FADE IN: Regressemos a meados do século passado. Tenho cerca de 10 anos – talvez um pouco mais, provavelmente um pouco menos. Na última gaveta da escrivaninha falsa da Chippendale, que toda a gente tinha na altura, juntamente com as fotografia de família, estão alguns exemplares da revista Life. Eram essas edições da Life que me prendiam a atenção. Tinham tantas imagens. Por vezes, em raras ocasiões, por exemplo, uma tarde chuvosa e invernal em que estava sozinho em casa com os meus incompreendidos sentimentos de saudade por um passado que nunca fora o meu, embrulhava-me num sudário de linho do passado recente, do qual não tinha qualquer memória nem dele sabia o que quer que fosse, e assim percorria os velhos números da revista. Era como explorar um sótão cheio de teias de aranha que preenche as tuas narinas com o cheiro de madeira empoeirada, ou descer a uma cave húmida e bolorenta.
Fui arrebatado por um número em especial da Life, no qual existiam imagens de um filme de que nunca tinha ouvido falar, mas cujo título me agradara. Children of Paradise [Les enfants du paradis (Os Rapazes da Geral, 1945) de Marcel Carné]. As imagens eram mágicas e ficaram comigo. Elas correspondiam, estranhamente, apenas a cenas decorridas num palco. Recordo vivamente fotografias de Arletty, como estátua de Diana, Deusa da Caça, com arco e flecha na mão, enquanto Jean-Louis Barrault, no seu fato de Pierrot, se encontra adormecido num banco que se encontra lá perto, sonhando com ela. Pierre Brasseur, como Arlequim, está a serená-la, desejando trazê-la à vida. Ocorreu-me agora que esses fotogramas foram provavelmente a razão pela qual adorei a ideia do teatro, mesmo que não do teatro em si. Provavelmente também conhecem esses fotogramas, até aqueles que não estão familiarizados com o filme. Estas imagens são invariavelmente usadas, ainda hoje, sempre que alguém avalia ou escreve sobre ele.
O número com a secção de fotografias do Children of Paradise estava datado de 14 de Maio de 1945. O motivo pelo qual os meus pais o guardaram prende-se com a documentação da rendição alemã. Um número histórico. A imagem da capa é a de um soldado americano em Nuremberga, de pé, em frente a uma escultura ornamentada de uma suástica envolvida por uma grinalda de flores esculpidas. Ele está no estádio de Nuremberga, com mise en scène de Albert Speer e imortalizado, durando mais que o Reich de Mil Anos, num filme de Leni Riefenstahl. O soldado americano está de braço levantado, parodiando a saudação “Heil Hitler”. Recordo-me bem desta imagem.
Foi captada por Robert Capa, cujo nome eu não conhecia nesses anos de infância, mas que foi um famoso foto-jornalista. Descobri, recentemente, que ele teve um caso tórrido com a Ingrid Bergman. É algo que não me teria importado nada à época e provavelmente não importa nada a ninguém nos dias de hoje. Os seus estilos de vida incompatíveis foram, aparentemente, os modelos que inspiraram o casal interpretado por James Stewart e Grace Kelly em Rear Window (Janela Indiscreta, 1954), outro factoide que provavelmente não causa qualquer ressonância em mais ninguém, mas que me interessa.
Havia ainda uma fotografia de página inteira dos prisioneiros das tropas aliadas instantes antes de serem decapitados pelas espadas dos oficiais japoneses. Também me lembro bem disso. É uma clássica fotografia documental de guerra, apesar de nessa altura ser apenas uma fotografia noticiosa que trazia os horrores da guerra para casa, para as nossas salas de estar. Havia também artigos sobre alemães que preferiam suicidar-se a se renderem – com fotografias. Um artigo sobre Dachau – com desenhos a carvão. Fotografias teriam sido demasiado perturbadoras para nós, Life-rs [leitores da Life]. E ainda havia bem mais do que isso. Imagens da morte do Mussolini, acompanhadas, de cima a baixo, com anúncios publicitários para produtos de consumo. O artigo sobre Dachau correspondia ao centro de um tríptico, flanqueado por publicidades com homens em roupa interior, electrodomésticos para mulheres, cremes de barbear, bebidas alcoólicas, e muito mais.
As justaposições parecem-nos, aos olhos de hoje, horrendamente grotescas e insensíveis (ou não será que quero dizer incrivelmente contemporâneas?), sem qualquer intenção de oposição irónica, mesmo que se quisesse ou se tivesse a intenção de ser irónico sobre a guerra e os campos de concentração. A não ser que se pense, claro, nos jornais de hoje que, de forma semelhante, ignoram a justaposição casual entre artigos sobre a pobreza nos países de terceiro mundo e as guerras que flagelam o planeta, arrebanhados nas mesmas páginas onde se publicita a moda feminina e bens de luxo.
Os anúncios triviais e aleatórios, o horror ilimitado contido nos próprios artigos, tudo atirado para o mesmo saco, cada um democraticamente a chamar à atenção, sugeriam que a vida, assim como a Life, é uma grande barafunda, na qual se pode escolher e seleccionar, mas onde as prioridades correspondem à dimensão das imagens. Pós-modernismo antes do tempo – trash-mashing o terrorífico com o frívolo, história e horror abafados por produtos de consumo, o perturbador e o calmante, o alto e o baixo juntos, a partilhar uma mesma cama procrustiana.
Regressando a Children of Paradise. Os fotogramas ofereciam uma promessa que os filmes, eles mesmos, só conseguiam parcialmente concretizar, quando um momento podia durar para sempre, ao contrário do seu companheiro em movimento, cheio de imagens rápidas e fugidias que desapareciam antes que as pudéssemos possuir completamente. Até que o filme pudesse ser visto, eles não só faziam as vezes do filme, eles eram o filme. Talvez se as outras fotografias daquele número em particular da revista que tanto me entretinha nas tardes geladas tivessem provocado em mim uma ressonância tão forte, talvez eu me tivesse interessado por me formar como historiador ou como fotógrafo. Mas foram as imagens de Children of Paradise que me agarraram. E ainda o fazem.
Portanto, como é que estes fotogramas publicitários, usados uma e outra vez, uma ínfima parte do filme fixada em âmbar, acabam por substituir o todo no modo como se pregam ao cérebro, ao ponto de que quando pensas no filme, a primeira coisa que te vem à mente são essas imagens que ali ficaram permanentemente gravadas? Por que razão estas fotografias, uma mão cheia de imagens de um filme que tem mais de 260 000 fotogramas (o filme tem três horas de duração), impressas com uma tinta que secou há mais de 75 anos, numa revista que já não existe há décadas, cujos exemplares são mais raros que dentes de galinhas, ainda se parecem com fiapos preciosos de verdade? FADE OUT.
Cineasta e ensaísta, autor de vários ensaios audiovisuais sobre a memória do cinema
Tradução: Ricardo Vieira Lisboa