Não se nasce cinéfilo. Como não se nasce melómano. Aprende-se a ser. De que forma? Comigo foi com a ajuda de amigos mais velhos iniciados que me incutiram o gosto pelo cinema. Complementarmente, sou do tempo de ver muitos filmes na televisão nos anos 80, sobretudo espanhola, aos sábados à tarde, com os clássicos (dobrados!) westerns, aventuras de capa e espada, musicais e policiais negros. E comecei cedo a gravar filmes em VHS, sempre naquele afã de estar na hora certa para começar a gravar, cortar os intervalos e terminar a gravação no exato final do filme. Era toda uma experiência física de guardar a memória dos objetos fímicos que me interessava. E comecei também cedo a colecionar filmes em vários suportes, como a coleção em VHS (quase integral) do Charlie Chaplin pela Castello Lopes (já lá vamos).
Na minha cidade só havia uma sala de cinema. Mas tive a sorte de ver em sala escura filmes que provocaram em mim um choque estético para a vida, como Bronenosets Potyomkin (O Couraçado Potemkine, 1925, de Sergei Eisenstein), Sunrise (Aurora, 1927, de F. W. Murnau), Apocalypse Now (1980, de Francis Ford Coppola), Eraserhead (No Céu Tudo é Perfeito, 1975, de David Lynch), Touch of Evil (A Sede do Mal, 1958, de Orson Welles) ou Offret (O Sacrifício, 1986, Andrei Tarkovsky). E no período 1988-1995 ia todas as semanas ao cinema. Todas, sem exceção, e via tudo o que aparecia na sala, filmes comerciais desprezíveis ou sessões à meia-noite com filmes independentes marginais e malditos. Era uma compulsão, e era por uma intrínseca necessidade de experienciar epifanias artísticas através das imagens em movimento. O fascínio imagético a brotar em mim. Uma paixão tornada vício (ou ao contrário). Guardava todos os bilhetes de cinema com a indicação da data do visionamento e a minha classificação pessoal do filme acabado de ver (com estrelinhas, claro). E sempre que ia a Lisboa era inevitável uma visita à Cinemateca (a minha pena de nunca ter conhecido pessoalmente João Bénard da Costa).
Queria ver, ver, ver. Nunca estava satisfeito, porque, apesar do cinema ser uma arte recente comparada com outras, a verdade é que havia sempre um sentimento de frustração porque ficava sempre muito mais para conhecer.
Apesar da minha formação em música, nesses anos o cinema falava mais alto e durante anos comprei largas dezenas de livros sobre a sétima arte: desde a história do cinema à técnica, biografias de realizadores e atores, géneros cinematográficos, livros sobre cartazes de cinema, lia tudo, queria saber tudo, desde a teoria da montagem de Eisenstein à teoria da estética do cinema de André Bazin, do cinema de terror série B à Golden Age de Hollwyood, da estética experimental de Stan Brakhage e Maya Deren ao cinema expressionista alemão, do cinema fantástico dos anos 1950 às comédias populares italianas. Queria ver, ver, ver. Nunca estava satisfeito, porque, apesar do cinema ser uma arte recente comparada com outras, a verdade é que havia sempre um sentimento de frustração porque ficava sempre muito mais para saber, conhecer e fruir.
Num tempo pré-internet, recortava os artigos dos críticos do Expresso e do Público, as entrevistas aos realizadores, as estreias da semana, as reportagens dos principais festivais de cinema do mundo. E guardava tudo em dossiês que ainda hoje possuo. Pela proximidade geográfica, durante anos ia à fronteira espanhola de propósito comprar revistas de cinema como a Premiere ou a Fotogramas. Depois passei a comprar regularmente as revistas mais teóricas como a (inevitável) Cahiers du Cinéma ou a Film Comment. Nas minhas viagens familiares de verão pela Europa era sempre prioridade visitar os museus do cinema locais e as livrarias especializadas – como a soberba Ocho Y Medio de Madrid (onde me desgracei a comprar carradas de livros). Mais tarde, no auge da blogosfera, criei um blog de cinema (e não só), chamado O Homem Que Sabia Demasiado, ativo online entre 2007 e 2015, com um total de 4 mil publicações, 1 milhão e meio de visitas e 11 mil comentários. Uma experiência incrível de partilha de conhecimentos sobre cultura em geral e cinema, em particular.
No que concerne à posse consumista cinéfila, diria que durante os primeiros 15 anos deste século XXI, comprei muitas centenas de DVDs. O VHS ficou necessariamente para trás, porque o DVD destronou o formato analógico de forma retumbante e, para qualquer cinéfilo, a rodela digital com os filmes favoritos era uma pepita de ouro insubstituível (já o formato Blu-Ray não conseguiu o mesmo efeito sobre o DVD). E começou uma obsessão quase incontrolável em querer colecionar filmes neste formato, comprados inicialmente na Fnac, depois – paralelamente – em sites internacionais especializados (a Criterion era e é o farol da qualidade editorial). As edições preferidas eram aquelas com discos extra especiais com comentários do realizador, montagens alternativas, pequenos documentários, livros e entrevistas.
E depois havia os packs especializados de realizadores e géneros, com filmografias integrais, edições então caras, mas irresistíveis: Antonioni, Bergman, Dreyer, Ford, Tati, Resnais, Tarkovsky, Wenders, Hitchcock, Fellini, Welles, Godard, Kubrick, Lang, Buñuel, Kurosawa, Polanski, Cassavetes, Ozu, Tarr, cinema Negro, Westerns, Comédias, Ficção Científica, etc, etc. O DVD estava ao rubro e era o objeto sacrossanto da cinefilia. E não faltavam sites especializados, como o DVDMania, um site recheado de novidades, fóruns de discussão, reviews e mercado comercial de compra e venda. Ou o DVDgo.com, espanhol, onde comprei muitos DVDs de importação.
Novas formas de consumo
Por volta de 2008, surgiu um modelo alternativo para consumo cinematográfico em casa, aproveitando o lento estertor dos videoclubes convencionais: os serviços de aluguer Cineteka e Mooxuu, que permitiam alugar o filme em DVD sem sair de casa, sem pagar portes de correio e sem prazos fixos de entrega. Tratava-se de uma nova forma de perspetivar o consumo doméstico de filmes. Com uma boa seleção de filmes divididos em categorias e um serviço rápido e eficiente por correio, bastava pagar uma mensalidade à escolha e pronto. Antes do advento das plataformas de streaming, estas foram tentativas de introduzir um modelo aproximado de videoclube online. Mas este serviço comercial de conteúdos audiovisuais teve vida curta. Esfumou-se num ápice. Porque a concorrência dos canais de cinema por cabo e a pirataria digital continuavam a ganhar protagonismo e, consequentemente, promoveram também a progressiva desmaterialização dos formatos físicos.
Não sei exatamente quando deixei de comprar regularmente DVDs. Talvez há meia-dúzia de anos, e ultimamente só compro quando quero mesmo ter o filme fisicamente ou quando ainda não tenho um título que quero muito ter na coleção. E os últimos que comprei foram duas obras-primas do cinema que muito admiro, a preço de saldo, e que só tinha em gravações manhosas em VHS: 12 Angry Men (12 Homens em Fúria, 1957, de Sidney Lumet) e L’Année Dernière à Marienbad (O Último Ano em Marienbad, 1961, de Alain Resnais). É chocante constatar que, há 10 ou 15 anos, a secção de cinema da Fnac era constituída por todo um vasto corredor, e hoje se resume a pequenas e insignificantes estantes com os títulos essenciais, quase sem novidades apetitosas. Para um verdadeiro cinéfilo amante do cinema de autor e clássico, a oferta comercial de qualidade e de diversidade artística, ainda em formato DVD, transferiu-se para editoras como as nacionais Leopardo Filmes, Midas Filmes ou a Alambique, que têm o seu catálogo disponível online. Durante muitos anos, à semelhança do que fiz com os discos, catalogava toda a minha coleção de filmes com a informação do título, realizador, ano de edição, editora e a minha classificação pessoal (não raro me deparava com títulos repetidos). Hoje em dia esta já não é uma opção, porque tenho centenas de filmes em formato digital e vejo muito cinema em streaming, e não faz sentido catalogá-los segundo o mesmo método.
Acho sinceramente que, desde há uns anos a esta parte, estamos a assistir a uma mudança radical do paradigma de consumidor cultural de conteúdos audiovisuais com efeitos irreversíveis. Neste século os formatos digitais do cinema impuseram-se dramaticamente, e as novas gerações de consumidores já mal valorizam a experiência da sala escura ou a posse do objeto físico da obra de arte (sim, a nostalgia é o sentimento reinante). A viragem final para esta transição de uma nova modalidade de ver e consumir cinema à frente do ecrã, teve, quanto a mim, três causas essenciais:
- A concorrência global das dezenas de canais de cinema por cabo e a pirataria digital;
- A massificação de plataformas online de streaming – Netflix à cabeça e dezenas de outras;
- A pandemia.
Creio que não será necessário explicar as duas primeiras causas elencadas, de tão evidentes que são. Quanto à pandemia, o impacto que provocou na indústria do entretenimento e da cultura em geral, e no cinema, em particular, sabemo-lo, foi devastador. As ondas de choque deste terramoto ainda se fazem sentir, mas o cinema em sala – que já não estava famoso antes da vaga pandémica – sofreu uma avassaladora vassourada e obrigou a uma redefinição das prioridades da indústria cinematográfica e do mercado de consumo audiovisual. A perda de espetadores de sala desde há um ano é épica e sem precedentes – resistem as salas que programam cinema de autor e independente (para um público específico e iniciado). Do lado dos criadores, mesmo realizadores relutantes ao visionamento de cinema por streaming como Martin Scorsese, Woody Allen, David Fincher ou William Friedkin, rendem-se às evidências: a fruição do cinema nunca será mais a mesma com a tecnologia à frente do modelo presencial na sala, pelo que é inevitável a resignação sobre a mudança da relação individual com esta arte e a experiência social que lhe era inerente.
A desmaterialização definitiva do cinema e da música (a literatura em livro resiste) é um facto ao qual já pouco ou nada podemos fazer para reverter o cenário para o anterior modelo pré-digital. Hoje e no futuro, veremos cinema em casa, sozinhos ou acompanhados pelo cão, descarregaremos diretamente no nosso disco rígido do computador a estreia de um filme de 50 GB num minuto (quando a rede 5G se vulgarizar). É verdade que este novo paradigma de consumo cultural coloca questões cruciais fraturantes para a sobrevivência de uma arte com apenas 120 anos de existência. Mas estou plenamente convicto que “adaptação” é uma palavra de ordem nesta nova relação de forças, e o cinema há-de continuar a expressar-se destas e de outras formas e a continuar a cativar novos espetadores. Só que com outros mecanismos e ferramentas de mediação e fruição.
Sobre a minha coleção – um exemplo
É quase impossível escolher uma edição DVD favorita da minha coleção de 800 títulos. Poderia citar a edição especial de Un chien andalou (Um Cão Andaluz, 1928) de Luis Buñuel ou a Trilogia Qatsi de Godfrey Reggio (importada dos EUA). Mas resolvi escolher um DVD especial de um realizador muito “lá de casa”: trata-se de um filme mudo com quase 100 anos que representou o início de uma retumbante carreira de um então jovem (26 anos) realizador chamado Alfred Hitchcock: The Lodger – A Story of the London Fog (1927). Numa deambulação pela Fnac, em 2013, deparei-me com este DVD de importação com banda sonora original do músico Nitin Sawhney. Para além do DVD contendo o filme digitalmente restaurado (com a chancela de qualidade do insuperável British Film Institute), a edição é acompanhada ainda de um pequeno livro (15 páginas) com informação sobre o filme e dois CDs contendo as músicas de Nitin Sawhney.
Na altura vi o filme e fiquei absolutamente deliciado e surpreendido com a obra. O filme mudo The Lodger é, na cronologia da filmografia de Hitchcock, o seu terceiro filme, mas é historicamente considerado o seu primeiro filme realmente importante. É a obra na qual Hitchcock lança as sementes temáticas da sua carreira (a partir do serial killer londrino Jack, O Estripador): crime, suspense, falso culpado, assassínio, mulher fatal e loura, conflito psicológico e moral, mistério, sexo e morte… E no final do período mudo, Hitch soube trabalhar na perfeição o legado visual e estético de filmes expressionistas de Fritz Lang ou Murnau, recorrendo a uma realização estilizada, uma fotografia feita de sombras insinuantes e um ritmo crescente de tensão.
Nada contra os tempos atuais no que diz respeito à revolução no consumo cultural, mas defendo que a relação sentimental e sensorial que estabelecemos com o suporte físico é, significativamente, mais forte e duradoura.
Sem ser uma obra-prima, The Lodger é um superlativo filme de Hitchcock, com uma sólida estrutura dramática e visual e um ritmo narrativo escorreito (este é também o filme no qual Hitchcock fez o seu primeiro cameo). A música original criada por Nitin Sawhney, músico britânico de ascendência indiana com larga experiência musical, inclusive no campo da composição para cinema, está à altura da qualidade do filme: Nitin compôs a banda sonora com uma clara alusão à música de Bernard Herrmann, compositor icónico que trabalhou com Hitchcock em vários filmes. A música de Nitin, mistura de composição orquestral, jazz, eletrónica e pop, estabelece uma relação evocativa e imagética com o filme e o desenrolar da ação, pontuando os momentos dramáticos e os momentos românticos com igual brilhantismo. No extra do DVD o músico explicar como interpretou a relação entre as imagens e a sua música.
Em jeito de epílogo
Em suma, este sublime DVD de um filme mudo de Hitchcock é apenas um clarividente exemplo de como o formato físico tem ainda muita importância para perpetuar a memória individual, presente e futura, de um cinéfilo. A paixão pela arte constrói-se pela nossa relação física com o objeto que comunica e veicula essa arte. Como o livro ou o CD/vinil, também o DVD/Blu-Ray, ou até o velhinho VHS, nos estimulam a imaginação e enriquecem a nossa experiência cultural de múltiplas formas. Hoje o consumo e o acesso aos objetos artísticos são feitos a uma velocidade muito mais rápida e quase imediata, à distância de um clique, com a comunicação digital e tecnológica massificada. Mas essa velocidade acarreta também a volatilidade e efemeridade da experiência.
Assim como o streaming doméstico também nunca irá substituir a experiência social e imersiva de ver um filme num grande ecrã em sala escura. Por isso, nunca me irei desfazer da minha coleção de filmes, de CDs, de vinis, de livros ou das… 1000 cassetes áudio que tenho guardadas num armário da garagem. Nada contra os tempos atuais no que diz respeito à revolução no consumo cultural (que é uma era espetacular), mas defendo que a relação sentimental e sensorial que estabelecemos com o suporte físico e material é, significativamente, mais forte e duradoura do que com um mero ficheiro mp3, mpeg, AVI ou com o sinal de canal de cinema por cabo.
Victor Afonso, cinéfilo, autor do blog O Homem que Sabia Demasiado e o homem por de trás do músico Kubik.
Texto escrito em resposta ao nosso apelo em defesa dos suportes físicos, publicado no dia 19 de Novembro de 2020 e assinado pelos editores do À pala de Walsh.