As coisas talvez tenham começado assim. A nudez feminina é uma nudez que se esconde. A nudez masculina é uma nudez que se mostra. O que é ocultado e o que é revelado diz aqui respeito à genitália. Tudo o resto fica igualmente exposto, nelas e neles. O fetiche que os homens dirigem ao sexo oposto tem como destino último essa parte do corpo que eles não vêem. Vêem quanto muito a ponta do iceberg. Fantasiam com o resto. Ficam como que enfeitiçados por um pequeno órgão que é mais interno que exterior. Mais mito que facto. E o fetiche decorre sempre de uma vontade de possuir, e num sentido que vai mais além da conotação sexual. Todas as relações amorosas são jogos de poder.
Life Lessons, curta-metragem de Martin Scorsese, que é uma das três New York Stories (Histórias de Nova Iorque, 1989), tem no centro Lionel Dobie (Nick Nolte), o todo-poderoso pintor do expressionismo abstracto, reverenciado pela clique das artes nova-iorquina, que se encontra cativo do desejo pelo corpo da sua jovem assistente Paulette (Rosanna Arquette), uma pulsão que cresce à medida que a data da muito aguardada próxima exposição se aproxima. Aumentando quando Paulette lhe confessa ter passado uns dias com outro homem, não querendo mais ter sexo com Lionel dali para a frente.
Dos muitos atributos físicos de Paulette de que a câmara de Martin Scorsese nos dá conta, quer na frontalidade da luz natural, quer nas rêveries em tons de azul sobre o pálido branco da pele, que coroam esta colaboração única entre o realizador americano e o lendário director de fotografia espanhol, Néstor Almendros (Truffaut, Rohmer, Benton, Malick), o que mais fascínio me causou foi a íris que abre sobre o pé de Paulette onde reparamos numa pulseira que a rapariga usa no tornozelo.
A configuração do apartamento gigantesco de Lionel (tudo nele é de um tamanho desmesurado) reserva para o quarto de Paulette um simbolismo de torre de castelo. Não é só Lionel que está cativo; Paulette encontra-se cativa daquela situação de que quer e não se quer libertar. Lionel deseja ter de volta para si o corpo jovem e belo de Paulette, o interface que leva à interacção entre líbido e pujança criativa, tanto na harmonia como na conflitualidade. Paulette quer o reconhecimento de Lionel sobre as suas reais capacidades enquanto pintora.
A dinâmica deste casal à beira do fim mais do que de um recomeço, está magnificamente bem expressa naquela iris que se faz a imagem completa do pé de Paulette, com pulseira no tornozelo. Da única vez que a vemos (haverá minutos depois um novo grande plano com os mesmos motivos), Lionel dirá à assistente e ex-amante que sentira um súbito desejo de lhe beijar o pé. O beijar do pé deixa implícito a vontade de lhe beijar o sexo. É uma manifestação de desejo em sentido literal e também uma metáfora para o sexo oral. Tomar por inteiro aquela mulher que lhe foge pelos dedos (e da metáfora se faz sinédoque), e que ele transfere através das cores e das formas que atira em sucessivos e vigorosos jactos e pinceladas para a grande tela que está a produzir. Ali mesmo, descido da torre para a ampla sala de trabalho, como se isso pudesse resgatar ou exorcizar a relação dos indícios de ruptura que víramos antes.
É uma iris que concentra um detalhe da imagem, um pé nu preso numa pulseira, um corpo seminu deitado e encerrado numa habitação, acossado pelo olhar lascivo de um homem que tudo vive intensamente. E assim, ambos cativos por razões diferentes, até que ela se liberte de vez da necessidade da validação artística de Lionel, e que este perceba (para provavelmente voltar a esquecer no litígio passional seguinte) as palavras sábias do seu galerista no começo do filme, quando lhe diz que Lionel se comporta sempre da mesma forma antes de uma nova exposição.
Das lições de vida que servem apenas para uso dos outros, e nunca para nós.