Life is a movie. Death is a photograph.
Susan Sontag
O Filme
Barry Lyndon (1975) é frequentemente acusado pelos seus detratores de ser um filme frio. Como se a forma como é enquadrado e iluminado estivesse demasiado próxima da pintura do século XVIII e Kubrick se esquecesse que está a fazer um filme. Como se as personagens fossem apenas elementos na composição pictórica da imagem, acorrentadas numa posição fixa dentro do enquadramento. Stanley Kubrick é um dos autores mais dissecados da história do cinema e quem o conhece sabe que tudo nos seus filmes é intencional, incluindo a frieza. De facto, estas personagens estão acorrentadas, tanto à vontade de Kubrick como aos códigos da época. Não podem escapar ao século XVIII e às suas convenções, como Barry Lyndon depressa aprenderá na sua tentativa de escalada social.
Na primeira parte do filme, assistimos às aventuras de Redmond Barry até este conhecer Lady Lyndon. Ao casar com ela, Redmond Barry torna-se Barry Lyndon, e será sob esse nome que o seguiremos na segunda parte do filme, composta pela sua ascensão e queda. Sabemos desde o início desta segunda parte que a sua história vai acabar mal, porque isso é anunciado antecipadamente pelo narrador. Daqui não resulta nenhuma perda de suspense, pelo contrário. Já sabemos o que vai acontecer, mas continuamos agarrados ao ecrã porque agora queremos saber o como e o porquê. No final, Barry Lyndon perde o duelo com Lord Bullingdon, tem de ser amputado porque foi baleado numa perna, e tem de aceitar as condições impostas pelo vencedor. Em troca de receber uma pensão anual, Barry Lyndon tem de voltar para a Irlanda e não voltar a ver Lady Lyndon.

Antes do Fotograma
Imediatamente antes de Kubrick congelar a imagem, temos um plano geral onde vemos a rua e o coche por inteiro, já carregado com as malas de Barry Lyndon. Um criado aguarda junto à porta, e o cocheiro de costas para a câmara, segura as rédeas dos cavalos. Barry Lyndon, de muletas após perder uma perna, aproxima-se lentamente do coche acompanhado pela mãe, enquanto a câmara faz um zoom in. Durante a aproximação, o narrador fala-nos de Barry Lyndon pela última vez: “Totalmente confuso e derrotado, o que pode fazer um homem só e de coração partido? Aceitou a pensão e voltou para a Irlanda com a sua mãe, para completar a sua recuperação. Mais tarde viajou para o continente, onde não temos forma de seguir rigorosamente os pormenores da sua vida por lá, mas parece ter voltado à sua antiga profissão de jogador, sem o mesmo sucesso. Não voltou a ver Lady Lyndon.” Barry Lyndon põe o pé no degrau e o criado pega nas muletas. É então que o plano é congelado.
Primeiro Sentido
Após o zoom in, no momento em que Kubrick congela o plano, o enquadramento está agora muito fechado: o coche está cortado a meio das rodas traseiras, só vemos as patas de trás dos cavalos, o cocheiro está cortado pelos ombros. Kubrick corta tudo o que não é importante e concentra-se nos três protagonistas desta imagem. Barry Lyndon, a mãe e o criado estão agora de costas para a câmara. Os três estão equidistantes e formam uma linha reta, com Barry Lyndon já parcialmente dentro do coche, o criado imediatamente atrás dele a segurar as muletas, e a mãe em último lugar, projetando os braços para a frente, imitando instintivamente o gesto do criado quando este pega nas muletas.

Segundo Sentido
Simbolicamente, penso que este fotograma é uma ilustração da derrota e da perda. Barry Lyndon é neste momento um homem derrotado. Derrotado literalmente porque perdeu o duelo. E derrotado também porque foi forçado a aceitar a pensão e voltar para a Irlanda. Barry Lyndon perdeu o filho, a mulher, a fortuna, a posição social e o respeito dos membros da aristocracia. A entrada no coche é portanto o primeiro passo para um exílio involuntário, imposto por Lord Bullingdon. Durante grande parte do filme, Barry Lyndon consegue os seus objetivos devido à sua destreza física: na luta com o soldado que o provocou, pouco depois de se juntar ao exército britânico, mais tarde em combate, quando salva a vida ao seu superior carregando-o às costas, e ainda em vários duelos de esgrima. Mas agora amputado, está também vencido fisicamente, precisando da ajuda do criado e da mãe. Na sua última aparição no filme, Barry Lyndon é visto de costas para a câmara, como se neste indubitável momento de derrota estivesse demasiado embaraçado para dar a cara.
E para aumentar ainda mais a humilhação da personagem, a imagem em movimento transforma-se em imagem fixa, ficando ainda mais fortemente gravada na memória do espetador. Isto lembrou-me uma passagem de On Photography, onde Susan Sontag diz que “Todas as fotografias são memento mori. Tirar uma foto é participar da mortalidade, vulnerabilidade, mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Precisamente por recortar um momento e congelá-lo, todas as fotografias testemunham o derreter implacável do tempo.” Nesta citação, para além da ideia de morte frequentemente associada à fotografia, destaco a referência à vulnerabilidade. E de facto podemos dizer que Kubrick congelou o momento em que Barry Lyndon está mais vulnerável. Isto remete para outra passagem do livro de Sontag: “Há algo de predatório no ato de tirar uma foto. Fotografar pessoas é violá-las, por vê-las como elas nunca se veem, tendo conhecimentos sobre elas que elas nunca poderão ter; transforma pessoas em objetos que podem ser possuídos simbolicamente.” Barry Lyndon é “fotografado” de costas, num momento em que a sua fragilidade está completamente exposta e quando ele mais gostaria de passar despercebido. A última visão que Kubrick nos dá da sua personagem é, como disse Sontag, de natureza predatória.

O narrador omnisciente já nos tinha avisado, no seu tom repleto de fleuma britânica, que a história de Barry Lyndon ia acabar mal, e de facto este fotograma é o culminar de uma longa aventura com um final trágico. Ao longo de mais de três horas de filme, seguimos um homem que sonhou alto, apostou tudo, esteve muito perto de ganhar, perdeu tudo, e é obrigado a ir embora.
Depois do Fotograma
Não satisfeito com o congelamento de Barry Lyndon no tempo e no espaço, Kubrick irá depois congelar Jack Torrance em The Shining (Shining, 1980), primeiro literalmente na neve, e depois na fotografia de 1921 afixada na parede do hotel. Em A Câmara Clara, Barthes distingue fotografia e cinema “Porque a foto, tirada num fluxo, é empurrada, puxada incessantemente para outras vistas; no cinema, sem dúvida, há sempre referente fotográfico, mas esse referente desliza, não reivindica em favor da sua realidade, não declara a sua antiga existência; não se agarra a mim: não é espectro.” É inevitável reparar na pertinência da palavra “espectro”, não só quando falamos de fotografia em geral, mas sobretudo quando a associamos aos últimos planos de The Shining. Não conhecemos completamente as intenções de Kubrick com este final mas acabamos por concluir que Jack Torrance é um fantasma. E A Câmara Clara, escrita por Roland Barthes a partir da fotografia, é também ela uma história de fantasmas. Mas ao contrário de Jack Torrance, que teve direito a fechar o filme, ficando a pairar na mente dos espetadores até sairem da sala, Barry Lyndon despede-se do ecrã na penúltima cena.
Depois deste vislumbre final e do narrador nos falar sobre ele pela última vez, cabe aos “vencedores” fecharem o filme. Vencedores entre aspas, pois nesta história todos perderam alguma coisa. Na última cena, vemos Lady Lyndon, Lord Bullingdon, o secretário e o reverendo, a tratarem de assuntos financeiros. Lady Lyndon vai assinando mecanicamente os documentos que o filho lhe põe à frente. Mas no momento em que Lady Lyndon recebe das mãos do filho o documento correspondente à pensão de Barry Lyndon, esta tem um momento de hesitação antes de assinar, sem dúvida recordando o período trágico em que esteve casada com ele. Lord Bullingdon percebe a reação da mãe e espera nervosamente durante uns segundos que parecem uma eternidade, para depois lhe dar outro documento a assinar, voltando a situação ao normal.
Após esta cena, sem diálogos mas cheia de significado, surge o epílogo, que nos anuncia que “Foi durante o reinado de Jorge III que estas personagens viveram e lutaram. Boas ou más, bonitas ou feias, ricas ou pobres, agora são todas iguais.” Uma frase que nos relembra a nossa própria mortalidade e que parece adequada, se acreditarmos nos adjetivos frequentemente associados a Kubrick, muitas vezes acusado de ser um realizador frio, cerebral e misantropo. Penso que estaremos mais próximos da verdade se o virmos como um realizador realista. Kubrick percebeu que fazer filmes sobre as fraquezas do ser humano é muito mais interessante do que filmar as suas qualidades.

A obsessão de Kubrick pela natureza humana, e particularmente, pelo lado mais obscuro dessa natureza, continuou nos filmes seguintes e manteve-se até ao fim. No último filme do realizador, Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1999), Tom Cruise interpreta uma espécie de Barry Lyndon moderno. Temos novamente uma personagem masculina perdida e confusa, completamente fora do seu elemento e ultrapassada pelas situações em que se vê envolvida. Tal como Barry Lyndon, que procura obsessivamente fazer parte da aristocracia, a personagem de Tom Cruise recorre a subterfúgios para fazer parte de uma sociedade secreta à qual não tem o direito legítimo de pertencer. E apesar das óbvias diferenças, os dois filmes apresentam temas semelhantes: o poder, o sexo, o dinheiro e a obsessão. No final da última cena, Nicole Kidman teve a honra de pronunciar a última palavra da filmografia de Stanley Kubrick, e adequadamente, é a palavra “Fuck”, como se Kubrick nos reafirmasse pela última vez as suas dúvidas quanto às qualidades do ser humano.
Em Busca do Terceiro Sentido
Em O Terceiro Sentido de Roland Barthes, o autor diz-nos que o terceiro sentido vive para lá da comunicação e do simbólico, onde já não é possível explicá-lo através da linguagem. E para ele, aquilo que não pode ser representado nem descrito é um conceito a que dá o nome de “fílmico”. Barthes vai então propor que o objeto último deste conceito de fílmico, ao mesmo nível que o filme, e com vida própria para lá do filme em movimento, é o fotograma. No caso deste fotograma de Barry Lyndon, não consigo encará-lo como uma imagem isolada, não consigo vê-lo sem me lembrar do filme todo. Mas acabo por concluir que isso não é um problema, pois, de certa forma, este fotograma é o filme todo.
Como também é referido por Barthes, o espetador comum esquece os fotogramas que viu à porta do cinema quando entra na sala, mas faço aqui o percurso inverso. No mesmo texto, Barthes afirma ainda que o fotograma “não é uma amostra, mas uma citação.” E de facto, neste fotograma, revejo todos os erros, todas as artimanhas, todas as crueldades de Barry Lyndon. Revejo também o seu único momento de nobreza, quando disparou para o lado, desperdiçando a oportunidade de ganhar o duelo com Lord Bullingdon. Inevitavelmente, revejo o filme por inteiro porque ele parece estar contido neste fotograma. Vejo a história completa de um homem que tudo quis e tudo perdeu. E gosto de imaginar Kubrick, sentado em frente à mesa de montagem, rodeado de quilómetros de película, a escolher esta imagem congelada para nos despedirmos de Barry Lyndon porque também viu nela o filme todo.

Na primeira cena do filme, assistimos ao duelo em que o pai de Barry Lyndon perde a vida. Redmond Barry aparece pela primeira vez na segunda cena, e é visto pela última vez na penúltima cena. Não teve portanto direito a abrir nem a fechar o filme com o seu nome, porque é apenas um peão nas mãos de Kubrick, nas mãos da aristocracia britânica, e nas mãos das convulsões políticas do século XVIII. Apesar dos seus sonhos de grandeza, Barry Lyndon não conquistou nada. Apesar de ter estado em dois exércitos diferentes, não perdeu nem ganhou a guerra.
Também é significativo que da primeira vez que vemos Redmond Barry, ele está a caminhar com a mãe, porque ainda não teve a oportunidade de enfrentar o mundo. Da última vez que o vemos está novamente a caminhar com a mãe, voltando a precisar dela agora que o seu mundo desabou. Ao voltar a caminhar ao lado da mãe como no início do filme, Barry Lyndon volta a ser Redmond Barry, volta a ser quem era quando o vimos pela primeira vez.
Na cultura ocidental, em que escrevemos e lemos da esquerda para a direita, convencionou-se que numa imagem, um movimento da esquerda para a direita significa partir, e um movimento da direita para a esquerda significa voltar. Depois de rever o filme, apercebi-me também que na primeira aparição de Redmond Barry, ele caminha com a mãe da esquerda para a direita, ou seja, está prestes a partir para uma vida de aventuras. No fotograma em que o vemos pela última vez, novamente acompanhado pela mãe, o movimento é agora da direita para a esquerda, e portanto, para Barry Lyndon, chegou finalmente a hora de voltar.
Rui Luís
Professor de fotografia e estudante do Mestrado em Ciências da Comunicação da NOVA FCSH.
Bibliografia
Barthes, Roland (1970). Le Troisième Sens. Paris: Cahiers de Cinema.
Barthes, Roland (2007). A Câmara Clara. Coimbra: Edições 70.
Sontag, Susan (2004). Sobre fotografia. São Paulo: Editora Companhia das Letras.