Em Marnie (1964) de Alfred Hitchcock são as cores que, não apenas conduzem o movimento dos nossos olhos sobre o ecrã, mas que determinam o próprio movimento do filme, cuja trama é talvez o menor dos seus pontos de interesse. Como caçadores, seguimos as cores, são elas o indício da nossa caça. Como caça, seguimos as cores, são elas que nos mostram os caçadores no horizonte, no meio de manchas amarelas, vermelhas, negras, verdes, azuis.
De Marnie Edgar será impreciso dizer que é um objecto — terá menos dimensão do que isso. O filme, dominado por um olhar opressivamente masculino, aplaina a matéria que configura aquela mulher, até esta ser só uma forma, uma mancha colorida, sobre a qual nos pedem que mantenhamos o nosso olhar durante todo o espectáculo, como uma luz azul que se procura seguir durante um exame oftalmológico, substituto móvel da orelha do médico.
As cores servem, no filme, diferentes propósitos, são por vezes camuflagem, outras metonímia, outras ainda uma síntese das duas: é na mala amarela carregada por Marnie debaixo do braço que a câmara se concentra no primeiro plano do filme, mala cuja cor esconde e revela o dinheiro roubado que contém. Ao redor, um mar castanho e gris, como no resto do filme, em que homens, móveis e edifícios compõem a paisagem. Marnie surge aqui, antes mesmo de o seu predador a descrever enquanto presa, como um animal em fuga no meio do arvoredo — os comboios verde escuro que a ladeiam —, por debaixo do azul do céu. O cabelo negro denuncia-a enquanto mamífero: primeira aparição disfarçada do seu cavalo Forio e do desejo sem estigma que lhe surge associado. Muito, muito ao fundo, vê-se um edifício branco, antípoda do negro. São subtis as manifestações de branco neste filme, não pela discrição da cor ou por ser esta pouco importante na dinâmica da obra, mas pelo silêncio que caracteriza a sua passagem, como se em Marnie cada cor tivesse também um timbre — ao branco cabe um tom quase tão imperceptível como as mãos rapaces daquela mulher.
Será precisamente contra o branco ofuscante de um lavatório, súmula da claridade, que veremos tinta negra escorrer pelo cabelo da protagonista, e diluir-se na água, denúncia líquida do mal, cor que é, no corpo e vestuário dela, pontual, mas que surge constantemente em muitos dos fatos masculinos, os maiores vultos de malvadez numa obra construída sobre formas simbólicas do bem e do mal. O negro contrasta directamente com o louro que o vem substituir — louro que não é a cor de trigo baça da infância, como no cabelo de Jessie Cotton, alvo dos ciúmes de Marnie, mas um louro de platina, elemento que serve, precisamente, para branquear — a procura da pureza que a mãe de Marnie não reconhece quando lhe critica o cabelo demasiado fulvo, para si sinal perverso do sexo e do metal que o compra.
Contra o tom creme do táxi que leva Marnie até à estalagem, esconderijo habitual, onde se instala depois do primeiro desfalque que a vemos executar, lê-se “Red Fox Tavern”. O carro parece anunciar a maior das raposas, animal dito astuto e trapaceiro, mas como o cabelo negro de Marnie, aquele invólucro serve sobretudo como desvio. A raposa é afinal a pista falsa, o arenque também vermelho usado como distração quando se treinam cães de caça.
Se Hitchcock será sobretudo conhecido pelo rigoroso controlo sobre a feitura dos seus filmes, espécie de materialização perfeita da vontade do seu criador, o mais interessante em Marnie é a possibilidade de o filme ser uma ameaça à linearidade desse método.
Já o vermelho da raposa é um sussurro irónico da cor mais gritante do filme, a cor que explode nos gladíolos encontrados por Marnie na casa da mãe, que lhe pede para não os deixar pingar chão afora, quando a vê tirá-los do vaso. Se o branco (a cor dos crisântemos que vêm substituir os gladíolos) é neste filme um tom deslizante, o vermelho goteja, como a tinta vermelha que Marnie salpica sobre o punho claro da camisa, como as cascas artificialmente tingidas das nozes pecan que se espalham acidentalmente pelo chão, ressurgidas nos círculos encarnados que marcam o casaco de um jóquei, ou no vermelho da jaqueta de um outro cavaleiro, como o anúncio de uma sexualidade feminina exacerbada — os lábios vermelhos da mãe na cena em que surge ainda jovem — agora atenuados no rosa pálido da boca e das unhas de Marnie.
O vermelho é cor insuportável para aquela mulher, o rastilho que deflagra os sintomas do seu trauma: o terror que tem àquele tom, a cleptomania, os sonhos inquietos, o medo de trovoadas — sintomas que, como rastros, Mark Rutland segue para chegar ao segredo daquela mulher, mistério que ela própria desconhece. Como parte do seu plano, altamente questionável, para salvar Marnie, considera essencial fazê-la reviver o momento do trauma, estabelecendo assim, ou tornando visível, a coincidência entre um efeito e a sua causa. Este gesto tem alguns ecos no filme. Em Marnie muitas coisas surgem como sinais de outras coisas, como se uma permitisse chegar a outra através de um fio que as liga: a protagonista, por exemplo, tenta descobrir qual o acesso aos cofres que quer roubar através da observação daqueles que constantemente se aproximam deles — o fio de acesso será a combinação para abrir o cofre; Mark desconfia da história de Marnie por causa da forma como ela pronuncia uma palavra e é o rádio, sibila moderna, que oferece uma pista mais consistente, fio mais sólido; o pai de Mark reconhece que tipo de pessoa tem à frente pelo cheiro, diz-se. Mas, o filme é também feito de momentos em que a possibilidade de uma coisa ser reconhecida através de outra surge ou ameaça ser cancelada.
Pensemos na cena em que Marnie esvazia o cofre da Rutland & Co. e se prepara para sair do edifício quando vê a sua fuga posta em causa pela chegada inesperada da mulher que limpa o edifício. Tentando sair sem fazer barulho, coloca os sapatos de tacão nos bolsos do casaco. Expectantes ou ansiosos, vemo-la avançar descalça pelo corredor, esperando ou receando que a qualquer momento o sapato mal equilibrado caia no chão e a denuncie. Quando isto acontece, não há, no entanto, nenhuma reacção da senhora da limpeza. A queda do sapato provoca um baque, mas nenhum efeito decorre do som em si, como se um fio (a audição da senhora, aqui) tivesse sido cortado.
Também a capacidade de Marnie identificar a causa dos seus comportamentos, pelo menos de acordo com a lógica sintomatológica de Mark, é muito menor do que a sua habilidade para descobrir combinações. São vários os momentos em que se sugerem problemas de reconhecimento, como na cena ambientada nas corridas de cavalos, quando um homem aborda Marnie por acreditar tê-la reconhecido, sem conseguir, no entanto, obter da parte dela uma confirmação de identidade; ou quando Mark fala a certa altura de um flor que não é uma flor, mas um conjunto de insectos que imitam a sua forma para atrair as presas: a imitação da forma é fascinante não por causa da sua utilidade, mas apesar dela.
Se Hitchcock será sobretudo conhecido pelo rigoroso controlo sobre a feitura dos seus filmes, espécie de materialização perfeita da vontade do seu criador, o mais interessante em Marnie é a possibilidade de o filme ser uma ameaça à linearidade desse método. O final do filme, servindo as mentes causais de Mark e Alfred, parece não só deixar algumas coisas por explicar (e isto mesmo que vejamos Marnie apenas como um enigma psicanalítico), mas surge enquanto explicação insatisfatória.
Maior prazer se tira do movimento das cores, cujo carácter aparentemente representacional, fio que levaria a um referente directo, se revela afinal quase anti-realista no seu intuito: o anti-realismo dos fauvistas, que ecoa no grão da imagem, película pontilhista, ou nos momentos em que o plano se tinge de vermelho, por ser vermelho aquilo que Marnie vê, personagem transformada em pintor pós-impressionista. As representações que esta mulher faz do mundo assemelham-se de certa forma às de uma criança, como nos desenhos de cores fortes e formas simples de Henri Matisse. Marnie baseia-se no mesmo tipo de princípio organizador que preside à “harmonia em vermelho” de que o pintor fala a propósito da sua obra La Desserte, em que o centro do quadro é o jogo de cores e formas descritos pelo papel de parede, pela toalha de mesa, jogo ao qual tudo o resto é submetido: objectos, figura humana, a paisagem que se vê pela janela[1]. À semelhança do filme, qualquer história é dispensável ali.
[1] Gombrich, E.H. (2006), The Story of Art, London: Phaidon, p. 443.
As aulas de António Reis na Escola de Cinema giravam em torno de uma lista de filmes que Reis e Margarida Cordeiro tinham como essenciais. Marnie é parte dessa lista.