Estamos no fecho do primeiro acto de The Wings of Eagles (A Águia Voa ao Sol,1957) e Wayne e O’Hara, Spig e Minnie, discutem no compasso da argumentação e do campo/contra-campo. Minnie informa-o que desta vez ela e as filhas não o acompanharão em mais uma mudança de domicílio determinada pela Marinha, O’ Hara diz sentir-se apenas uma pequena gaveta num espaço ocupado pelo ofício do marido. Enquanto escutamos os diálogos, seguimos os enquadramentos de John Ford, compostos por uma luz límpida, que definem em que cena está cada um dos personagens: enquanto O’ Hara está sentada com os pés sobre a mesa, contra uma parede interior e ladeada por uma taça de fruta e uns recipientes que poderiam ser uma natureza morta, Wayne está de pé, numa posição que antecipa o movimento, à frente de uma janela vazada de luz e da promessa de um espaço exterior. De um lado a família e o domicilio, do outro o dever e a aventura.
A biografia de Frank W. ‘Spig’ Wead, amigo e guionista de Ford, é o suporte de mais um projecto pessoal do cineasta, que também passou pela Marinha na II Guerra, como demos nota na crónica que dedicámos a Rio Grande (1950). Com a acção situada entre as duas Guerras, desde a primeira sequência que Ford deixa claro o fascínio pelas fardas, pelo comportamento aventuroso dos homens da Marinha, dos encontros e disputas com as fardas verdes do Exército. Wayne imporá às altas patentes a importância da introdução do avião nas legiões da Marinha, com engenhos voadores que tombam festas de chã, tribunais militares, um território de homens e de tensões que se resolvem com álcool, charutos e lutas forradas a fair play, como o nome do vigário especialista em desporto de The Quiet Man (O Homem Tranquilo, 1952). Um mundo de homens onde O’ Hara procura intrometer-se, casada com a Marinha como estivera comprometida com a Cavalaria em Rio Grande. Se a palete ampla de technicolor preenche o filme, o equilíbrio das sombras de um compartimento interior assinalará a morte de um filho e a incapacidade do herói Spig amparar a companheira. Voltam a jogar ao domicílio conjugal, nascem duas filhas, mas o genérico já anunciara O’ Hara como personagem secundária (no terceiro posto, enquanto nos dois filmes anteriores desta crónica o casal estava lado a lado): um grande amor é quebrado, para permitir que Wayne se torne um grande aviador.
Só o Cinema possibilitará o reencontro da família, quando Minnie e as filhas assistem às newsreel que colocam Spig a comunicar com elas à distância, momentos que juntam personagens separados por vários anos, tal como o pai e o filho de Rio Grande: quando finalmente Wayne regressa a casa, é um estranho que as filhas fingem não reconhecer. Será numa destas visitas, num filme sempre disponível para esgotar as possibilidades de recomeços, que Wayne cai nas escadas, quando corria para acudir ao choro de uma das filhas. Ironia e impossibilidade de conjugabilidade: um herói, alta performance de participações em exercícios e batalhas de elevada perigosidade, sofre um acidente no espaço familiar que o deixa imóvel. À sua maneira, Spig recupera a condição de mártir de Kirby em Rio Grande, que no zelo da entrega ao dever fora trespassado pelas setas dos Apache. Deitado de barriga para baixo, condenado à inacção, herói penitente que dispensa a piedade, Wayne libertará O’ Hara da sua longa convalescença, para se entregar aos cuidados da Marinha, de enfermeiros e médicos, e do álcool, que entra na enfermaria pela mão de todos, de todas as proveniências.
Um melodrama com duas senhoras, O’ Hara e a Marinha: enquanto anseia por mais um possível reencontro de Spig com Minnie, o espectador assiste à solenidade da exoneração do protagonista.
Ford e o tempo que passou permitem o reencontro de O’ Hara e Wayne: ele fizera-se um escritor e guionista reputado, as filhas já estão na universidade, uma porção de cabelo branco não apartou a beleza do rosto de Minnie. Há mais uma reconciliação, mudanças planeadas, mas a telefonia anuncia o ataque a Pearl Harbor, que descongelaria a participação americana na Guerra. Apesar da distância, a cena replica na forma a separação que descrevemos no começo deste texto: Spig do lado da janela, apesar de acompanhado das imprescindíveis bengalas, de corpo inteiro, disponível para a acção, à aventura, e é preciso sublinhar a óptima prestação de Wayne, actuação física que, talvez pela dieta recente de Kurosawas, dos noirs aos Shakespeare com Samurais, nos lembrou Toshiro Mifune, em especial nas cenas em que ele, depois de um longo e penoso recobro, volta a caminhar, amparado pelas canadianas; do outro lado do telefone, O’ Hara, num enquadramento fechado, imóvel e apenas focada naquele diálogo, como se fosse o último. Ela adianta-se, consciente de que mais uma vez a História atropelara aquela possibilidade de amor, diz-lhe que ele sabe o que fazer, deve cumprir o seu dever e na despedida, num momento de rara pungência, porção do melodrama ensaiado por Ford a exemplo de como pontuara Rio Grande, O’ Hara murmura a Wayne, para conter o pranto, que se a Marinha não o quiser (pela sua debilidade física), ela quer!
As imagens em movimento facultam a chave do filme após a recuperação de Spig, na redenção do herói através da escrita e intensificam o alinhamento pessoal, idiossincrático, de Ford, evidenciado quando Wayne assiste às rushes de um filme sobre a Marinha que escrevera, tendo a seu lado Ward Bond, a interpretar John Ford. Se a sala de cinema era o ponto de encontro da família, nos caminhos dos clarões de luz e de tempo projectados na tela, o cinema é a obsessão que também permite escapar, justificar uma ausência, na inaptidão de lidar com uma vida familiar insatisfatória. Já incorporado no exercício do dever, Wayne comenta as imagens de Pearl Harbor, que destruiu quase todos os porta-aviões do dispositivo americano, como se analisasse as imagens de um filme, uma aula de estética, em que ele encontra a sua forma de expressão, como o amor que Ford descobriu nas histórias do Cinema, para onde dirigiu as suas aptidões: os filmes foram as suas melhores acções, só equiparadas ao seu contributo na II Guerra, quando serviu a nação americana com o seu ofício, como vimos no primeiro texto dedicado a estas disputas conjugais. Pouco depois, Spig, com a América a participar do esforço de guerra, usa a criatividade na resolução de problemas e de gestão de recursos da Marinha, como se estivesse a escrever uma peça ou um filme, um permanente “e se…”, que lhe atribui uma progressiva importância na função e na hierarquia, mas que o entrega à solidão, a um sentimento de perda, a uma inexistência fora do trabalho, confinado em gabinetes a meia luz, apartado do mundo exterior, um domicílio com o dever.
Um melodrama com duas senhoras, O’ Hara e a Marinha: enquanto anseia por mais um possível reencontro de Spig com Minnie, o espectador assiste à solenidade da exoneração do protagonista, um curso de tempo agregado numa embarcação atracada, a desafiar a cronologia dos céus e do alto mar, uma despedida comovente entre Wayne e um fio longo de homens, cúmplices de todas as histórias. Um belíssimo filme, então, sobre o envelhecimento, em que as imagens que nos ficam na cabeça são os corpos jovens de John Wayne e de Maureen O’ Hara revelados pela memória de Spig e pela graça e melancolia dos quadros de John Ford.