Para falar de Nosotros, la música (1964), é imperativo recapitular a missão e as actividades do Instituto Cubano del Arte e Industrias Cinematográficos (ICAIC). Fundado em 1959, logo após a Revolução liderada por Fidel Castro, o ICAIC distinguiu-se por uma cinematografia documental de cariz propagandista, encabeçada por autores como Tomás Gutiérrez Alea ou Santiago Álvarez, que versou, entre outros temas, sobre reforma agrária – Esta tierra nuestra (1959) –, o desenvolvimento das infra-estruturas de ensino no país – La nueva escuela (1974) –, o imperialismo norte-americano – L.B.J. (1968) – ou a invocação directa de figuras de monta do movimento militar que ascendeu ao poder em 1959 – Hasta la victoria siempre (1967).
Embora ainda possua uma experiência incompleta deste contexto fílmico, um dos títulos (curiosamente, com escassa propaganda à vista) que mais deleite me ofereceu durante a sua observação é este Nosotros, la música. Assinado por Rogelio Paris, cineasta com apreciável reputação no seio do ICAIC, o filme aparta-se dos teores político e bélico na produção da sua época para discorrer, visualmente, a propósito dos prazeres sociais da música cubana para músicos, figuras públicas e o “comum dos mortais” de Cuba.
Oscilando entre a produção musical e o documentário etnográfico, o cinéma vérité de observação social e a obra bucólica e lúdica, o ensaio cinematográfico e o filme onírico, Nosotros, la música impressiona, ao início, pela pormenorização de diversos conteúdos e protagonistas em pouco mais de uma hora de metragem.
Traçando as origens e diversas influências (ritmos africanos, a fusão de géneros europeus como o flamenco, o cancioneiro popular daquele país) que formaram a música cubana contemporânea, Rogelio Paris sublima, por intermédio de um apurado sentido de fotografia e montagem, o popular son cubano como fonte de orgulho nacional – sobretudo, junto de uma população que, ainda em “convalescença” de radicais alterações políticas, encontrava conforto nos ditames da sua própria harmonia musical.
Além dos meandros culturais que nos apresenta, Nosotros, la música é, indiscutível e principalmente, uma obra que vive do trabalho de câmara, e da justaposição das suas imagens na mesa de montagem, para justificar esta “questão de orgulho”. O registo final reveste-se de uma fulgurante uniformidade, não obstante a referida variedade de locais e circunstâncias em que Rogelio Paris se move: vagueia pelos bairros sociais, dialoga com um operário de construção civil e “compositor nas horas livres”, vai a saraus culturais animados por um pianista que, a espaços, nos lembra a rouquidão de Louis Armstrong e filma espectáculos de palco com aprimorada elaboração cénica, culminando numa magnífica sequência final onde um casal dança, da manhã ao pôr-do-sol (ou disso nos quer convencer a coreografia), por ruas, praças, portos de recreio e monumentos de Havana.
Enquanto via Nosotros, la música – e fi-lo duas vezes antes desta redacção –, outro título ocorreu-me por diversas vezes, muito mais conhecido que este documentário de Rogelio Paris, pelo seu contexto geográfico e por uma execução técnica na raia do expressionismo: Soy Cuba (I Am Cuba, 1964), de Mikhail Kalatozov. Esta associação, talvez, não surja por acaso. Os dois filmes não só partilham o mesmo ano oficial de produção, como se constituem “parentes formais” no testemunho histórico da influência, estética e material, da União Soviética entre os cineastas cubanos que estabeleceram o ICAIC.
Fica aqui patente a ideia de um double bill para programadores ou exibidores determinados em promover Nosotros, la música; uma raridade cinéfila (em formato home cinema, apenas está disponível numa “obscura” edição norte-americana, carente de algum restauro fílmico) que, na exuberância das suas imagens e pelo fascínio musical revelado, é meritória de constar entre as obras maiores do cinema cubano na década de 1960.