Para Cristina
At the moment, I’m in Paris. By the way, I’m not in Paris.
Maria em Angel (O Anjo, 1937)
Angel de Ernst Lubitsch está entre os filmes mais perfeitos. Que não seja corriqueiramente citado como um dos grandes feitos deste realizador é intrigante e irritante – até que nos apercebemos que, pese embora ricamente divertido, ele confunde muitos espectadores por não obedecer de modo estrito às regras do género da comédia. Nem mesmo do género da comédia romântica.
Com efeito, está entre os filmes de Lubitsch mais dramáticos e cheios de suspense, situado entre o excepcional melodrama The Man I Killed (O Homem Que Eu Matei, 1932) e a comédia-enlaçada-com-momentos-sombrios Cluny Brown (O Pecado de Cluny Brown, 1946). Mas o seu suspense é de um tipo especialmente íntimo: puramente focado nas hesitações, equívocos, dúvidas, fintas e realizações que vão a jogo entre os elementos de um triângulo amoroso composto pela mulher Maria Barker (Marlene Dietrich), pelo marido Frederick Barker (Herbert Marshall) e pelo amante Anthony Halton (Melvyn Douglas). Um filme repleto de silêncios, imóvel mudez, pausas grandes sem indevidos sublinhados musicais.
Haverá outro filme antes de Mélo (1986), de Alain Resnais, tão agonizantemente fixado no tempo que uma personagem leva, numa sala de estar qualquer, para descobrir uma fotografia, ver um rosto, reconhecer uma melodia ou ouvir falar de um nome? “A surpresa é o motor central do filme”, escreveu Jacques Aumont em 1968, “tornando-se mais do que nunca o próprio método da narração que, a qualquer modo, sistematicamente evita a conclusão mais inelutavelmente determinada, dentro do sistema escritural de Hollywood, pelas premissas fornecidas” [1]. Resnais é apenas um de vários mestres que parecem ter secretamente pedido de empréstimo elementos de Angel: o tremor nervoso da heroína no hipódromo, visto através dos binóculos por um observador, antecipa Ingrid Bergman e Cary Grant em Notorious (Difamação, 1946), de Alfred Hitchcock; o elaborado movimento de câmara ao longo da fachada do “social club” da alta-sociedade de Paris, mostrando todas as transacções a partir de fora, através de cortinados e janelas, é retomado em Le plaisir (O Prazer, 1952), de Max Ophüls; o assinalar do frio quotidiano numa relação matrimonial, ao mostrar as duas partes desviando atenções para o seu jornal da manhã, foi repescado por Orson Welles para Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941)…
Desejaram estes realizadores conspirar na oclusão geral do filme de Lubitsch, ocultando a fonte de algumas das (suas) melhores ideias cinematográficas? Conhecendo ou não este filme, no final desta história de transmissões, Stanley Kubrick canalizou Angel no seu Eyes Wide Shut (De Olhos Bem Fechados, 1998): outro excelente drama de “recasamento” (ou, antes, de revitalização do casamento), interpretado contra um pano de fundo exótica e fantasticamente artificial e europeizado, de cidades, de salões e aventuras…
Com uma característica precisão e destreza, Angel estabelece o seu tema principal na cena de abertura the envolve uma complexa interacção entre palavras e acções, olhares e gestos. Maria viaja para Paris (da sua casa em Londres) e imediatamente faz o check-in num hotel – sob o nome falso “Mrs. Brown”. O recepcionista pede o seu passaporte – porque muitas relações internacionais estão instáveis e confusas entre as duas Guerras Mundiais, esses pormenores têm de ser verificados e registados. Maria mantém a calma e passa o documento. O recepcionista, agora só, repara numa discrepância no nome. Quando Maria regressa, o recepcionista (que não voltaremos mais a ver ao longo do filme) já tomou uma decisão: ele dirige-se a esta como “Mrs. Brown”, selando assim – sem discussão ou negociação – o seu pacto de cumplicidade. O segredo é mutuamente compreendido e não dito.
Maria é-nos apresentada, nestas primeiras cenas do filme, como alguém capaz de ler os sinais das relações interpessoais e de jogar o jogo da manipulação desses sinais – o que faz dela a perfeita heroína de Lubitsch ou, poderíamos dizer, o alter ego espelhado do próprio realizador. Anthony, por outro lado, é mais lento no acerto. Um americano de visita à Cidade das Luzes, ele “embarca em canoa furada” com o taxista e depois é enganado pela mascarada lúdica de Maria, que ele confunda com a Grã-Duquesa Russa Anna (Laura Hope Crews). Todavia, numa súbita mudança na posição e perspectiva da personagem, que Lubitsch explora melhor que qualquer outro realizador, Anthony “vira a mesa” da verdadeira Duquesa, fazendo-se passar por um inocente em Paris somente para ver as vistas… enquanto aguarda avidamente pelo seu encontro “privado” com Maria nessa noite.
Há muita coisa em Angel que é sombria, misteriosa, implícita – como os padrões de Hollywood ditavam em 1937, mas isso Lubitsch sabe bem como curvar aos seus próprios fins expressivos. O subtexto político e histórico da Rússia/França, envolvendo a desesperada diáspora da pré-revolucionária aristocracia russa, está subterrânea e definitivamente presente na abertura da história, antecipando filmes tão diferentes como Triple agent (Agente Triplo, 2004), de Éric Rohmer, e o documentário de Vladimir Léon Mes chers espions (2020). Quando a narrativa muda para Londres, outra série de conflitos geopolíticos é indexada (por meio dos gracejos de actores experientes Ernest Cossart e Edward Everett Horton).
Mas isto é, claro, primeiramente uma história de amor (e desejo), de relações (e casamento), não de espionagem. Num nível sexual, o salão da Duquesa sugere ser um bordel de luxo (ou mesmo uma cadeia desses estabelecimentos por toda a Europa) e a ligação de Maria a este estabelecimento evoca as aventuras de Catherine Deneuve como Séverine em Belle de jour (A Bela de Dia, 1967), de Luis Buñuel. Seja qual for, a forma como o passado de Maria está relacionado com aquele sítio e os seus negócios envolveu certamente uma luta precária pela sobrevivência: quando Anthony lhe pergunta “Have you ever been at the mercy of loneliness? Have you ever been a stranger in a strange city”, ela responde “Often”. E quando ele indaga mais tarde “What did you do?”, ela queixosamente responde: “I cried”.
Como um filme abordando o “eterno triângulo” de dois homens e uma mulher, Angel é escrupulosamente justo e extra-especial por causa disto: não há um óbvio “elo mais fraco” ou “bode expiatório” neste trio, pelo que a escolha não é fácil para Maria e não há nenhum ponto fácil de identificação para nós. Lubitsch serve-nos um abundante anseio e rivalidade inerente aos homens, mas sem inimizade absoluta (as lutas masculinas e batalhas, como em Hawks ou Ford, clarificam e simplificam estas situações). Ao invés, a amizade entre os dois homens está na ordem do dia, existe mesmo (como se prenuncia na sequência de abertura com Maria e o recepcionista) cumplicidade. É isto que torna a tensão tão agonizante para nós, espectadores do drama que se desdobra: não conseguimos verdadeiramente prever a direcção que ele vai tomar ou como se vai resolver. Existem várias maneiras críveis e mesmo justas do drama terminar.
Por baixo – ou de mãos dadas com – o tratamento dado ao triângulo está outro tema, especialmente partindo da investigação do filme sobre o casamento. Ele foi habilmente identificado por Cristina Álvarez López: “O que acontece ao casal quando a mulher é deixada sozinha em casa enquanto o homem vai trabalhar? Chamando a atenção dos homens, um telegrama importante ou uma ida ao teatro não pode esperar, mas os filmes ficam com as mulheres, acompanhando a sua insatisfação e retratando o seu orgulho ferido”. O mundo masculino do trabalho versus o mundo emocional das mulheres: isto é o território de Gertrud (Gertrudes, 1964) de Carl Dreyer. Comparando o Lubitsch de Angel com o Philippe Garrel de La jalousie (Ciúme, 2013), ela sugere: “Os realizadores, ao invés de julgarem estas personagens centrais, conspiram com os sentimentos impulsivos, irracionais, ilógicos nascidos dentro de si, optando por uma narrativa cheia de elipses e buracos, revelações bruscas, choques inesperados, coisas não mostradas e não ditas” [2]. Sob este ângulo, Angel é verdadeiramente um “filme de mulher”.
É também um trabalho, típico de Lubitsch, em que as relações sociais (incluindo as mais intímas) são “lidas”, decifradas, descodificadas – tanto pelas personagens como por nós. Lubitsch e o argumentista Samson Raphaelson são mestres em etiquetar, fazer circular e “re-semantizar” os elementos (tons, objectos, roupas, palavras) ao longo das voltas e fases da narrativa, que são sempre decantadas por diferentes níveis de conhecimento que cada personagem possui (e pela maneira em que o diálogo anda indirectamente à volta destes diferentes níveis – a fala está sempre codificada aqui). Maria “reclama” a música que lhe foi oferecida pelo músico ambulante no restaurante; a própria alcunha “Angel” é convertida de um termo de carinho para nome de código (evitando o uso de nomes verdadeiros) e, no fim, numa identidade – um conjunto de valores – que tem de ser habitada ou rejeitada (“You’re not Angel”… “You must say goodbye to Angel”). Edgardo Cozarinsky, em «The Gaze of the Outsider», o seu soberbo ensaio sobre Lubitsch, ilumina o motivo metafórico da comida (e esta sendo comida ou não) em Angel: “Os empregados da Senhora Barker estudam os pratos que voltaram da mesa para lerem os humores dos seus patrões: o Senhor comeu bem, a Madama não tocou na vitela e o convidado cortou-a minuciosamente sem sequer a provar. As suas deduções evocam menos os augúrios clássicos, adivinhando o futuro a partir das entranhas de animais clássicos, que as personagens secundárias de um romance tardio de Henry James, como os Assinghams em The Golden Bowl, implacavelmente rejeitados por uma intriga central que os ignora” [3].
Como sempre em Lubitsch, esta intensamente cinemática configuração do drama de quarto depende na relação espacial de quartos adjacentes, em portas abrindo-se e fechando-se, em precisas entradas e saídas do ecrã, em aguçados reenquadramentos pela câmara narradora… e em elipses narrativas súbitas criadas pela tentativa de colocar momentos-chave da acção fora de campo. Isto é, claro, a própria essência do que foi vendido, na altura, como o “Lubitsch Touch”. Mas foi sempre mais do que uma questão de simples e sexual sugestão (ainda que esta seja uma parte importante do seu prazer). Em Angel, as movimentações do soberbamente construído (e com diálogos brilhantes) argumento de Raphaelson casam com as tendências formalistas de Lubitsch de uma forma quase paroxística: quatro momentos privilegiados de elipses fora de campo marcam, muito precisamente, os turnining points cruciais, e resolução final, deste drama triangular. (Devemos perceber aqui o dispositivo de guião do turning point de uma maneira adequadamente formalista: não é só um acontecimento dramático significativo, mas um que, num ápice, re-arranja a configuração das relações entre personagens.)
O primeiro momento aparece aos 20 minutos, quando Maria e Anthony passeiam no parque, no fim da sua primeira (e, ao que parece, única) noite de amor partilhado – uma intimidade que “pode ou não” ter ocorrido, segundo as necessárias mistificações e indirectas que o filme emprega para evitar a censura. Eles sentam-se no banco de jardim, falam e beijam-se [a magnífica direcção de fotografia de Charles Lang lembra aqui o seu trabalho, dois anos antes, em Peter Ibbetson (Sonho Eterno, 1935), de Henry Hathaway] até que, fora de campo, uma velha vendedora de flores acena e Anthony sai desse plano médio. Lubitsch encena um corajosamente longo take de 45 segundos (o que é muito para os padrões da Velha Hollywood): a câmara acompanha, por trás, Anthony à medida que este aborda a vendedora, uma senhora simpática que tem já um ramo de violetas estendido na sua direcção. Ele paga-lhe e não deixa que esta lhe dê o troco (a fala “Merci beaucoup” recordando claramente e invertendo a cena inicial com o taxista). Enquanto a mulher mexe na sua bolsa, Anthony sai do frame que partilham. Os olhos dela seguem tudo o que acontece fora de campo subsequentemente: Anthony chamando a agora desaparecida “Angel” (o nome que deu a Maria) e correndo em vão à sua procura. Durante este gesto prolongando de rastreio ocular, a plangente valsa de Frederick Hollander é retida até que a mulher, também ela, saia do frame. No plano seguinte, uma coda dessa cena, ela decide apanhar as violetas descartadas, sacudi-las e revendê-las, ao longo do caminho do parque, ao próximo par de amantes.
O segundo grande turning point oferece, aos 52 minutos, uma extraordinária reprise do primeiro, mas numa forma ultra-condensada (como nos melhores cartoons, Lubitsch usa sempre a repetição para acelerar as coisas). Anthony e Frederick tornaram-se amigos, desde que se aperceberam que, em tempos, “partilharam” uma mulher em Itália durante a I Guerra Mundial; não têm ideia que partilham agora outra (mas Maria, noutro lado da casa, já inferiu quem é o “Poochie” que o seu marido convidou). Anthony olha para um quadro colocado na parede – no início, fora de campo – que se revela uma velha pintura; depois, a câmara move-se para baixo, para o que sabemos ser uma fotografia de Maria, mas virada de costas para o espectador. Plano médio dos dois homens sentados; enquanto Frederick serve as bebidas, Anthony abandona o frame (como fez no primeiro turning point) para olhar para a fotografia. Depois, uma pausa de 10 segundos, enquanto a câmara permanece em Frederick (como fez com a vendedora de flores); dissolve para a próxima cena. Nenhuma visão da acção de Anthony; nenhuma encenação da consequência; nenhuma exclamação fora de campo. O não dito e o não mostrado dominam a cena. Que fulgurante economia e suspense!
O terceiro maior turning point do filme, aos 75 minutos, não é (provavelmente não podia ser) elidido: sozinho no escritório, Frederick descobre, através do empregado e de um telefonema, que a sua mulher viajou secretamente para Paris num avião fretado para o efeito – uma inferência penosamente confirmada pela sua imediatamente seguinte proposição de que viajará de novo para aí “para fazer compras”. O evento, contudo, recebe uma pungente e elíptica conclusão momentos depois, ligada à representação estilística do primeiros dois turning points: Frederick telefona a Anthony e, enquanto o empregado deste último coloca o telefone em cima da mesa, apercebemo-nos de que Frederick está a ouvir o seu rival a tocar o tema de “Angel” ao piano, a pior confirmação de todas… Mas não há, de novo, qualquer contra-campo com a reacção de Frederick.
Com uma aprazível circularidade, Angel regressa a, e termina em, Paris – no Salão da Grã-Duquesa Russa, nem mais. Qualquer coisa estabelecida na sequência anterior é aqui amplificada: o arranjo do estabelecimento em quartos múltiplos, separados (Lubitsch não se deu ao trabalho de mostrar os outros espaços “comunais”). “Salas de espera”, como se diz. E que espera acontece aqui! Anthony com a Duquesa; Frederick com a Duquesa; e outro ponto para onde a Duquesa é chamada para conferenciar com uma “velha senhora”… Não direi demasiado, pensando naqueles que ainda não viram este filme pela primeira vez, mas o que se constrói e onde se conclui é extraordinário: uma decisão (tomada fora de campo, nenhuma conversa ouvida) e um acto (mostrado da maneira mais simples e clara possível, num plano de 23 segundos, sem sombras expressionistas) que é perfeitamente puro – sem palavras, sem qualquer som até à última reprise da música antes do fade-out derradeiro. E nenhuma expressão facial tão-pouco, no final, nem em plano médio nem em close-up: com suprema eloquência, domínio e tacto, Lubitsch despede-se das suas personagens ao enquadrá-las e filmá-las de costas.
Quando olho para trás hoje, para uma apresentação PowerPoint feita há 7 anos para a minha lição na universidade sobre Angel, vejo que o último slide corresponde à mesma imagem que escolhi espontaneamente aqui para acompanhar este texto. O slide traz no título uma pergunta essencialmente retórica: “Será este o melhor plano final na história do cinema?” Na sua carreira tão rapidamente truncada pela sua morte aos 55 anos (idade que eu tinha há 7 anos), Lubitsch obteve porventura somente um único desfecho mais sublime que este: em The Man I Killed, em que o tocar de um piano e de um violino e a presença de um casal mais velho cimentam a união entre um homem e uma mulher diante de todos os obstáculos quase impossíveis que a trama criou [4]. Aqui, em Angel, o filme da surpresa, nós sabemos que as coisas podem acontecer de qualquer maneira – como apontou Aumont, “tudo é igualmente possível”, tudo pode acontecer. [5]
It’s true, the dream is over. But it doesn’t have to be.
Maria em Angel
Adrian Martin 2014 / 2021
Crítico de cinema e vídeo-ensaísta, autor dos livros Mise en Scène and Film Style: From Classical Hollywood to New Media Art e, traduzido em português e de acesso livre, Último Dia Todos os Dias (e outros escritos sobre cinema e filosofia)
Tradução: Luís Mendonça
[1] Jacques Aumont, «Angel», in Bernard Eisenschitz & Jean Narboni (eds), Ernst Lubitsch (Cahiers du cinéma/Cinémathèque française, 1985), p. 122; reimpresso dos Cahiers du cinéma, no. 198 (Fevereiro 1968), p. 41.
[2] Cristina Álvarez López, «Fantasy Double Features of 2013», MUBI Notebook, 13 de Janeiro 2014, <https://mubi.com/notebook/posts/notebooks-6th-writers-poll-fantasy-double-features-of-2013>.
[3] Edgardo Cozarinsky, «Le regard de l’outsider», in Ernst Lubitsch, p. 77; uma posterior versão retrabalhada deste ensaio aparece como «Lubitsch como outsider» in Cozarinsky, Cinematógrafos (BAFICI, 2010), pp. 25-30.
[4] Sobre este desfecho, vide o ensaio masgitral de William D. Routt sobre Lubitsch, «Innuendo 1.5», LOLA, n.º 1 (2011), <http://www.lolajournal.com/1/innuendo15.html>.
[5] Aumont, «Angel», p. 122.