Os nossos walshianos reúnem-se para uma last dance com as imagens saídas da pena de uma das mentes mais brilhantes dos séculos XX e XXI cinematográficos. Jean-Claude Carrière deixou-nos cinema para ver e saborear até ao fim dos nossos dias. Foi, é verdade, uma espécie de lobo temporal esquerdo de Luis Buñuel, nos idos anos 60 e 70, mas aqui essa parceria, que era mais do que uma mera parceria, é apenas invocada. Os nossos walshianos decidiram, deste modo, convocar facetas mais secretas na obra deste criador total chamado Carrière.
A minha escolha de filme prende-se com uma lição de cinema de Jean-Claude Carrière a que tive o privilégio de assistir em Junho de 2016, no festival de cinema Il Cinema Ritrovato, em Bolonha. Um daqueles momentos de deslumbramento, quando podemos comprovar que uma figura lendária do cinema é, efectivamente, feita de carne e osso e está ali mesmo à nossa frente. A postura de Jean-Claude Carrière era, nesse aspecto, extremamente desconcertante, já que a sua atitude não era certamente a de uma lenda ou de alguém que deu um contributo inestimável para a história do cinema. Carrière falou sempre com uma enorme generosidade, como soberbo contador de histórias que era, com um humor que em poucos minutos deixava a plateia a sorver as suas palavras. Foi assim que relatou a forma como conheceu Miloš Forman durante a rodagem de Belle de jour (A Bela de Dia, 1967), como chegados a Cannes vindos de um agitada Nova Iorque, a bordo do Queen Elizabeth 2, em pleno Maio de 68, se deparam com o festival de cinema cancelado. Em busca de alguma serenidade, Miloš Forman decide então regressar a Praga, acabando por chegar à capital checoslovaca justamente na altura em que os tanques soviéticos começavam a entrar na cidade.
Valmont (1989) é um filme de um sabor amargo-doce, com a infeliz circunstância de a sua estreia ter tido lugar quase em simultâneo com a estreia do filme de Stephen Frears, Dangerous Liaisons (Ligações Perigosas, 1988), o que condenou à partida qualquer sucesso que Valmont tivesse logrado alcançar. Mas o discurso de Carrière sobre o filme nunca foi dolorido, antes evocando memórias de forma entusiástica, também sobre a figura do argumentista, colocando-se na rectaguarda, assumindo um papel que termina no momento em que o filme começa a ser rodado, enaltecendo pormenores do filme menos dependentes do argumento, louvando em particular a ideia de mise en scène presente no segmento em que Valmont dança com quatro mulheres diferentes, fluindo entre cada dança. No fim, Jean-Claude Carrière deixou uma questão de alguma melancolia, confessando que no presente se perguntava por vezes, contemplando realizações passadas, se ainda teria a capacidade de fazer algo de semelhante. Pensamento estranho, de alguém que conseguiu construir uma obra de excelência até ao fim.
Daniela Rôla
Cito da Indiewire o testemunho integral de Jonathan Glazer, sobre a sua colaboração com Jean-Claude Carrière. “Dez anos depois a morte súbita do marido, uma mulher recebe a visita de um rapazinho de dez anos que diz ser a sua reincarnação. Eu não tinha nada além disto. O meu produtor falou com Jean-Claude que me convidou para a sua casa em Paris. Eu ia nervoso. Ele disse ter gostado muito da ideia do filme. Vi-o em seguida folhear um livro de histórias de amor, para ver se alguém tinha escrito algo de semelhante. Não tinham. Provavelmente por uma de duas razões. Ou ninguém se havia lembrado de fazer uma coisa assim, ou porque uma história como esta não deveria ser contada. Perguntou-me se tinha um título. Disse-lhe que era Before Birth. Foi o que ele pôs no papel, olhando-o por alguns segundos, tendo depois riscado a palavra Before. E assim começámos. Trabalhámos no argumento ao longo de um ano. É difícil descrever o impacto desse nosso encontro em mim. Tudo aquilo que ele me ensinou. Quando terminámos, serviu-me um copo do melhor vinho que alguma vez bebi. Ficámos ali, em silêncio, a saboreá-lo.”
Para prolongar o efeito da descoberta deste filme, revi-o por mais duas vezes num espaço de 24 horas. Já regressei a ele e sempre me deixou sob um fascínio difícil de descrever. Jonathan Glazer encontrou as imagens que só ele poderia fazer para esta história de que ninguém antes se tinha lembrado, ou então que foram eles os primeiros que tiveram ousadia de contar. Birth (Birth – O Mistério, 2004) é um dos meus filmes deste século. Assaltam-me de imediato as suas primeiras imagens, a narração em off de um homem de quem apenas vemos a silhueta pelas costas, cuja corrida ao longo do Central Park acompanhamos por intermédio de um travelling só interrompido quando no interior de um túnel este homem tomba e morre, as suas últimas respirações cadenciadas pelo cair da neve a toda a volta.
Ricardo Gross
Com argumento co-escrito com Anne-Marie Miéville (companheira de Godard desde 1970 e colaboradora habitual dos seus filmes até ao início dos anos 2000) e Jean-Claude Carrière, Sauve qui peut (la vie) (Salve-se Quem Puder, 1980) marcou o regresso de Jean-Luc Godard ao circuito mais “convencional” do cinema, depois de alguns anos de ausência em que se dedicou ao cinema de carácter revolucionário (no modo e na forma), em realizações coletivas com Jean-Pierre Gorin e Anne-Marie (com e sem o chapéu do Grupo Dziga Vertov). O filme é organizado como uma partitura musical com quatro movimentos (o imaginário, o medo, o comércio e a música) e conta com a participação de Isabelle Huppert, no papel da prostituta Isabelle Rivière, do cantor Jacques Dutronc, como o realizador de televisão Paul Godard [que tenta voltar ao cinema – há que recordar o trabalho para televisão que Godard fizeram imediatamente antes de Sauve qui peut, nomeadamente Six fois deux/Sur et sous la communication (1976) e France/tour/detour/deux/enfants (1977)], e Nathalie Baye, a sua namorada.
Uma obra-prima que é, para além do mais, uma manifestação de anticonformismo a que aquele grupo criativo nos habituou: Godard, Anne-Marie e Carrière. Uma nova forma de interrogar a matéria cinematográfica através das deambulações e perplexidades de um técnico de televisão, inspirada pela “gramática visual” do cinema mudo (como afirmou o realizador) e recusando a montagem de continuidade, apostando, aliás, na técnica da “decomposição” em que a velocidade das imagens é reduzida até à sucessão individual de cada fotograma (a isto se deve o título de “Slow Motion” no mercado britânico). E o dedo de Carrière está mais que evidente (ainda que este seja um dos seus contributos mais discretos) nos intrincados labirintos de espelhos que o filme constrói em torno das imagens públicas dos seus criadores e, naturalmente, na perversão e na violência (buñueliana?) dos clientes que recorrem aos serviços das prostitutas do filme. Depois, Carrière e Godard reunir-se-iam, mais uma vez, para o belíssimo Passion (Paixão, 1982), ainda que nesse filme o contributo de Carrière acabasse omisso dos créditos, não fosse o argumento um processo experimental paralelo, o ainda mais belo Scénario du film “Passion” (1982).
Ricardo Vieira Lisboa
Se Heureux anniversaire (Feliz Aniversário, 1962) é dominado, sobretudo, pelo “caos” que só o impecável timing cómico de Pierre Étaix era capaz de organizar, já a fina mordacidade, endereçada aos pesadelos do quotidiano de uma cidade como Paris, não pode deixar de ser interpretada como produto da pena e da imaginação de Jean-Claude Carrière. Aliás, basta observar a sua actividade – múltipla e diversificada – enquanto argumentista, e descortinar como Carrière sempre satirizou qualquer elitismo, ideologia ou noção social que de crítica necessitasse: do sentimento anti-burguês de Le journal d’une femme de chambre (Diário de Uma Criada de Quarto, 1964) e Le charme discret de la bourgeoisie (O Charme Discreto da Burguesia, 1972), à história da repressão política no Século XX em Die Blechtrommel (O Tambor, 1979) ou The Unbearable Lightness of Being (A Insustentável Leveza do Ser, 1988), e culminando na revolta humana contra realidades vigentes em Taking Off (Os Amores de Uma Adolescente, 1971) e Les possédés (Os Possessos, 1988).
Em Heureux anniversaire (co-realizado por Carrière e Étaix, e que lhes valeu o Óscar de melhor curta-metragem em 1963), a história de um marido cujos esforços, para comprar uns quantos “mimos” românticos e chegar a horas ao jantar de aniversário de casamento que a mulher em casa lhe preparou, são constantemente gorados, é puro material de Jean-Claude Carrière. O “diabólico” trânsito parisiense, a petulância de outros transeuntes e uma actividade económica tão rapace que aparenta ignorar o fellow man que a sustém, são temas que o argumentista trabalharia amiúde com Luis Buñuel. Contudo, não se pode deixar de notar como Heureux anniversaire vive influenciado pelo absurdo dos filmes de Buster Keaton, Stan Laurel e Jacques Tati – este último, segundo se especula, inspirar-se-ia em alguns elementos desta curta-metragem para o seu próprio Trafic (Sim, Sr. Hulot, 1971). Nestes singelos doze minutos de metragem, Pierre Étaix pode ser o protagonista e a estrela indiscutíveis do filme, mas aqui se mostram, também, as sementes criativas do acutilante, corrosivo e profícuo escritor que foi Jean-Claude Carrière.
Samuel Andrade
Foi-se no sono uma das melhores cabeças que escreveu para o cinema. Jean-Claude Carrière trabalhou durante mais de 60 anos, escreveu para Godard, Miloš Forman, os últimos Garrel, e muitos outros, onde se destaca Buñuel, de quem foi um dos principais colaboradores nos sessentas e setentas. Mas a primeira imagem que tive de Carrière quando soube da sua morte foi o homem da praça, a sua aparição em Copie Conforme (Cópia Certificada, 2010). Para este filme, Kiarostami escreveu pela primeira vez um guião antes da rodagem, elemento necessário para a obtenção do financiamento. O filme, situado no sul da Toscânia, a primeira ficção de Kiarostami fora do Irão numa versão irónica de Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1953) de Rossellini, apresenta-nos um escritor (William Shimell) que acaba de editar o seu último livro, onde estabelece relações entre o original e a falsificação (ou a cópia) no mundo da arte. A assistir à apresentação do livro está uma antiquária francesa, interpretada por Juliette Binoche, e que se manifesta admiradora da obra do escritor. Os dois passam o dia juntos, inicialmente trocando impressões sobre a arte e o valor da cópia, depois fingindo intimidades e confidências conjugais e, a partir de uma dada altura, começamos a duvidar se eles não se conheceriam, se os acontecimentos sobre os quais estavam a fantasiar, não seriam, decerto, um passado partilhado.
Kiarostami, numa das cenas em que Binoche questiona a fidelidade do (suposto) companheiro, afirma a sua ficção e os seus truques: o campo e o contra-campo entre os dois protagonistas, ao invés do habitual cruzar oblíquo dos planos, apresenta-nos o pingue-pongue através de um olhar quase frontal para a câmara por parte das personagens, a deixar à vista o artifício. O filme reincide num dos temas da obra de Kiarostami, o simulacro, um convite à imaginação e à reflexão do espectador sobre o original e a cópia, o verdadeiro e o falso, em que o Carrière surge no centro da praça, num plano que falseia uma discussão com a esposa (que era afinal uma altercação ao telefone), um guionista dentro do filme, o intérprete e a testemunha do belo, do património artístico da velha Itália, que relembra as palavras da mulher, na força de uma escultura, um par em que a mulher encosta o rosto ao ombro do parceiro. O guionista direcciona o protagonista, não só para um bom restaurante, mas para o que Binoche espera dele: a única coisa que ela pede, é que caminhe ao lado dela e que lhe pouse a mão no ombro; é tudo o que ela deseja, todos os problemas entre eles podem ser apagados por um simples gesto.
Vítor Ribeiro