― Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade enorme de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio…Está a ver? (…) a nossa vida… compreende?… a nossa vida apresenta-se então ali como algo… como um acontecimento excessivo…
Herberto Helder, em Os Passos em Volta
Para os que não tenhamos lido Frigyes Karinthy tão precocemente como o fez Oliver Sacks, a apresentação que este nos deixou do escritor e humorista húngaro e, em particular, dessa “primeira descrição autobiográfica de uma viagem ao interior do cérebro”[i] seria suficiente para aguçar a nossa curiosidade, em qualquer idade.
O livro Utazás a koponyám körül [Viagem à Volta do Meu Crânio], publicado em Budapeste em 1937, nunca traduzido para português, mas de cuja edição alemã Karinthy se apressou, reconhecido, a enviar um exemplar ao famoso neurocirurgião sueco Herbert Olivecrona que lhe salvara a vida, recria, com um poder de visualização ímpar, etapas simbólicas de uma viagem de conhecimento, como a denomina Oliver Sacks, em que “tendo havido um maremoto no continente (…), retivera uma boa ideia ― que o que vem a seguir não é alcançar o máximo, mas esperar o mínimo para começar a vida novamente (…), que é o que deve fazer na ilha de Robinson um náufrago resgatado”[ii], segundo as palavras do protagonista nas últimas páginas do livro.
No prefácio, Karinthy começara por dar outras indicações sobre as razões que o tinham motivado, como escritor, a transformar-se no protagonista de um romance, e a decidir-se “narrar uma experiência vivida na primeira pessoa” na sequência de uma aventura tão acidentada. Para além da circunstância de ter sido a forma por si deliberadamente escolhida para responder à acusação que correra num jornal de extrema-direita de estar a usar a sua doença para efeitos publicitários, é de assinalar a formulação de um critério-chave baseado na distinção entre “experiências humanas” e aquelas “meramente individuais” que deveria conjugar-se com o imperativo ético decorrente da consideração de que “é normal querer esquecer as experiências dolorosas e perigosas de que escapámos, mas se o homem esquece, o escritor não pode fazê-lo”. E é ainda de acrescentar que, como convém a um enviado ao paraíso regressado com uma sacola carregada de negativos, não descurara o método: graças ao recurso a uma concentração sempre alerta, que lhe ditava não viver apenas o que lhe cabia em sorte, mas o compelia à tomada de imagens destinadas aos outros, havia que garantir que nenhuma se perdia por falta de revelação.
Admirador confesso de Júlio Verne, forçado a prestar atenção ao que estava a acontecer no seu cérebro, mas ignorando aonde a nova jornada o iria levar, escreve um livro de memórias, considerado pioneiro no género “históricos de casos neurológicos”, em que “o próprio Karinthy é ao mesmo tempo objecto de estudo e investigador do drama cada vez mais complexo para o qual foi subsequentemente arrastado”, desde o momento em que começou a sofrer de alucinações auditivas seguidas de perturbações da visão até que, à beira da cegueira permanente, lhe foi finalmente diagnosticado um tumor cerebral e, ao XXII capítulo do livro, é operado com êxito e consegue ter uma recuperação total.
A nebulosa imagética, cuja origem Karinthy se diz incapaz de saber atribuir à experiência vivida durante a operação ou aos sonhos febris que se lhe seguiram, deriva, no entanto, de um modo de ver muito peculiar, dessa visão da mente que se desloca livremente a partir do tecto do bloco operatório, fazendo aproximações e afastamentos, como se de uma câmara cinematográfica se tratasse.
A nebulosa imagética, cuja origem Karinthy se diz incapaz de saber atribuir à experiência vivida durante a operação ou aos sonhos febris que se lhe seguiram, deriva, no entanto, de um modo de ver muito peculiar, dessa visão da mente que se desloca livremente a partir do tecto do bloco operatório, fazendo aproximações e afastamentos, como se de uma câmara cinematográfica se tratasse, capaz de proporcionar uma abordagem visual da experiência humana narrada por um autor “de uma sensibilidade e talento extraordinários”.
Oliver Sacks refere-se a essa capacidade nos seguintes termos: “Não sei o que chamar a essa visualização intensa, para cuja forma esclarecida contribuiu o seu conhecimento pormenorizado sobre o que estava realmente a acontecer. O próprio Karinthy emprega a expressão ‘alucinação’, e o ponto de vista aéreo, observando de cima o seu próprio corpo, é típico do que se costuma chamar de ‘experiência fora-do-corpo’. (Este tipo de experiências fora-do-corpo são muitas vezes associadas a experiências de quase-morte)”. Qualquer que seja, no entanto, a classificação dessa experiência, compreender o sentido da mesma passa por considerar inteiramente a implicação do sujeito nessa vivência, como Merleau-Ponty aconselha fazer relativamente ao sonho: “Quando sonho que voo ou que caio, todo o sentido desse sonho está contido nesse voo ou nessa queda, se eu não os reduzir à sua aparência física no mundo da vigília, e se os considerar com todas as suas implicações existenciais.”[iii]
Tornou-se um lugar comum evocar a retirada para uma ilha deserta como cenário para avaliar os critérios de escolha do “mínimo essencial” a levar do “continente” em que os humanos há muito deixaram de exercitar a sua capacidade de compreensão dos mitos. Já na literatura, enquanto laboratório interpretativo de sonhos, perante os efeitos tóxicos da mistura de capitalismo e protestantismo vertida no romance Robinson Crusoé de Daniel Defoe e nas incontáveis edições e subsequentes versões dessa aventura, haveria boas razões para fazer emergir uma outra ilha, em que ao protagonista não caberia reproduzir um arquétipo do nosso mundo, mas antes realizar “fins totalmente diferentes e divergentes dos nossos, num mundo fantástico igualmente fora dos gonzos” como, no entender de Gilles Deleuze, fez Michel Tournier em Sexta-feira ou os Limbos do Pacífico, assente na convicção de que “a ilha é o mínimo necessário para o recomeço” se for capaz de constituir-se em protótipo da alma colectiva: “a ilha é o que o mar rodeia e à volta da qual nós viajamos. É um ovo ― um ovo do mar”[iv].
A reelaboração do mito de Robinson Crusoé, levada a cabo por Michel Tournier em Sexta-feira ou os Limbos do Pacífico, confere ao romance o carácter de uma viagem iniciática, relativamente à qual (sabendo da recusa do autor em empregar a palavra “conversão”), para qualificar a transformação profunda do protagonista, as designações de “mudança”, “metamorfose” ou “evolução interior” não devem enfraquecer o carácter espiritual dessa jornada. Há três elementos ― a caverna, a personagem Sexta-feira, o diário de bordo ― que merecem uma referência particular pela sua contribuição para a formação de imagens activas do mito.
Um primeiro renascimento ocorre no interior da caverna (“A caverna não lhe oferece apenas o alicerce imperturbável sobre o qual poderá doravante assentar a sua vida. Ela é um retorno à inocência perdida que cada homem chora secretamente.”), em que a terrível prova da solidão terá conduzido Robinson à necessidade de interrogar-se e, seguindo “a antiga visão da sabedoria humana, a substituir a virtude por virtus [força, coragem]”. No entanto, é com a chegada de Sexta-feira que a viabilidade do homem novo ganha um outro alcance (“Observava-o, apaixonadamente atento aos feitos e aos gestos do companheiro e à sua repercussão em si-mesmo em virtude da perturbadora metamorfose que suscitavam”). A explosão da caverna, com tudo o que isso implica de libertação em relação ao que o amarrava à civilização, mostra como Sexta-feira adquire uma função preponderante como guia que conduzirá Robinson no caminho de uma sabedoria dionisíaca e, finalmente, a poder exclamar : “Ó Sol, liberta-me da gravidade! (…) Dá-me o rosto de Sexta-Feira, desabrochado pelo riso”. E perguntar: “Ó sol, segue a minha metamorfose no sentido da tua chama?”[v]
Muitas análises [a Em Busca da Verdade] deram, com boas razões, o lugar central a Karin (…).O meu enfoque, no entanto, toma um outro partido, elegendo o ponto de vista de Minus, para quem esta experiência representará a mais radical jornada de iniciação.
Se a reescrita a que procedeu Tournier faz de Sexta-feira ou os limbos do Pacífico “um remake de Robinson Crusoé por alguém que leu Freud, Sartre e Lévi-Strauss” ou ainda Nietzsche, o diário de bordo, que acompanha dia a dia as etapas da profunda transformação do herói, desempenha uma função de primeiro plano. Nas palavras do narrador, revela logo no início o propósito deste ao regressar “ao mundo do espírito pelo cumprimento de um ato sagrado: o de escrever. Desde então, abriu quase todos os dias o diário de bordo para anotar, não os acontecimentos pequenos e grandes da sua vida material, a que não dava atenção, mas as meditações, a evolução da sua vida interior, ou ainda as recordações que lhe vinham do passado e as reflexões que as mesmas lhe inspiravam”[vi]. Na reflexão autobiográfica do autor, feita alguns anos depois, encontramos a confirmação da sua crença na força do mito: “[…] o homem só se torna homem, adquire um sexo, um coração e uma imaginação de homem graças ao murmúrio de histórias, ao caleidoscópio de imagens que cercam a criança desde o berço e a acompanham até ao túmulo.”[vii]
O filme de Ingmar Bergman Såsom i en spegel (Em Busca da Verdade, 1961), cujo título foi internacionalmente traduzido pelo equivalente a Como num espelho (de acordo com o original sueco e mantendo, assim, expressa a referência colhida na 1.ª Carta de Paulo aos Coríntios, 13:12 ― “Agora, vemos como num espelho, de maneira confusa; depois veremos face a face”), apura na obra do cineasta o “género” correntemente designado de “drama de câmara”, decorrendo a sua acção inteiramente numa ilha.
O aprofundamento da colaboração do director de fotografia Sven Nykvist permitiu realizar o propósito de eliminar os efeitos da luz artificial, pois, segundo declarações deste, trata-se de “o primeiro filme no qual a luz natural é o nosso primeiro objectivo, isto é, captar as luzes e as imperceptíveis sombras do entardecer dos verões suecos”.
Um tal despojamento e rigor estético eram condições de primeira ordem para que, dispensados também acessórios e floreados ornamentais, toda a concentração recaísse nas quatro personagens do filme e nas relações entre elas. O filme põe diante dos nossos olhos uma família durante vinte e quatro intensas horas: David (Gunnar Björnstrand), o pai; a sua filha Karin (Harriet Andersson); o filho mais novo Minus (Lars Passgård); e Martin (Max von Sydow), o marido de Karin.
Muitas análises deram, com boas razões, o lugar central a Karin, apoiadas, aliás, em declarações de intenções do cineasta no mesmo sentido, dando relevo à circunstância de Karin, ao sair de um hospital psiquiátrico, para uma estadia de férias numa ilha isolada, ter à sua volta o pai e o irmão mais novo bem como o seu marido.
O meu enfoque, no entanto, toma um outro partido, elegendo o ponto de vista de Minus, para quem esta experiência representará a mais radical jornada de iniciação.
Minus tem dezassete anos. Muito embora as suas aspirações criativas anseiem pela confirmação paterna, a sua desajeitada sinceridade de adolescente é penhor imaculado para Karin o eleger como seu confidente exclusivo.
Enquanto ao largo, no barco, David e Martin altercam sobre a doença de Karin, na ilha, onde Karin ajuda Minus nos seus estudos, para ele tudo se torna cada vez mais excessivo, fora da sua medida: como já era o corpo das mulheres e a lonjura a que o pai se colocara em relação a ele, por demasia, é agora o “chamamento” que, em turbilhão, arrasta Karin e que, por muito que Minus lhe assevere que para si “não é real”, ela firma aí a sua espera na vinda de “um Deus [que] desce da montanha e passa pela floresta escura”.
Perante a ameaça de chuva iminente, Karin desaparece. Minus encontrá-la-á, depois, engrenhada no fundo do porão de um barco abandonado, como se aquele pudesse ser um ventre materno capaz de cumprir o desejo de retorno ao “lugar como não existe outro que se possa dizer com tanta segurança que já lá se esteve” e fosse aí que mais se queria ser reencontrado.
A hipótese da vida simbólica de Karin ser alimentada por uma potência germinativa que a fantasia figurativa de Robinson (…) não passa, talvez, de uma nebulosa imagética semelhante à que fervilhava na cabeça de Karinthy (…).
Numa outra peça, como aquela em que contracenara com a irmã na primeira noite na ilha, Minus talvez até pudesse ter escrito “na adolescência, uma vontade crescia em mim: ser alguém com uma arma na mão, ter o amor dos outros”[viii], mas não lhe era dado antecipar o tempo próprio para esse face a face com algo que, abraçando a irmã, lhe fez fugir a realidade debaixo dos pés e trazer um desmoronamento tão parecido com o que Karin pressentia na chegada iminente de um deus-aranha.
A hipótese da vida simbólica de Karin ser alimentada por uma potência germinativa que a fantasia figurativa de Robinson, tacteando à procura de si numa floresta de alegorias, no último apontamento no seu diário de bordo, encontra no mito dos gémeos em gestação na Lua (“Pouco a pouco as linhas embaraçadas que aí se desenham tornam-se precisas. Dois focos ocupam os polos opostos do ovo”), não passa, talvez, de uma nebulosa imagética semelhante à que fervilhava na cabeça de Karinthy, não dispensando, se confinado o espectador de, no seu caderno, tomar nota do seguinte, eventualmente, para outra ocasião:
“O mundo da nossa experiência é sempre constituído por duas partes, uma objectiva e outra subjectiva (…). Aquilo em que pensamos pode ser gigantesco (…), ao passo que o estado interior pode ser a mais fugaz e insignificante actividade mental. Contudo os objectos cósmicos, tanto quanto a experiência os produz, não são mais do que imagens ideais de algo cuja existência não possuímos interiormente (…), enquanto o estado interior constitui a nossa verdadeira experiência em si; a sua realidade e a da nossa experiência são uma coisa só.”
“Ter conhecimentos sobre a vida é uma coisa; ocuparmos efectivamente um lugar nela, interiormente percorridos pelas suas correntes dinâmicas, é outra.” [ix]
[i] Oliver Sacks, «Uma Viagem ao Interior do Cérebro», em Tudo no Seu Lugar (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2019), 48.
[ii] Frigyes Karinthy, Viaggio intorno al mio cranio (Postfazione di Oliver Sacks), 1.a Ed. Digital, [1936] (Milano: BUR / Rizzoli, 2012).
[iii] Maurice Merleau-Ponty, Phénoménologie de la perception, [1945] (Paris: Éditions Gallimard / Tel, 2010), 337.
[iv] Gilles Deleuze, «Causes et raisons des îles désertes», em L’île déserte. Textes et entretiens 1953-1974, ed. David Lapoujade (Paris: Les Éditions de Minuit, 2002), 14–16.
[v] Michel Tournier, Vendredi ou Les limbes du Pacifique, Collection Folio (Paris: Gallimard, 1969), 112, 51, 191, 217.
[vi] Tournier, 44–45.
[vii] Michel Tournier, Le Vent Paraclet (Paris: Gallimard, 1977), 191.
[viii] Herberto Helder, «Poeta Obscuro», em Os Passos em Volta (Lisboa: Editorial Estampa, 1970), 141.
[ix] William James, As Variedades da Experiência Religiosa, [1902] (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2018), 392, 386.