Jorge Silva Melo, numa entrevista não muito longínqua, afirmava que todos os elementos que constituem a narrativa teatral, dramática e cinematográfica não têm existido numa tradição literária portuguesa. Isto é, afirmava o realizador e encenador que as narrativas portuguesas eram pouco ricas em personagens “rotundas”, que o imaginário cultural português estava mais preenchido por figuras “flat” [“lisas”, “planas”] que se diluíam na prosa. Com uma exceção: os retratos. Em particular os retratos de Columbano Bordalo Pinheiro. Só que estes “estão desinseridos de tudo, são fantasmas, são umas aparições, são retratos em que o Columbano está a dizer adeus aos seus amigos. Estão quase mortos, são sublimes de despedida”. Rio Corgo (2015) insere-se completamente nesta forma singular do retrato enquanto prática atípica das narrativas portuguesas, sendo também um filme de despedida, um retrato de um fantasma, ou de alguém que se encaminha, a passos largos, para a morte. Esse alguém é o senhor Silva.
E quem é este senhor Silva? Diz-nos, a certa altura, que já foi jardineiro, agricultor, barbeiro, trolha, guardasoleiro [pessoa que arranja guarda-sóis], palhaço e mágico, mas a figura que Sérgio da Costa e Maya Kosa nos apresentam é um saltimbanco de trouxa às costas que não está muito longe do vaqueiro do velho oeste, com o seu lenço ao pescoço, o cordão de ouro ao peito, as botas de cano alto todas rendilhadas, o chapéu (que ora é sombrero, ora é cartola), os anéis e o relógio de bolso com a corrente dourada pendendo (só lhe falta o coldre recheado por uma pistola). É uma personagem incomum, e essa estranheza enforma-a na relação com a comunidade transmontana onde pousou as botas por umas semanas. Em Relvas, uma aldeia do concelho de Arganil, chamam-lhe Espanhol (síntese de estrangeiro, de forasteiro, do outro) e embora a dupla de realizadores só demonstre afecto no modo de o olhar, não deixa, no entanto, de sublinhar essa exclusão que é tanto imposta pelos outros, como alimentada pelo próprio (veja-se como se coloca de costas para o televisor quando este exibe um jogo de futebol). Uma forma de reclusão que faz do senhor Silva um eremita prestidigitador arruinado.
Mas regressando à pintura, provém de Paulo Rocha a ideia de que se poderia olhar para o cinema português segundo os mesmos padrões que definem a “Escola Portuguesa” na pintura dos séculos XV e XVI. E do mesmo modo que nessas pinturas as figuras humanas parecem estar sempre em pose, fixas numa imobilidade arquetípica, sobre um fundo negro descaracterizado e com um olhar inacessível, também algum do cinema da escola oliveiriana pode ser visto segundo esse padrão (onde os poucos “discípulos” poderão ser Paulo Rocha, João Botelho, João Mário Grilo, Pedro Costa, entre outros). Pensando de modo mais lato, Rio Corgo integra-se facilmente numa “escola portuguesa”. Ainda assim, antes de especificar as formas como isso se procede, convém explicitar que a dupla de realizadores é suíça: Sérgio é filho de emigrantes portugueses (sendo a aldeia da sua família não muito distante do sítio onde encontraram o senhor Silva) e Maya é filha de emigrantes polacos. A formação de ambos foi feita na HEAD – Escola Superior de Arte e Design de Genebra, um dos mais reputados estabelecimentos de ensino europeu que centra a sua formação em cinema nos objectos que trabalham a fronteira entre a ficção e o documentário (por esta escola têm passado figurais maiores do cinema português, enquanto professores, como Gabriel Abrantes, Pedro Costa e Miguel Gomes, tendo este último sido professor da dupla). É por isso importante firmar e afirmar a “portugalidade” deste seu filme.
Esta incursão de Rio Corgo pelo western traduz, de certo modo, uma recusa dos lugares-comuns de algum cinema português e constitui a resposta à pergunta “como filmar de novo Trás-os-Montes sem cair nas mesmas situações de sempre, como a matança do porco, a velhinha que diz palavrões ou a ode às formas ancestrais?”
Rio Corgo integra-se de facto nos veios do cinema português (enquanto instituição histórica) e apresenta várias das suas faces. Por um lado, há nele a vontade de conservar um modo de vida e uma certa ideia de tradição à beira do desaparecimento (programa de intenções que vai de António Campos a António Reis – os desenhos que Silva grava nas paredes da sua casa remetem para os desenhos naïf de Jaime – passando por Noémia Delgado, Fernando Lopes, Ricardo Costa… e tendo, recentemente, os exemplos de Miguel Moraes Cabral e Paulo Carneiro). Por outro, Rio Corgo surge na prática contemporânea da docu-ficção não muito distante da experiência de Miguel Gomes em Aquele Querido Mês de Agosto (2008), na sua vertente ruralista. Mas a primeira longa-metragem de Da Costa e Kosa coloca-se também proximamente das epopeias líricas de Pedro Costa, no modo como o retrato (columbânico) do senhor Silva promove um enobrecimento trágico daquela figura.
Ainda assim, a figura do cinema português que talvez mais influenciou a dupla tenha sido João César Monteiro. O filme “cita-o” directamente, pelo menos, duas vezes: a primeira é a linha de diálogo em que o senhor Silva afirma com veemência “quero que as más línguas se fodam” referindo-se à famosa reportagem aquando da estreia de Branca de Neve (2000); a segunda também passa por esse filme de 2000, evidente no plano que encerra o filme, uma espécie de delírio paroxístico que leva o senhor Silva pelas montanhas nevadas – e que paradoxalmente foi das primeiras sequências do filme a serem rodadas, o que certamente terá dado um tom funesto a toda a empresa. Essa sequência termina com o seu corpo caído no manto branco. Esse plano final é (afinal) uma citação das famosas fotografias do escritor Robert Walser, encontrado morto no dia de Natal de 1956, depois de ter desaparecido de um hospital psiquiátrico. A citação dessas fotografias configura-se, de forma simbólica, com a própria situação do senhor Silva e da sua instabilidade psicológica, como explicam os realizadores, “Queríamos alguém que tivesse fugido para morrer na natureza. Talvez isso seja brutal, mas é essa a caminhada do filme.” No entanto, essas fotografias já haviam sido utilizadas no referido Branca de Neve – aliás, são das poucas imagens desse filme, infame pelo negro que ocupa a sua quase totalidade. Por acaso ou por intenção, o certo é que Rio Corgo se insere numa rede de afinidades com o cinema português que mais do que programática, é instintiva.
Do mesmo modo que se encontram piscadelas e coerências estéticas entre o filme de Sérgio e Maya e vários títulos do cinema português, também é certo que no filme existe uma presença evidente dos formalismos narrativos e estéticos do western. Não só na figura do senhor Silva, que é um cowboy decadente – como vêm sendo comum nos westerns contemporâneos –, mas também no formato da janela do filme, um larguíssimo scope que os realizadores justificam, provocadoramente, pela amplitude do sombrero. E também pela ideia de um homem sem passado (ou do qual o passado nos é revelado lentamente) que chega a uma aldeia perdida e ocupa o Café Austrália, como se fosse um saloon, e onde um copo de moscatel não é assim tão distinto de um scotch. E podíamos ainda ver, no final nevado, uma referência aos westerns spaghetti gelados como Il grande silenzio (O Grande Silêncio, 1968) de Sergio Corbucci. Esta incursão por uma ideia de género traduz, de certo modo, uma recusa dos lugares-comuns de algum cinema português e constitui a resposta à pergunta “como filmar de novo Trás-os-Montes sem cair nas mesmas situações de sempre, como a matança do porco, a velhinha que diz palavrões ou a ode às formas ancestrais?”. Como escreveu Luís Miguel Oliveira aquando da estreia comercial do filme, “o artifício é natural nele [senhor Silva e] (…) essa é uma tensão permanente no filme, o artifício e o naturalismo a imiscuírem-se, a realidade e a irrealidade a baralharem-se”, e acrescentaria, a luta entre um olhar português (vulgo, um olhar filtrado pelas práticas do cinema nacional) e um olhar estrangeiro (filtrado por universos cinematográficos muito distintos).
A este respeito uma das maiores forças de Rio Corgo é o modo como se constrói de forma fragmentada, em que cada episódio, e quase cada plano, podem facilmente tornar-se independentes. Essa singularidade em potência manifesta a contemporaneidade do olhar da dupla, que procura uma sublimação em cada gesto, em cada vista, em cada olhar. Rio Corgo sucede-se em composições de grande pujança dramática: um monte de batatas, uma mulher dormindo sob um chapéu de palha, um gato comendo um ovo partido, a carteira com as fotos de família, um peixe num balde, o homem morto na neve e muitos mais se poderiam alinhar. Esta desagregação formal do filme a partir de dentro é a mesma da sua personagem, e reflecte o tumulto interior de Silva que a certa altura explica “eu não vivo sozinho, tenho mais gente dentro de mim, umas dez pessoas…”. Há, nesses planos, uma ideologia do olhar que vagueia fora dos trâmites narrativos clássicos e que não anda muito longe de alguns filmes tardios de Jean-Luc Godard ou Andrzej Zuławski: uma força simbólica que se desconstrói através do excesso, uma pureza anti-interpretativa que encontra em certos planos uma estética paroxística rara. Isto porque do mesmo modo que vemos um filme que se encaminha para a morte (como a sua personagem), as próprias imagens parecem já destituídas de uma vida concreta, parecem já apenas signos de gestos, apuramentos formais extremos (à la Straub? À la Costa?) do real que o destituem da sua concretude. Há até momentos em que parece que as personagens e o fundo não são da mesma natureza, parecem compostos digitalmente, como que através de chroma key: literalização de um projeto que constantemente confronta a figura humana fantasmática com um espaço inevitavelmente preso ao mundo. Desse confronto surge Rio Corgo, um louvor ao fim das coisas, contente de as ver partindo.
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Este filme integra a programação dos FILMES PARA A UNIÃO, uma iniciativa das produtoras portuguesas Terratreme Filmes, O Som e a Fúria e Uma Pedra no Sapato, onde o valor do aluguer dos filmes (na plataforma Vimeo on Demand) se traduz num donativo para apoiar a associação União Audiovisual, contribuindo assim para a compra de bens alimentares e de primeira necessidade para ajudar a colmatar as dificuldades que muitos profissionais, técnicos e artistas das áreas da cultura, dos espetáculos e dos eventos estão a enfrentar devido à crise pandémica que vivemos. Saiba mais em: www.filmesparaauniao.wordpress.com