Quando comecei a ver e a gostar de cinema, o DVD não passava de uma miragem. Em bom rigor, até o velhinho VHS ainda estava longe, já que quem reinava lá em casa eram as cassetes Beta. Dessas já não há registo, mas as suas substitutas teimam (para aflição da minha mãe) em manter-se no local onde esta história teve início. Nesses tempos analógicos, construir uma filmoteca era bem mais complexo, mas a coisa lá se foi fazendo, entre alguns originais, importados ou não, muita gravação pirata e horas de “garimpagem”.

Não me lembro ao certo de qual o título que marcou a entrada do DVD na minha vida, mas recordo-me bem do choque que constituiu o primeiro embate com um conceito chamado “zonas” e a dura percepção de que muitos dos filmes que tinha comprado não podiam ser lidos pelo meu leitor, que lá teve de ser devidamente quitado… A partir daí, a caixinha de Pandora abriu-se e tudo o que antes parecia um sonho impossível ganhou contornos bem reais. A minha colecção foi crescendo, não só numa lógica de transição do que já tinha em vídeo mas num esforço de “valor acrescentado”: afinal, não era nada a mesma coisa poder ver o Suspiria (1977) de Dario Argento em todo o seu esplendor technicolor panorâmico quando só o conhecia numa versão censurada e em formato “quadrado” (que, ainda por cima, me tinha obrigado a um dia a latas de atum só para a poder comprar em Londres pós inter-rail) ou não ter de tirar a cor à TV para que os zombies do Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968) de George Romero deixassem de ser verdes…

Dos inúmeros exemplos que poderia destacar, opto pelo Repo Man (O Clandestino, 1984) de Alex Cox. Desde logo, por esta actualização da paranóia nuclear dos 50s para o flagelo da reaganomics em registo de FC farsola, com a sua visão de uma sociedade sufocantemente homogeneizada e tolhida por um consumismo passivo, se parecer cada vez mais com a realidade. Mas também por representar um momento decisivo na minha love story com o DVD e o fascínio iconográfico deste enquanto objecto: edição limitada em metal, livrete com BD incluída e um CD da banda sonora, o avô Iggy Pop à cabeça de diversas instituições da cena punk/hardcore (Black Flag, Circle Jerks, Suicidal Tendencies…). Esse lado estético, puramente visual, foi o que mais me bateu nesses anos (viragem para o século XXI), com as “caixinhas especiais” a sucederem-se (volta, Anchor Bay!), da anarquia de uns Três Estarolas gore do Evil Dead II (A Morte Chega de Madrugada, 1987) de Sam Raimi ao terror metafísico da obra-prima de Lucio Fulci, The Beyond (As Sete Portas do Inferno, 1981), passando por declinações de uma sensibilidade seventies muito freak como o Two-Lane Blacktop (A Estrada Não Tem Fim, 1971) de Monte Hellman (com direito a um porta-chaves do GTO Pontiac de Warren Oates em miniatura) ou o The Wicker Man (O Sacrifício, 1973) de Robin Hardy (numa linda embalagem de madeira).

Ao longo do tempo, à medida que as prateleiras se enchiam, a minha cinefilia foi evoluindo e o meu desejo de coleccionismo também. O cinema “de culto” deu por si a repartir espaço com outros protagonistas. Hoje, por trás de uma fila dedicada à Criterion (ainda e sempre o supra-sumo nisto do home cinema) pode esconder-se uma galeria de pérolas trash da Mondo Macabro; ao lado de um Lubitsch, um Jess Franco; para cada clássico canónico (via Hitchcock, Buñuel, Pasolini, Ophüls, Sirk ou Nicholas Ray), uma obscuridade exploitation (olá José Mojica Marins, Joe D’Amato, Amando de Ossorio, Frank Henenlotter e tantas outras luminárias “marginais”); a dominatrix nazi Ilsa da diva do chunga Dyanne Thorne a piscar o olho ao pai de todos os serial killers, o Peter Lorre do M (Matou, 1931) de Fritz Lang, ou os anti-heróis melancólicos da Trilogia do Proletariado de Aki Kaurismäki de mãos dadas com os homens gloriosamente fora de tempo do quarteto de “Legendary Westerns” de Sam Peckinpah. Autores, artesãos, malditos e iconoclastas em alegre convívio, sem hierarquias nem barreiras, num continuum onde todas as conexões são possíveis e essenciais. Um pouco à maneira do que tentei fazer na minha Cinecittà, espelho modesto e bastante baço de saudosas mecas como a Kim’s Video nova-iorquina ou a londrina Cinema Store. E tão, tão longe do afunilamento e da rasura propostos pelas plataformas de streaming mais populares… (aliás, há mais consciência da memória do cinema em qualquer semana de programação no Fox Movies!)
O que esse património afectivo também possibilita, e que um link ou ficheiro nunca poderão oferecer, é uma relação concreta e material com a sétima arte. De resto, potenciada por essa palavrinha mágica: “extras”. Todo o material de acompanhamento – livretes, comentários, entrevistas, vídeo-ensaios, peças de arquivo e/ou desdobramentos para outros campos como a TV ou a rádio – é puro maná para o cinéfilo empedernido, fundindo passado e presente, contextualizando o filme em questão e devolvendo-lhe toda a dignidade merecida. O que explica sucessivas duplicações [quantas mais versões pode uma pessoa ter do Halloween (O Regresso do Mal, 1978)? Ai, mas aquela tem o “TV cut”; pois, mas nesta saiu aquele novo documentário “definitivo”…] e angústias existenciais [que edição comprar do The Adventures of Buckaroo Banzai Across the 8th Dimension (As Aventuras de Buckaroo Banzai, 1984)?]. E o cenário só se veio adensar com o upgrade para o Blu-ray, com a entrada em cena – a juntar aos suspeitos do costume: Eureka, BFI, Arrow ou Shout! Factory – da “new kid on the block” Indicator, causadora de insónias ao ritmo de vários lançamentos imperdíveis, incluindo, entre uma imensidão de bizarrias e excentricidades, sumptuosas caixas a transbordar de iguarias dedicadas ao film noir, Corman/Poe, Sam Fuller, Budd Boetticher e William Castle ou “simplesmente” aos míticos e conturbados The Last Movie (1971), de Dennis Hopper, e Night of the Demon (A Noite do Demónio, 1957), de Jacques Tourneur. E para que o factor geekness não se perca por inteiro, como não olhar babado para a “most excellent” palheta personalizada dos Wyld Stallyns, a servir de bónus ao díptico Bill & Ted (pena não terem esperado pelo terceiro tomo; sim, afinal também há fãs da série por cá)?

Cada DVD/Blu-ray transporta não só a sua história (e a do cinema) como a minha, numa “ligação directa” a situações, momentos e pessoas. A minha colecção faz parte incontornável de mim, é uma extensão da minha personalidade e um testemunho vivo de como esta se foi alterando. Corresponde a um olhar sobre o mundo, algo de íntimo, mas que pode e deve ser transmitido, ainda que correndo o risco de uma incompatibilidade de gosto ser entendida como rejeição pessoal… Sempre que passo por esse “santuário”, sou assaltado por uma série de imagens e sons, que me interpelam a (re)descobertas sem fim. Um chamamento em tudo superior ao da dita nova golden age que, salvo honrosas excepções, se limita a reciclar modelos (e vícios) anteriores. “The more things change, the more they stay the same”, já dizia, lapidar, o Snake Plissken/Kurt Russell do Escape from L.A. (Fuga de Los Angeles, 1996) do sacrossanto Carpenter…
A dimensão “ritualista”, o carácter “cerimonial” dos actos que se repetem – desligar as luzes, enfiar o disquinho no leitor e carregar no Play – no conforto do lar, é o que mais se aproxima da experiência máxima do grande ecrã, a caminhar acelerada e tristemente para a extinção. Numa época dominada por espectros e fantasmagorias “virtuais” (já olharam para este último ano?), o suporte físico continuará a ser um anacronismo que importa celebrar e proteger. Contra a ditadura do algoritmo, celebre-se a resistência cinéfila, na esperança de que sirva de eco a muitas outras. Em defesa de todos nós, para que o contacto e a partilha não caiam de vez no esquecimento.
Vasco T. Menezes, cinéfilo, tradutor antigo proprietário da loja Cinecittà.
Texto escrito em resposta ao nosso apelo em defesa dos suportes físicos, publicado no dia 19 de Novembro de 2020 e assinado pelos editores do À pala de Walsh.