cada um na sua, todos na possibilidade de construir a minha prateleira, mesmo que durante uns dias.
Quando o DVD surgiu, era mais do mesmo e tudo de novo. Eu tinha dinheiro, imagina, e tudo o que a cultura me permitia era ter. Ter mesmo, deter, parar em mim, construir um universo egoísta e próprio comprado, com selo, factura e a promessa de ser alguém melhor por isso. Repara, Bill, eu não sabia grande coisa do cinema que tinhas desenterrado anos antes, mesmo sabendo que foi muito depois. Quando descongelaram aquele nitrato na piscina em Dawson, em 1978, que depois trouxeste à luz fria para não queimar em 2016, eu não tinha cinema nenhum. Mas o fim da linha, da febre do Ouro e dos mudos, tinha aquele universo físico à espera de ser desenterrado e devolvido a quem quer mexer nas bobines como os espanhóis.

Querido Bill, Dawson City: Frozen Time (2016) é a tua piscina na minha prateleira que prova que na tua piscina só nada quem tem algo na mão. Aqueles milhares de bobines inacreditáveis, que inventam um novo cinema que havia ardido (só que não) são a prova de que o cinema que interessa é aquele que, individual e colectivamente, possuímos. Ainda há pouco a Judith Barry lembrava isso em Lisboa, com aquela história do Yongman Kim doar quase 60 mil DVDs a Salemi, na Sicília, e estarem centenas de pessoas na rua a passar cinema de mão em mão. Caraças, se isso não é cinefilia, é o quê?!
Repara, Bill, repara bem na minha prateleira. Não tem trends. Não tem preconceitos sobre o meu olhar, nem cenas permitidas por negociatas de direitos, nem agendas escondidas. Escondidos só extras que me dão mais cinema do que o menu principal. Negociatas só as que possa ter feito comigo mesmo para perder o amor ao velho dinheiro para ficar com a eternidade do Tarr.
Trends só aquela inclinação para a direita quando tiro uma caixa do sítio.
Bill: há um ano, quando o Alvalade Cineclube ainda tinha 100 pessoas dentro de uma sala, agarrei na Varda e mostrei Réponse de femmes: Notre corps, notre sexe (Respostas de Mulheres, 1975). A grávida, a despida e a dona de casa de 1975 falaram com as 100 grávidas, vestidas e donas do que querem ser de 2020. Todas, umas e outras, de sorriso rasgado. No final, uma perguntou-me: “isto era um DVD? é fantástico.”
Aquele abraço. Continuação.
Extras e Making-Of:
Dawson City: Frozen Time é um documentário realizado por Bill Morrison, sobre o resgate de milhares de filmes mudos do início do século XX, em bobines de nitrato, resgatadas em 1978 debaixo de gelo numa piscina naquela cidade canadiana. Se 2021 deixar, o filme será projectado em sala no Alvalade Cineclube. Está editado em DVD e Blu-ray pela Second Run, cheios de extras, incluindo alguns dos filmes encontrados em Dawson. É bonito que dói, e importante como o caraças.

Judith Barry é artista multidisciplinar, focada na imagem em movimento, e apresentou All the light that’s ours to see na Lumiar Cité em Lisboa, em 2020. A artista apropriou-se da história da Mondo Kim’s, uma famosa cadeia de clubes de vídeo de Nova Iorque, em particular da procura de um local para o depósito dos seus cerca de cinquenta e cinco mil títulos, após o seu encerramento definitivo, que foram doados a uma pequena cidade na Sicíla, em Itália, de nome Salemi. A colecção estará hoje, acredita-se, em posse da máfia local. São cinéfilos.
Bruno Castro – cinéfilo e programador do Alvalade Cineclube
(Este texto faz parte de uma série de testemunhos que decorrem do
Texto escrito em resposta ao nosso apelo em defesa dos suportes físicos, publicado no dia 19 de Novembro de 2020 e assinado pelos editores do À pala de Walsh.