Este texto contém spoilers
Os quatro segmentos de Ok-hui-ui yeonghwa (O Filme de Oki, 2010) começam (e acabam) ao som de Pompa e Circunstância op. 39 marcha no. 1 em D maior de Elgar. Como noutras obras de Hong Sang-soo, os diferentes fragmentos têm um quê de puzzle, dando uma certa liberdade ao espectador para os ler de diferentes maneiras: um filme em quatro partes, quatro curtas de diferentes perspectivas, filmes dentro do filme (designadamente o primeiro e último segmentos), até um falso filme colectivo. Os créditos iniciais surgem quatro vezes, com os mesmos actores interpretando o que são – ou parecem ser – as mesmas personagens. À boa maneira de Hong, não há aqui a sumptuosidade estilística a que um certo cinema coreano comercial nos habituou. É um filme aparentemente simples, sobre encontros mundanos, e actos e palavras de circunstância. Bastante familiar para quem conhece minimamente a obra do realizador, passível de ser objecto de deslumbre ou de aborrecimento.
No primeiro segmento, ironicamente chamado “Um Dia de Encantamento”, acompanhamos ao longo de um dia Jingu (Lee Sun-kyun), realizador de cinema e professor adjunto, em ambas as funções meio em negação sobre a realidade do seu patente fracasso. De manhã sai com a mulher que, por lapso, o chama pelo nome de outro homem, levando-o a remoer (ora em voz alta ou no pensamento que ouvimos em off) a quem ela se poderia estar a referir. Viremos a saber depois que Jingu é ele próprio bastante liberal com as suas relações e não propriamente um esposo fiel, mas a sugestão de que a mulher possa ter feito o mesmo que ele é-lhe desconcertante. As corriqueiras angústias masculinas e a necessidade de afirmação de Jingu irão continuar também na esfera profissional à medida que o dia progride. Vêmo-lo numa sala de aula a fazer um pouco de mansplaining a uma aluna e, depois, a fazer-se convidado para uma refeição com o staff da faculdade organizada pelo seu antigo mentor, o professor Song (Moon Sung-keun). Até lá, Jingu terá tempo de deixar pendurada a aluna que convidara para uns copos, para (na sua óptica) a consolar, e de dar ares a uma mulher desconhecida que encontra no parque onde espera pela hora da reunião. Após um presunçoso “sabe quem eu sou?” quando ela o fotografa sem consentimento, ele muda de tom para lhe “ensinar” como se tiram fotos, repetindo que é um cineasta (de quem ela nunca ouviu falar), e desistindo da interacção quando ela lhe diz que é casada. O absurdo da situação de Jingu torna-se cada vez mais evidente à medida que o episódio avança. Fica a saber que o professor que idealizara pela sua integridade artística é afinal um vendido, que aceitara dinheiro para dar um cargo permanente na universidade a um colega. No encontro – uma das várias refeições que veremos ao longo do filme –, Jingu, já bem enfrascado, tenta esclarecer o rumor, mas a sua insignificância torna-se patente. Podemos ver um certo sarcasmo na deixa com que Song se despede dele, aconselhando-o a ler “livros de lógica”, mordaz pragmatismo um tanto distante de uma cena anterior, na universidade, em que lhe dizia que “o dinheiro estraga tudo” e “num mundo tão podre, só os livros nos salvarão”.
As respostas vagas de Jingu (“Eu só fiz o filme, não tinha nenhum tema em mente; o meu filme é similar ao processo de conhecer pessoas […] espero que o meu filme possa ser tão complexo como uma coisa viva”) são facilmente lidas como reflexões pouco subtis sobre a obra de Hong Sang-soo.
Mas mais humilhação espera Jingu. No final da projecção do seu filme, perante uma sala largamente vazia, a única pergunta que recebe da audiência é para o confrontar com um caso extraconjugal que tivera com uma aluna cujo abandono destruiu a vida dela. Tal como a cena da refeição, a do Q&A pós-filme é um dos típicos momentos do cinema de Hong que giram em torno de situações desconfortáveis, sendo que as perguntas/acusações da espectadora (“o seu filme é só sobre si”) e as respostas vagas de Jingu (“Eu só fiz o filme, não tinha nenhum tema em mente; o meu filme é similar ao processo de conhecer pessoas […] espero que o meu filme possa ser tão complexo como uma coisa viva”) são facilmente lidas como reflexões pouco subtis sobre a obra de Hong Sang-soo.
A visão de fracasso de Jingu do primeiro segmento – que termina com a deixa amuada “não volto a fazer filmes” – dá lugar a uma versão juvenil da personagem. “Rei dos Beijos” abre com os créditos finais do filme de Jingu, ainda estudante de cinema, perante a reacção encorajadora do professor Song. Um despreocupado – mas já alcoólico – Jingu passa o segmento convencido de que terá o que quer: um prémio de cinema em dinheiro que lhe dizem estar no papo e Oki (Jung Yu-mi), também uma estudante de cinema e, é sugerido, amante de Song. Mas ambas as metas se mostram ilusórias. Jingu não ganha o prémio e a sua perseguição de Oki também tem um quê de humilhante. Embora ela acabe por dormir com Jingu num daqueles momentos anti-românticos do cinema de Hong, isso só acontece depois de ele passar uma noite a gelar, à espera nas escadas da casa dela, enquanto as suas chamadas telefónicas são ignoradas. Oki diz, divertida, a uma amiga que a água da escola deve ter qualquer coisa pois, de repente, todos se apaixonam por ela. A insistência de Jingu nada tem de especial, mas é esses “nada de especial” que o cinema de Hong se especializou em tornar extraordinários.
Jingu e Oki voltam a encontrar-se nos segmentos seguintes. “Depois da Tempestade de Neve” é, talvez, o mais interessante para quem quer descortinar nos diálogos do filme pistas para a visão autoral de Hong Sang-soo. A cena crucial dá-se numa sala universitária vazia, em que Oki e Jingu são os únicos alunos a aparecer para a aula de Song (vêm atrasados, o que serve para outro momento de embaraço, com Song a ter de explicar a um colega por que se encontra a fumar à varanda em vez de estar a trabalhar). A câmara move-se entre alunos sentados e o professor de pé, uns fazendo perguntas ao acaso sobre vida e arte e Song respondendo, com deixas tão evidentes como vagas: “Como se pode ser sábio?” – “Não sou sábio, por isso não sei”; “Acha que tenho talento para cinema?” – “Continua a fazer filmes e vais descobrir”; “O que mais quer?” – “Eu quero isto hoje e aquilo amanhã. É assim que vivo”. Não é difícil ver em Song um alter ego de Hong Sang-soo que, aliás, foi também professor (na Konkuk University). Note-se que o actor Moon Sung-keun deu corpo a figuras idênticas noutros trabalhos de Hong, nomeadamente no posterior Bamui haebyun-eoseo honja (Na Praia à Noite Sozinha, 2017).
O último episódio é o homónimo “Filme de Oki”. Que este segmento tenha o mesmo nome que o filme parece conferir um particular grau de importância a uma perspectiva feminina, que, aliás, é reforçada por narração em off, bem mais relevante que nos segmentos anteriores. A voz que ouvimos é aqui a de Oki como criadora, e quase nos perguntamos se afinal tudo o que veio antes não poderia ter sido uma outra visão sua sobre os dois homens. Ela explica o porquê do seu filme, composto de duas recriações alternadas de passeios no Monte Acha com dois homens diferentes, em dias seguidos de dois anos distintos. As personagens aqui não têm nomes, mas o “homem velho” e o “homem novo” têm os corpos de Jingu e do professor Song. O seu filme é uma experiência, uma tentativa de os comparar, de os (e de se) olhar à distância. Oki constata que, por muito que se tente, a capacidade de o cinema reproduzir a realidade é falível e, afinal, também não se consegue senão uma aproximação imperfeita a entender totalmente o que se vive. “As coisas repetem-se com diferenças que não consigo compreender”, diz – um comentário auto-reflexivo de Hong sobre o seu cinema?
Os ecos formais e temáticos de Ok-hui-ui yeonghwa com outras obras de Hong Sang-soo são claros – aliás, essa repetição é ela mesma característica do seu cinema. Um cinema de baixo orçamento e poucos planos, normalmente fixos, com os seus zooms que muitas vezes enfatizam o desconforto das situações. Um cinema de diálogos meio espontâneos, com alguma indignação e confronto, um certo humor e desencanto. Enquanto se fala muito (e se diz pouco?) há homens e mulheres que andam, fumam, comem e bebem (muito). Nestes encontros de circunstância, as futilidades, ilusões e inseguranças das personagens tornam-se evidentes e, por momentos, inescapáveis.
Há neste filme pontos de contacto particularmente notórios com a curta-metragem de meia hora Cheopcheopsanjung (Lost in the Mountains, 2009), que Hong realizara um ano antes para um projecto colectivo comissionado pelo Jeonju International Film Festival. Três das quatro personagens desta curta são uma espécie de versões (aventaríamos dizer) futuras do trio de Ok-hui-ui yeonghwa e interpretadas pelos mesmos actores: Moon Sung-keun como o professor universitário, Lee Sun-kyun como o seu antigo aluno agora bem na vida depois de ganhar um prémio, e Jung Yu-mi como a antiga aluna e amante de Song que descobre que ele dormiu com uma amiga dela – e acaba por virar as costas às suas patéticas justificações. É ela a narradora de Cheopcheopsanjung, o que rima de forma clara com o último segmento de Ok-hui-ui yeonghwa.
Há uma cena desse “Filme de Oki” onde ela percebe, algo chocada, que a personagem de Moon Sung-keun a observara de longe com o amante jovem. Como se, mesmo nesse acto de independência criativa dela, fosse impossível escapar ao olhar do “homem velho” – ou ao olhar tutelar de Hong.
Ok-hui-ui yeonghwa (O Filme de Oki, 2010) está disponível na plataforma Filmin. Descubra outros filmes da filmografia de Hong Sang-soo na mesma plataforma, aqui.