15 realizadores e um montador foram convocados pela produtora C.R.I.M, sediada em Lisboa, para um exercício de cinema experimental sem fronteiras, versando sobre a pandemia em curso. A variedade é a palavra de ordem aqui. Cada artista, proveniente do cinema, do vídeo, da fotografia, da pintura, das artes plásticas, etc., contribuiu com 30 segundos. A montagem encarregou-se de dar um sentido final a todos estes contributos. A propósito desta estreia, em streaming, na plataforma Filmin, os dois walshianos Ricardo Vieira Lisboa e Luís Mendonça trocaram alguns e-mails entre si e, deste modo, produziram o seguinte exercício de crítica compartilhada.
Bom dia Luís,
Agora todas as mensagens começam com o “espero que se encontre bem e de saúde”. Sei que estás bem, temos falado. Mas de qualquer modo nunca fica mal desejar o bem aos outros.
Antes de começarmos a falar, mais especificamente, da curta-metragem Contágio (2021), produzida pela C.R.I.M. e que agrega imagens produzidas por por mais de um dúzia de realizadores portugueses, gostava de começar por um pequeno preâmbulo. No início de Março, do ano passado, quando ainda andávamos pelas ruas como se nada se passasse no mundo, já comentava com amigos que muito em breve cairia uma bátega de filmes de quarentena. Eles já começaram, de facto, a cair. Referindo-me só ao que se tem produzido neste rectângulo à beira-mar plantado, o primeiro que vi e que me entusiasmou foi Contrafogo (2020), de Carolina Vieira, exibido no IndieLisboa, na secção Novíssimos, e produzido em contexto escolar na ESAD das Caldas da Rainha. Um exercício delicado sobre a própria natureza do cinema e sobre a comunidade familiar em volta das (e envolta pelas) sombras.
Esse gesto de retribuir o amor com mais amor, de encontrar lugar para todos dentro de si, é profundamente belo e guardo-o como uma das coisas mais doces que esta merda de vírus “deu origem”.
Num dos episódios da última edição do Doclisboa, mostraram-se já as sombras e os seus nomes (2020), de João Pedro Amorim, e Questo è il piano (2020), de Luciana Fina – que depois vi na versão instalada no MNAC: Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado. Apesar de coincidentes no momento pandémico, os filmes propõem visões muito diferentes. O filme da Luciana é um objecto de denúncia em formato “passeio higiénico”, em travelling lateral: “olhem o que estão a fazer enquanto ninguém está a olhar”, “vejam o capitalismo em acção nas herdades do alentejo quando estamos todos confinados”, “reparem como se destroem hectares de sobreiros e isso passa despercebido por uma comunicação social monotemática e cega”. Já o filme do João Pedro Amorim remete para uma reflexão interior sobre a natureza das imagens, a partir de Walter Benjamin. Quando o mundo nos é apresentado unicamente por janelas (as de nossas casas e as dos nossos aparelhos electrónicos), convém questionar: o que é afinal uma imagem? Amorim fá-lo com enorme subtileza, deixando-nos repousar sobre o tempo que passa sobre os objectos, pelo vento que areja um lençol, pelo calor que aquece um bule de chá.
O filme, com esta “temática”, que mais me tocou até ao momento, e que tem muito em comum com Contágio, foi Cadernos do Confinamento (2020) de Regina Guimarães – a única longa-metragem do conjunto. O filme foi exibido, numa primeira versão, na Casa da Achada, ao ar livre, em Setembro do ano passado, e, agora, exibido publicamente no Cineclube do Porto, exactamente na véspera do início do segundo confinamento geral – maior ironia era difícil. O filme da Regina é de uma grande simplicidade conceptual: a realizadora pediu aos seus amigos (uns, artistas – realizadores, poetas e escritores como ela -, outros, nem tanto), espalhados pelo mundo e com o quais não podia conviver directamente, que lhe enviassem, pela internet, o que quisessem; imagens paradas ou em movimento, sons, textos, poemas, ilustrações, etc. E o filme é uma tentativa de encontrar uma unidade e um espaço para cada um deles.
Na diversidade convulsa dos testemunhos, descobre-se uma Regina cansada e amargurada com o estado das coisas e com a torrente de sons e imagens que a aturdem. Mas, ainda assim, contra esse caudal aterrador, a realizadora acolhe, afectuosamente, no seio do filme, a amizade que lhe enviam. E partilha-a, devolvendo-a. Esse gesto de retribuir o amor com mais amor, de encontrar lugar para todos dentro de si, é profundamente belo e guardo-o como uma das coisas mais doces que esta merda de vírus “deu origem”.
Não sei se terás visto algum destes filmes, mas se calhar revês, nas minhas palavras, alguns aspectos do Contágio.
Um abraço,
Ricardo Vieira Lisboa
Olá Ricardo,
Espero que te encontres bem… ¯\_(ツ)_/¯
De facto, sim: revejo na minha própria “crónica de visionamentos sobre a pandemia” muito do que este pequeno mas variado filme oferece.
Na realidade, vi a obra da Luciana Fina, ao “vivo e a cores” no MNAC e, antes, na Sala de Projecção, site lançado pela Cinemateca Portuguesa durante o primeiro confinamento geral e que reuniu contributos de muita gente em vídeo – não foi o teu ou o meu casos (pois também contribuímos!), mas foi o caso de João Pedro Rodrigues. Turdus merula Linnaeus, 1758 continua a ser para mim o grande filme da pandemia até ao momento e um dos melhores filmes de João Pedro Rodrigues. Porquê? Porque acho que se pode encontrar aqui a síntese perfeita entre este “olhar de dentro para fora” paredes-meias com o auto-retrato, a crónica dos dias que passam em “modo zombie” ou orientados por “estratégias de sobrevivência” contra o tédio, o medo e a morte. É, de facto, o grande filme “de ornitólogo” de JPR, pelo que sentimos nele o seu gosto em – e capacidade de – observar a mais ínfima centelha de vida, transformando-a num grande plateau – é o caso do ninho do passarinho, que concentra a atenção da câmara, mesmo que o filme se vá construindo muito na banda sonora (a tal crónica dos dias pastosos remetida para um interior claustrofóbico versus as poucas manifestações de vida que chegam lá de fora, destacando-se a soalheira celebração de Abril).
Os rostos carregam tédio, algum sentido de escárnio, aparecem “mascarados”, pouco transparentes.
Para mais, tive o prazer de assistir à produção de vários filmes sobre a pandemia enquanto leccionava a cadeira de Documentário na NOVA FCSH. E, sentindo-me orgulhoso, confidencio-te que os resultados foram, nalguns casos, brilhantes. Contágio não me surpreende muito, pois já antes havia assistido a exercícios semelhantes, tentando “tomar o pulso” ao que aconteceu e ainda está em curso, sendo que sinto genericamente, e falando mais sobre “a floresta” do que sobre “as árvores”, uma diferença significativa entre quem passou os dias na companhia da Natureza e quem passou – e passa – este período fechado em casa na cidade, mais isolado e entediado – até aqui o filme de JPR é completo, uma vez que, apesar de estarmos em Lisboa, a Natureza olha-nos de volta, “desconfina-nos”, em certa medida. Enfim, na impossibilidade de poder sair de casa, este grupo de alunos também se virou para o cinema de ensaio ou experimental, filmando com o telemóvel ou explorando uma engenhosa “caça às imagens” ciberespaço adentro.
Ainda na referida Sala de Projecção, mais concretamente, no pequeno filme de João Coimbra de Oliveira, o cinema vira assunto como acontece a dado momento em Contágio, com a extraordinária “irrupção” da guitarra eléctrica da personagem de Eri Eri rema sabakutani (2005) de Shinji Aoyama – recordo-me como, nesse filme, era a música “a cura” para uma doença provocada pelas ou nas imagens. Em Contágio, as imagens também pululam, encadeiam-se numa torrente (montagem exigente decerto para Mateus Ribeiro Gomes, pois este tenta conferir coesão a imagens muito diferentes entre si e também estabelecer diálogos entre eles).
O que, em certa medida, sinto alguma falta aqui é a expressão aberta e franca do auto-retrato, ou melhor, rostos e palavras – foi um género explorado pelos meus alunos. E aqui vemos muitos “pedaços de corpos como pedaços do quotidiano”, alguma performance mas poucas “confissões” para a câmara. Os rostos carregam tédio, algum sentido de escárnio, aparecem “mascarados”, pouco transparentes. Falando generica e levianamente, diria que são poucos os rostos aqui – foi uma coisa, da ordem do humano, de que senti falta, creio.
Mas queria ouvir-te (ou ler-te) sobre que “imagens salvaste” à boleia desta torrente. Eu achei a imagem final bastante poderosa, talvez por me sentir como aquela abelha presa no copo, enclausurada na imagem-vírus, a tentar sair e, com isso, a envolver-se numa acção que se quer consequente, libertadora. Mas será? É um desafio ser-se consequente ou aspirar-se a essa libertação quando o discurso dominante é tão soturno, por vezes desesperançado ou “zombieficante” (é o “fuck” saído várias vezes do rosto deadpan de Daniel Blaufuks?). Para mais, quando não sabemos, de facto, como será o futuro…
Abraço repleto de álcool gel do Lidl,
Luís Mendonça
Bom dia señor Luís,
Enquanto lia a tua última missiva bati com a palma da mão na testa: claro, o filme do João Pedro Rodrigues, dah! De longe, dos objectos portugueses mais estimulantes a sair desta pandemia. Acho que a grande força do Turdus merula Linnaeus, 1758 prende-se com a sua concentração formal e temática e como, a partir daí (do sistema reprodutivo do Melro visto através da janela de casa), se produz uma alegoria sobre o modo como o espaço da intimidade foi invadido por sensações de medo, ausência e de extermínio, e, também, não convém esquecer, de esperança por um dia melhor – “tudo vai ficar bem”. É um desses casos em que o filme é ultrapassado pela experiência de visionamento. Vê-lo, durante o primeiro confinamento, foi uma catarse. Não sei como sobreviverá no futuro (talvez se revele como algo totalmente diferente).
Existe um cansaço, e eu sinto-o (como toda a gente), em relação a esta situação. Assistir a um filme que descreve esse mesmo cansaço e essa mesma saturação é uma experiência, no mínimo, masoquista.
Parece-me que é aqui que se encontra o nódulo central deste filmes de pandemia: como fazer algo que sobreviva ao momento. A Luciana fez uma denúncia política que, no espaço de meses, se viu “actualizada” com o massacre dos animais de grande porte na quinta da Torre Bela. É um filme que se impõe enquanto o mundo estiver a saque. O filme da Regina apresenta-se como arquivo, como caderno de notas “para mais tarde recordar” – tem essa importância quasi-arqueológica. O João Pedro Amorim reflecte sobre a natureza da imagem, e se uma pessoa não soubesse que o filme havia sido rodado durante a quarentena, talvez isso nunca se tornasse claro – pelo que não é importante. Trabalhando a alegoria (da prudência), o João Pedro Rodrigues produz imagens que certamente ressoarão além da especificidade destes dias. Quanto ao Contágio, acho que a sua força resulta da sua estrutura em políptico, coisa impressionista e caleidoscópica. Uma espécie de montagem centrífuga que compõem, na dispersão, um fresco que revela uma variedade de experiências, cheias de “momentos”, cheias de pormenores doces e desesperançados.
O grande dilema destes “filmes de pandemia” é que eles descrevem uma realidade comum a todos. Não há, à partida, novidade para o espectador. Todos passámos “pelo mesmo” – ainda que de formas diferentes, naturalmente. E esse mesmo foi saturante. Existe um cansaço, e eu sinto-o (como toda a gente), em relação a esta situação. Assistir a um filme que descreve esse mesmo cansaço e essa mesma saturação é uma experiência, no mínimo, masoquista. A não ser que os “diário da pandemia” consigam ultrapassar a sua circunstância, ficaremos apenas com uma colecção de testemunhos muito idênticos e desinteressantes. Não me parece que seja esse o caso de Contágio – ainda que esse seja o caso dos elementos que o constituem. E aí discordo do que dizes. O que mais gosto, no filme, é de como ele não se agarra aos rostos, e como tal, não se agarra aos realizadores, aos seus casos, às suas histórias de confinamento – que, sinceramente, não me interessariam muito. Interessa-me, sim, a potência de certas imagens, que só a descontextualização permite. E vi o filme como quem assiste ao girar da roleta no casino, tentando adivinhar não onde a bola branca cairá, mas a que realizador (dos 15) pertence aquela imagem. Esse exercício de “de quem é o quê” divertiu-me enquanto cinéfilo e enquanto pessoa que conhece bem o trabalho da maioria dos envolvidos. Acima de tudo, gosto que a montagem de Mateus Ribeiro Gomes (que não conhecia, muito jovem ao que parece!) trate estes realizadores e as suas imagens como um copo misturador: destrói as fibras, desfaz as polpas, e deixa só o suco, frutado e líquido.
O curioso é que, quando me pedes uma imagem, tenho dificuldade em responder. Especialmente porque elas não me ficam. Elas passam, como um batido desce pela goela. Talvez um pé entre os lençóis, uma adolescente a dançar da cintura para baixo, um rosto imberbe à janela ou um chá servido pela janela. Mais do que as imagens, ou as costuras entre elas, creio que este é um filme onde o que importa é o caudal: o ritmo das sensações.
Abraço devidamente esterilizado com raios UV,
Ricardo
Aloha,
Pois, revi o filme sob o efeito da tua missiva e a ausência dessa palavra ou rostos mais íntimos já não me incomoda e, portanto, fixo a minha atenção nos pequenos gestos que procuram agarrar qualquer coisa que é tão presente… demasiado presente, na realidade, para ser verdadeiramente entendida. Percebo o que dizes quanto a essa dificuldade – e quanto a esse lado nocivo – de estes realizadores porem a nu o seu eu íntimo num exercício, à la cadavre exquis, como este.
É “em esforço”, mas com muita vontade de “ligar” ou “unir”, que este montador procura “encaixar” as peças.
Nas imagens que resgataste, parece que esboças um pequeno “Frankenstein da pandemia”, dando pés, pernas, mãos, caras… à tal torrente de imagens. E, com isso, em certa medida, convocas um corpo que carrega consigo uma emoção: a descoberta (finalmente?) do corpo imerso numa solidão imposta pelo mundo lá fora, um rosto jovem e depois esse gesto que une vizinhos, que, eventualmente, os faz (re)descobrir (finalmente?) a solidariedade, colocando-os – e colocando-nos a nós que nos podemos rever intensamente nesta cena – “entre iguais”. Esse estender o braço, em esforço, para servir o chá é também a mais bela metáfora para este exercício conjunto: é “em esforço”, mas com muita vontade de “ligar” ou “unir”, que este montador procura “encaixar” as peças – estou a presumir que a ordem foi atribuída no momento da montagem, mas não sei se foi assim.
Perguntava-me ainda se este é um filme optimista ou pessimista. Não sei responder a essa mesma questão. Sinto-o como uma forma de “sentir o pulso” a este momento. Para ver, se estivermos para aí virados (tens razão: sendo um pouquito “masoquistas”, porque estamos todos muito saturados), e eventualmente “deitar fora”. Não o digo em sentido depreciativo: digo “deitar fora” como quem diz “trincar e digerir”, para depois transformar o visto em algo que pode não passar de uma pequena (pequena grande!) sensação ou, quiçá, gesto (porque não?). Ocorre-me, por exemplo, essa sensação que às vezes toma conta de nós e nos diz que pertencemos a um projecto comum. Chamemos-lhe humanidade. Ou cinema. Chamemos-lhe cinema.
Abraço e faz o favor de pedir chá ao vizinho para matar o bicho,
Luís M.
O filme Contágio está disponível na Filmin. É um título gratuito para utilizadores da plataforma.