O assunto seria outro. Pretendia falar sobre a cinefilia do streaming, pensando a maneira como o cinéfilo de hoje é guiado pelas ofertas das variadas plataformas, da Netflix ao Mubi, da Amazon ao Filmin, abandonando, por muitas vezes, a vontade de ver algum filme só disponível em torrents ou mídias físicas. O fim da curiosidade cinéfila?
Entretanto, a descoberta do cinema de Sarah Jacobson, e de seu único longa-metragem, Mary Jane’s Not a Virgin Anymore (1996), mudou a ordem das coisas. Talvez o assunto anterior não interessasse mesmo. Talvez volte a ele em outra coluna. Essa descoberta (e como é bom continuar descobrindo coisas nesse mar sem fim que é o cinema!) eu devo ao cineclube Academia das Musas, de Porto Alegre, no sul do Brasil.
Sarah Jacobson, conhecida como “Queen of Underground Cinema”, morreu cedo, com 32 anos, de câncer. Seus dois curtas, Road Movie or What I Learned in a Buick Station Wagon (1991), feito quando ela tinha vinte anos, e I Was a Teenage Serial Killer (1993), mostram uma tentativa de unir a vanguarda americana (Geroge Kuchar foi seu mentor na San Francisco Art Institute) a um tipo de cinema independente muito prolífico a partir dos anos 1980, empenhando-se, cada vez mais, em mostrar grupos de amigos em situações corriqueiras e ritos de passagem, como a entrada numa universidade ou a perda da virgindade.
No primeiro, um curta claramente estudantil de 10 minutos, os professores censuram, logo no início, o trabalho da cineasta, ou melhor, de sua alter-ego, Beth Moran, colocando-o pejorativamente como uma derivação de Brakhage e Michael Snow (alguns dos heróis de Jacobson). É uma das melhores cenas de sua curta cinematografia. Depois, a “garota” (como é identificada nos créditos) parte para Nova York atrás de um rapaz, guitarrista de uma banda de rock.
O cinema independente americano dos anos 1980 e 1990 desafia, como poucos outros, a noção de autoria.
No curta seguinte, I Was a Teenage Serial Killer, vemos uma garota que mata os homens com prazer maior que o obtido nas transas. Jacobson procura se despedir do aspecto mais vanguardista de seu curta universitário fazendo uma obra raivosa, que procura vingar as mulheres por toda a estupidez masculina. Mais forte no conceito que na realização, ainda que fica difícil não simpatizar com sua verve beligerante anti-macho.
Mary Jane’s Not a Virgin Anymore, com esse título que parece o de um disco de indie-rock, é o salto para o estatuto de rainha do underground. O orçamento continua diminuto, as atuações continuam amadorísticas, principalmente as dos atores, mas a propensão para a invenção na montagem e na câmera garantem nosso interesse.
Mary Jane aprende que a perda da virgindade pode não ser um momento agradável, e aprende também que não é um fracasso se masturbar, a reconhecer seus sentimentos e a superar perdas (o amigo que morre, o outro que só quer ser amigo). Ou seja: a virgindade sexual é perdida logo no início do filme, mas ela tem outras virgindades a superar. E conforme as supera, o filme cresce.
Não é fácil trabalhar um material que depende do acúmulo de situações e da familiaridade com os personagens em um orçamento tão pequeno como os que cabiam a Sarah Jacobson. Trabalhando com amigos, montando, fotografando, roteirizando e dirigindo seus filmes, a realizadora conseguiu um feito e tanto dentro de um registro de cinema independente americano que parecia, em seu aspecto formal, estar num porão de Sundance (onde o filme, aliás, foi exibido para uma lotação esgotada).
No começo, pensei que seria uma chatice vê-lo inteiro. Como ainda não estava familiarizado com os personagens, pareceram-me um bando de chatos, homens e mulheres nos vinte e poucos anos e ao redor de um pequeno cinema de repertório, onde parte deles trabalha – embora nunca cheguemos a ver um filme projetado, e raramente vermos de fato um trabalho.
No final, sem que esperasse, estava com um sorriso no rosto. Tive sensação parecida com Fourteen (2019), de Dan Sallitt, outro filme que cresce com o acúmulo de situações e conforme nos acostumamos às personagens. O que devemos fazer com o cinema em geral é ainda mais flagrante com o cinema independente americano: o embate filme a filme que nos protege dos exageros do autorismo. Pois o cinema independente americano dos anos 1980 e 1990 desafia, como poucos outros, a noção de autoria. Num filme se é Deus, no outro se é monstro.
E ainda assim, Sarah Jacobson é uma autora propriamente dita, já que comanda todas as etapas criativas de seus filmes, nos erros e nos acertos. Por causa de sua morte prematura, não foi possível confirmar essa autoria. A força de algumas de suas imagens, contudo, é difícil negar.