Numa definição muito “personalizada” de cinefilia, considero essencial mencionar o conceito de coleccionismo. Pois não existirá cinéfilo, mais ou menos inveterado, que não acumule livros e revistas sobre cinema, filmes armazenados em diversos suportes físicos e/ou digitais, bandas sonoras favoritas, bilhetes das sessões em sala a que compareceu, posters de cinema e demais memorabilia que se poderia adicionar a esta introdução.
Em retrospectiva, apercebo-me que vivo a equação cinefilia/coleccionismo desde tenra idade, e quase inconscientemente. Se “eu sou eu e a minha circunstância”, como formulou Ortega y Gasset, então foi realmente circunstancial ter integrado a dita “geração VHS” e, nessa condição, escolhido a fita magnética do video home system como formato de iniciação ao cinema. O corolário desse contexto foi, ao longo de mais de uma década, o preenchimento de prateleiras com cassetes (não me peçam uma quantificação), directamente adquiridas em loja ou resultantes das gravações de filmes emitidos em canais de televisão.

Para além desse sentimento de posse, as “acessibilidades” inerentes ao VHS desvelaram a prática das inúmeras revisões de um mesmo título, do rewind e do fast forward, do freeze frame e do slow motion. Essa dinâmica – consensual, até a nível académico, como uma das principais contribuições dos formatos domésticos de vídeo para a experiência de ver um filme – proporcionou a minha fruição inicial de uma espécie de teoria do cinema: mesmo sem a sugestão da “literatura técnica” dedicada ao tema, e partindo da imobilidade e do silêncio da imagem suspensa, cedo entrei em contacto com as obsessões estéticas de determinado realizador, do bê-á-bá da linguagem cinematográfica e do próprio desenvolvimento, temporal e tecnológico, da Sétima Arte.
As potencialidades do VHS de gravação, regravação, programação de gravações automáticas, montagem e aproveitamento do espaço disponível numa cassete, ainda possuem o condão de transformar-nos em cinéfilos activos, interventivos e, ademais, criadores de conteúdos.
Foram vários os filmes a que dediquei tal atenção. Do que me recordo, revi e revi em VHS, títulos como Lost Highway (Estrada Perdida, 1997), JFK (1991), The Matrix (Matrix, 1999), Modern Times (Tempos Modernos, 1936) e, de modo particular, 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968). Muitos sabem que considero este o filme da minha vida e, por associação, Stanley Kubrick o meu cineasta de eleição; foi a primeira obra que, aos 14 anos, numa casual visualização na RTP2, me despertou para a noção de algo mais em cinema do que a narrativa de um argumento. Quanto ao VHS de 2001: A Space Odyssey, chegou à minha colecção por intermédio de uma box, dedicada a ficção-científica, com a subjectiva chancela “3 Obras Primas”, e da qual constavam também o primeiro director’s cut de Blade Runner (Blade Runner: Perigo Iminente, 1982) e WarGames (Jogos de Guerra, 1983).
Durante um certo período, essa cópia de 2001: A Space Odyssey “rodava” no meu leitor de VHS à média de uma vez por mês. Era hábito obsessivo, mas nunca exaustivo. A cada revisão surgia sempre a compreensão de um detalhe que antes me escapara, a interpretação redobrada, ou inovada, dos seus temas, e a vontade de esquadrinhar novamente aqueles 150 minutos. E, constato agora, a própria “fisionomia monolítica” do VHS, similar a um dos principais motifs concebidos por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke para o filme, ainda incrementa a afeição que nutro pelo formato.

Mais tarde, quando a tecnologia assim evoluiu, comecei igualmente uma colecção em DVD que, actualmente, ronda a centena de títulos. No entanto, a transição entre os formatos e, sobretudo, as diferenças no que toca à sua organização e manutenção, não suscitou o mesmo “charme” nem o exercício rudimentar de “arquivística” que o VHS motivava – por exemplo, dada a susceptibilidade da fita magnética às condições atmosféricas, um aparelho de desumidificação é acessório muito útil; tal empenho é meio caminho andado para a preservação de um formato analógico por excelência.
As potencialidades do VHS de gravação, regravação, programação de gravações automáticas, montagem e aproveitamento do espaço (leia-se, comprimento de fita “em branco”) disponível numa cassete, ainda possuem o condão de transformar-nos em cinéfilos activos, interventivos e, ademais, criadores de conteúdos a partir das imagens em movimento registadas no formato.
Em paralelo, a disponibilidade física de uma cassete de vídeo para escolher e ver um filme, liberta de imperativos mercantis de exibição ou requisitos tecnológicos, ainda consegue bater aos pontos qualquer oferta oriunda das clouds que determinam as plataformas de streaming. Este mundo digital (frio, opaco e propenso a um conjunto de dilemas que, por si só, daria azo a outro texto como este), por mais que tenha democratizado o acesso à Sétima Arte, permanece toldado por uma qualidade de imagem refém de servidores funcionais, de critérios regionais ou da melhor “largura de banda” possível. O VHS, mesmo quando a fita magnética já exibir os inevitáveis sinais do tempo, será sempre um dos media físicos que menos obstáculos acarretará à cinefilia de cada um.
À semelhança de outros formatos analógicos com recente renascimento popular e comercial (os casos da película de acetato, do disco de vinil ou da “K7”), tenho a profunda convicção que a fisicalidade do VHS nunca soçobrou totalmente e, no futuro, poderá conhecer idêntica reintegração. Assim, a minha colecção de VHS ali permanece e nunca será desfeita, está ao alcance de um impulso cinéfilo do momento e, pelo seu potencial de conservação, garante uma maior resistência face aos suportes digitais que regem a nossa modernidade.
Texto escrito em resposta ao nosso apelo em defesa dos suportes físicos, publicado no dia 19 de Novembro de 2020 e assinado pelos editores do À pala de Walsh.