Em parte da cinefilia* brasileira, há uma espécie de retaliação informal e nem sempre consciente: um desprezo por tudo que é feito em cinema no Brasil (por vezes, tudo mesmo, incluindo crítica, curadoria, jornalismo e investigação). É como se o cinema brasileiro fosse uma colônia de leprosos da qual só escapa Júlio Bressane, entre os vivos, e um ou outro diretor mais sintonizado com esses críticos e cinéfilos. Compartilho com esses cinéfilos a noção de que no cinema brasileiro deste século os melhores filmes foram feitos por veteranos – além de Bressane, Andrea Tonacci, Luiz Rosemberg Filho, Rogério Sganzerla, Helena Solberg, Paulo Cesar Saraceni e Eduardo Coutinho. São diretores formados nos anos 1960 e 70, livres dos modismos de nossa época. Contudo, há muitas obras valiosas feitas por diretores jovens, de até 50 anos, que demonstraram progresso filme a filme, principalmente nos últimos dez anos, e merecem uma consideração maior do que a habitual esnobada desses cinéfilos reticentes.

O oba-oba da aceitação de todo o cinema brasileiro, fenômeno comum à cinefilia deste século, ainda que ultimamente tenha perdido força, provoca seu reverso, igualmente nocivo: a recusa a tudo que transpire Brasil. É mais fácil aderir ou recusar em bloco do que julgar cada filme independentemente, por seus próprios valores e problemas. A metralhadora crítica mata todos os filmes, assim como os superlativos a granel.
Curiosamente, já fui muitas vezes acusado de praticar esse tipo de ataque indiscriminado, o que qualquer checagem de meu trabalho em cobertura de festivais e no circuito comercial negará por completo (são muitos os meus textos sobre filmes brasileiros, basta pesquisar). Como vou frequentemente a festivais e acompanho muitos filmes brasileiros recentes, a cobertura jornalística desses eventos quase sempre resvala numa enormidade de filmes mais fracos, na maior parte medianos, que devem ser duramente criticados a meu ver – às vezes nem tanto, mas qualquer questionamento mais sério leva (embora tenha levado menos) a fragilidades expostas da classe cinematográfica brasileira. Bateram-me, e não foi pouco. Principalmente entre 2013 e 2016, concidentemente, meus quatro primeiros anos de textos regulares para a Folha de S. Paulo. Até a pecha de direitista foi tatuada em mim, porque a esquerda brasileira (ou aqueles que entendem pertencer a ela, mas de esquerda não têm nada) só entende a lógica do pensamento em bloco, com todos rezando pela mesma cartilha. Não gostei de Aquarius (Kleber Mendonça Filho, 2016), logo, sou um crítico de direita. Juro que li tais coisas na época.
Não se é crítico ou cinéfilo para pisar somente em terreno seguro. É bom também entrar no pântano cinematográfico e descobrir momentos, planos, possibilidades de um bom cinema futuro.
E no entanto, é muito simples: gosto de ir à Mostra de Tiradentes (cito esse evento porque me parece ser o alvo de sempre dos cinéfilos que recusam o jovem cinema brasileiro, mas gosto de acompanhar festivais sempre que posso) pelos encontros com amigos de outras regiões do país, pela atualização das conversas sobre cinema e, sobretudo, para saber o que está sendo feito de novo no cinema brasileiro. Em alguns anos, os filmes bons sequer aparecem. Mas não é só isso que importa. Não se é crítico ou cinéfilo para pisar somente em terreno seguro. É bom também entrar no pântano cinematográfico e descobrir momentos, planos, possibilidades de um bom cinema futuro em filmes trôpegos de cineastas inexperientes, mas desejosos de algum debate, de um aprendizado que surge do contato com outras experiências e outras maneiras de ver o mesmo filme. Se a intenção fosse rejeitar em bloco tudo que é feito no Brasil, não iria à bela cidade histórica mineira, principalmente durante o festival, quando as ruas ficam lotadas e qualquer ideia de turismo é seriamente prejudicada. Bastava ver os filmes quando eles chegassem a mim (e em algum momento sempre chegam) e propagar meu julgamento implacável.
Não deveria haver mistério na questão da recepção aos filmes contemporâneos de qualquer país. Em todas as épocas e em todas as cinematografias, o número de filmes destinados a vencer a prova do tempo é pequeno, muito pequeno. Alguns até enganam por um tempo, mas não resistem a revisões atentas (por outro lado, alguns outros só se revelam após revisões). Porque um crítico (ou cinéfilo) iria forçar a barra para encontrar sempre uma obra-prima por festival, uma enormidade de filmes bons por mês, uma lista incansável de títulos nos melhores do ano? E, do outro lado, porque rejeitar em bloco tudo (ou quase) de uma determinada cinematografia?

Pois quem rejeitou tudo que foi feito por diretores jovens nos últimos dez anos deixou de perceber algumas obras que, por algum motivo e com intensidades diversas, imprimiram algum rastro na história recente de nossa filmografia (tomo a liberdade de sublinhar os melhores): Branco Sai Preto Fica e Era uma Vez Brasília (ambos de Adirley Queirós, 2014, 2017), Café com Canela e Ilha (ambos de Glenda Nicácio e Ary Rosa, 2017, 2018), Temporada (André Novais Oliveira, 2018), Inferninho (Guto Parente e Pedro Diógenes, 2018), Clube dos Canibais (Guto Parente, 2019), A Misteriosa Morte de Pérola (Guto Parente e Ticiana Augusto Lima, 2014), Amor, Plástico e Barulho (Renata Pinheiro, 2013), Doce Amianto (Guto Parente e Uirá dos Reis, 2012), Permanência (Leonardo Lacca, 2014), Depois da Chuva (Marília Hugues e Cláudio Marques, 2013), A Casa de Cecília (Clarisse Appelt, 2014), Sol Alegria (Tavinho Teixeira, 2018), A Noite Amarela (Ramon Porto Mota, 2019), Diz a Ela Que Me Viu Chorar (Maíra Buhler, 2019), Sem Seu Sangue (Alice Furtado, 2019), As Boas Maneiras (Juliana Rojas e Marco Dutra, 2017), Animal Cordial (Gabriela Amaral Almeida, 2017), Jovens Infelizes ou O Homem Que Grita Não é o Urso que Dança (Thiago B. Mendonça, 2016), Domingo (Fellipe Barbosa e Clara Linhart, 2018), Pacarrete (Alan Deberton, 2019), Clarisse ou Algo Sobre Nós Dois (Petrus Cariry, 2015), Cabeça de Nego (Déo Cardoso, 2020), Todos os Mortos (Caetano Gotardo e Marco Dutra, 2020), entre alguns outros que por ora esqueço, além de uma enormidade de curtas. Estão ausentes, propositalmente, ótimos longas de diretores de uma outra geração, que já não responde mais pelo cinema jovem brasileiro: Luz nos Trópicos (Paula Gaitan, 2020), Na Carne a na Alma (Alberto Salvá, 2011), Tatuagem (Hilton Lacerda, 2013), Bacurau (Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, 2019) e O Homem que Não Dormia (Edgard Navarro, 2011), por exemplo. Embora seja também perceptível a recusa aos filmes dessa geração intermediária.
Obviamente, críticos e cinéfilos que mantêm uma relação de equilíbrio com o cinema brasileiro poderiam objetar vários títulos elencados acima, ou reclamar a ausência de outros. Natural e salutar que haja discrepância entre julgamentos, ainda mais com relação ao cinema contemporâneo. Necessário dizer também que não há ainda uma obra-prima realizada no Brasil por um diretor jovem (afinal, eu falei em imprimir algum rastro, não em marcar definitivamente a história do cinema). Rejeitar todos esses filmes, contudo, soa a má vontade.
Porque não o cinema brasileiro? A série poderia continuar (mas não vai): porque não o cinema de horror? Porque não os musicais? Porque não os westerns? Porque não documentários, curtas, filmes experimentais, o diabo a quatro?
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* melhor falar em cinefilia do que em crítica, porque esse grupo não é formado unicamente por críticos e também porque alguns cinéfilos hoje são influencers, muito mais do que boa parte dos críticos.