São famosas as palavras de Jane Austen quando escreveu Emma – “vou criar uma heroína de que ninguém além de mim gostará”. Em Clueless (As Meninas de Beverly Hills, 1995), Amy Heckerling propôs-se fazer um exercício semelhante, adaptando muito livremente o romance de Jane Austen. Cher (Alicia Silverstone) é, também ela, bonita, inteligente, rica. Vive numa mansão de Beverly Hills, com o pai, tem como melhor amiga Dionne (Stacey Dash), outra adolescente filha do privilégio (têm em comum o facto de serem motivo de inveja e deverem os seus nomes a divas do passado entretanto remetidas a infomercials). O liceu que frequentam só poderia existir em Beverly Hills – os miúdos andam de descapotável, as miúdas mostram sinais de recentes rinoplastias, joga-se ténis nas aulas de educação física.
Amy Heckerling volta ao terreno da comédia de adolescentes, anos depois de ter realizado um filme de charneira no género, Fast Times at Ridgemont High (Viver Depressa, 1982), filme-mosaico em que é retratada a vida de um grupo de adolescentes em toda a sua diversidade, sem que seja claramente definido um fio narrativo, antes deambulando pelos terrenos que eles ocupam – em particular, o centro comercial, o ponto nevrálgico da vida adolescente. Trata-se igualmente de um filme que, na sua aparente frivolidade (e aqui nos aproximamos de Clueless), escolhe não fugir ou florear a vida adolescente, mesmo quando se trata de acompanhar Stacy (Jennifer Jason Leigh), muito matter-of-factly, numa viagem solitária para fazer um aborto (o rapaz que a engravidou nem sequer apareceu para lhe dar a boleia que tinha prometido).
O lado mais datado convive de forma salutar com um apelo intemporal, que é justamente aquilo que o filme vai beber à obra de Jane Austen que lhe serve de inspiração (além disso, parece existir uma tendência para, em geral, a comédia envelhecer melhor do que o drama, algo que mereceria uma reflexão mais apurada).
Tal como Fast Times at Ridgemont High, também Clueless abre com música pop em ritmo acelerado, a rasgar os créditos iniciais (em lugar das The Go-Go’s, uma versão reciclada de Kids in America de Kim Wilde). Clueless foge ao modelo típico de comédia de adolescentes e às suas habituais personagens-tipo – as miúdas populares, belas e cruéis, o rapaz atlético por quem todas as raparigas se apaixonam, os geeks, os rebeldes, o palhaço da turma e os miúdos discretos que tentam apenas escapar entre os pingos da chuva. Um modelo que encontramos, desde logo, nos filmes do universo John Hughes, como Some Kind of Wonderful (Alguém Muito Especial, 1987), mas também em comédias mais recentes que optam por explorar as repercussões dos traumas da vida escolar na idade adulta, tais como Never Been Kissed (Nunca Fui Beijada, 1999) ou 13 Going on 30 (De Repente, Já nos 30!, 2004).
Cher é a miúda popular que nos habituámos a odiar noutros filmes. Isto porque o seu lado mais terno acaba por sobrepor-se, ainda que ela funcione numa lógica própria de alguém que não consegue manter uma ligação com a realidade. Mas ver esta peculiar lógica em acção torna-se extremamente divertido. Como afirma o pai de Cher no momento em que ela lhe apresenta as suas boas notas, obtidas depois de negociações e muita persuasão junto dos professores, “Honey, I couldn’t be happier than if they were based on real grades.” Na verdade, esta lógica sui generis de Cher parece sempre servi-la bem, falhando apenas quando, de arma apontada à cabeça, tenta convencer o ladrão do bem maior, digno de especial protecção, que é o seu vestido Alaïa.
Este mundo muito próprio de Cher e dos seus amigos encerra-se, desde logo, no jargão que usam, feito de um sem número de expressões que acabariam por entrar no léxico popular (expressões como “As if!”, “Whatever!”, “Betty” ou “bugging”). Por outro lado, a linguagem que que Cher e Dionne utilizam, e que tanto impressiona Tai (Brittany Murphy), é também feita de vocabulário mais cuidado, mas que elas nem sempre conseguiram absorver de forma correcta, o que acaba por gerar resultados hilariantes [o uso não esporádico da palavra “sporadically”, a ponto de até o filme de Stanley Kubrick, Spartacus (1960), acabar transformado em “Sporadicus”].
E isto não se aplica apenas à linguagem. Fica a sensação de que estas adolescentes, embora vivendo num passado pouco distante em que o excesso de informação não era ainda uma questão do quotidiano, padecem já de uma sobrecarga de dados – há uma consciência de que há nomes a reter, mas são demasiadas as referências culturais para registar, o que leva a um processamento de informação singular. Isso é notório na cena em que Cher corrige a namorada intelectual de Josh (Paul Rudd), quando ela cita Shakespeare:
It’s just like Hamlet said, “To thine own self be true.”
Hamlet didn’t say that.
I think I remember Hamlet accurately.
Well, I remember Mel Gibson accurately, and he didn’t say that. That Polonius guy did.
Ou quando Josh pergunta a Cher se ela gosta de Billie Holiday, ao que ela responde “Oh, I love him!” [não muito diferente do miúdo que em Radio Days (Dias da Rádio, 1987) afirmava que a sua actriz favorita era Dana Andrews]. Mas se é verdade que nos rimos desta impreparação ou desinformação adolescente, também há momentos em que se rasga o fino véu entre esta displicência cultural e o comportamento adulto comummente aceite, como sucede quando Cher leva Christian numa visita guiada à sua mansão, mostrando-lhe uma escultura que ele reconhece como sendo de Claes Oldenburg, um nome que pouco significado terá para o pai de Cher, que apenas colecciona arte porque se trata de um bom investimento (e ninguém apontaria aqui alguma falta de lógica).
Para quem foi adolescente nos anos 90, Clueless é uma pequena cápsula do tempo, algumas das referências datam-no de maneira inequívoca – o CD dos Cranberries, as personagens de Beverly Hills 90210 (Christian é um decalque de Jason Priestley), Beavis and Butt-Head, a cassete de vídeo de workout de Cindy Crawford, a ida ao cinema para ver o último Christian Slater. Mas este lado mais datado convive de forma salutar com um apelo intemporal, que é justamente aquilo que o filme vai beber à obra de Jane Austen que lhe serve de inspiração (além disso, parece existir uma tendência para, em geral, a comédia envelhecer melhor do que o drama, algo que mereceria uma reflexão mais apurada).
Os rapazes, embora possam ser um tema de conversa constante, não passam de adereços. E Cher revela-se especialmente adulta e independente na avaliação que faz dos rapazes da sua idade, invariavelmente desajeitados e perdidos.
A essas referências encerradas na década 90 aliam-se outras alusões provindas do cinema clássico de Hollywood, como a descida da escadaria por Cher ao som do tema de Gigi (1958), uma referência directa que se repete no seu momento de epifania em frente à fonte luminosa e que deixa também a sua marca no próprio guarda-roupa, já que os conjuntos que Cher e Dionne vestem parecem evocar o xadrez usado por Leslie Caron no filme de Vincente Minnelli. E, claro, o telefone preto em grande plano, qual monólito de 2001: A Space Odyssey (2001: Odisseia no Espaço, 1968).
Cher usa o preconceito de loura burra em seu favor, surpreendendo aqueles que se cruzam com ela, pelos seus rasgos pouco ortodoxos, mas eficazes. Um conceito que acabou por fazer escola, especialmente em Legally Blonde (Legalmente Loira, 2001), outro caso de sucesso de bilheteira, abrindo caminho a uma série de filmes, e que assenta justamente na mesma ideia, da Barbie com miolos, eternamente pretty in pink – um modo de agir dentro de uma lógica própria, com resultados inesperados, exercitando a inteligência que já lá estava, mas um pouco adormecida e direccionada para outros interesses. Se Cher, em momentos de crise, vai ao centro comercial, que é um substituto do divã do psicanalista, já Elle Woods (Reese Witherspoon) procura apoio emocional na mesa da manicure. Mas se Cher se mostra perfeitamente integrada no seu meio, sendo mesmo alvo de admiração, já Elle vê-se constantemente mergulhada num ambiente hostil, desde a humilhação inicial infligida pelo namorado, ao desdém dos colegas snobes que conhece em Harvard.
O que terá acontecido desde a época dourada da screwball comedy, um género em que os ricos tinham piada e nós ríamos com eles, que tenha levado ao pudor de sentir empatia por uma personagem que vive num mundo de privilégio?
Clueless ocupa-se do mundo adolescente feminino, não apenas as questões de moda, os ídolos, as inquietações calóricas, os namorados, o sexo (Dionne recusa apelidar-se de virgem, preferindo o termo politicamente correcto de “hymenally-challenged”), mas o que ressalta é, sobretudo, a amizade feminina. Os rapazes, embora possam ser um tema de conversa constante, não passam de adereços. E Cher revela-se especialmente adulta e independente na avaliação que faz dos rapazes da sua idade, invariavelmente desajeitados, perdidos, sem saberem abordar as raparigas, sem saberem vestir-se (ela é, por natureza, anti-grunge). Daí o seu desabafo – “searching for a boy in high school is as useless as searching for meaning in a Pauly Shore movie.” Cher afirma preferir rapazes mais maduros (a tese de Dionne é a de que Cher estará a guardar-se para Luke Perry), por falta de paciência perante a inabilidade dos rapazes da sua idade. Os seus esforços de casamenteira têm resultados medíocres, depois do sucesso inicial na reunião dos dois professores, falhando mesmo consigo própria, incapaz que é de reconhecer os sinais emitidos por Christian, mas lacónica no momento de aceitar o óbvio (“He does dress better than I do. What would I bring to the relationship?”). Cher parece passar ao lado da leveza e inconsequência do amor adolescente, até finalmente encontrar o amor, mesmo ao seu lado.
Amy Heckerling convida-nos a gostar de uma personagem não convencional, mas que vai revelando a sua bondade, em particular na forma terna como cuida do pai (algo que é directamente transposto de Emma). O pai é um durão de bom coração que, sob a carapaça de severidade e apesar dos seus modos embrutecidos, vai deixando transparecer a mesma bondade que reconhecemos em Cher, acolhendo de braços abertos o filho de uma mulher com quem foi casado brevemente cinco anos antes (“You divorce wives, not children.”). Cher mostra uma enorme vontade em praticar boas acções, a começar pela tentativa de ajudar Tai (que ela declara como o seu novo projecto, quase com o entusiasmo de uma criança por um novo animal de estimação, acabando o “projecto” por ter resultados indesejados), e também no seu esforço para ajudar as vítimas do desastre de Pismo Beach, ainda que de forma desajustada, doando um conjunto de bens que dificilmente seriam considerados de primeira necessidade – frascos de caviar, roupas de designer, um par de esquis.
Nesta extravagância encantadora de Cher há algo de enternecedor, não andando longe da doida milionária interpretada por Carole Lombard em My Man Godfrey (Doidos Milionários, 1936), de Gregory LaCava. O que nos leva a uma pergunta – o que terá acontecido desde a época dourada da screwball comedy, um género em que os ricos tinham piada e nós ríamos com eles, que tenha levado ao pudor de sentir empatia por uma personagem que vive num mundo de privilégio? Pudor este que poderá explicar mesmo o acolhimento algo reticente a que, por vezes, é votada a filmografia de Sofia Coppola, habitualmente povoada por personagens abastadas, o que seria, segundo essa ordem de ideias, incompatível com uma visão humanista, sensível, atenta. “With the rich and mighty, always a little patience” – eram as palavras de Macauly Connor em The Philadelphia Story (Casamento Escandaloso, 1940).
O convite de Amy Heckerling é, afinal, o de olhar primorosamente para a pessoa antes de lhe colar uma etiqueta, de recusar pensamentos unívocos – uma mensagem forte nestes tempos de opiniões já cozinhadas para consumo imediato. Um ensejo que existe em Ernst Lubitsch, em Preston Sturges, em Jane Austen. Heckerling não será certamente um Lubitsch ou um Sturges, mas não deixamos, ainda assim, de lhe louvar o arrojo.