Por que não fiquei eu sempre criança? Por que não morri eu ali, num desses momentos, preso das astúcias dos meus escolares e da vinda como-que-inesperada dos meus mestres? Hoje não posso fazer isto… Hoje tenho só a realidade, com que não posso brincar… Pobre criança exilada na sua virilidade! Por que foi que eu tive de crescer? Hoje, quando relembro isto, vêm-me saudades de mais coisas do que isto tudo. Morreu em mim mais do que o meu passado.
Bernardo Soares in Livro do Desassossego
Lembro-me da minha adolescência com um amargo de boca. Foi uma época afeita à indiscernibilidade, encurralada entre os fantasmas infantis de uma douta ignorância e o peso marmóreo de um crescimento imposto de rompante. Como acontece com a maior parte dos jovens adultos – não seria melhor adoptar o termo velhas crianças (?) – eu tinha pavor a tudo aquilo que me farejasse a crescido. Isto incluía, é certo, um conjunto de processos iniciáticos, uns culturais e outros simplesmente hormonais, mediante os quais um novo ser viria a substituir aquele que daí em diante era forçado a despedir-se para sempre, e jamais volver. Olhando retrospectivamente como que fitando uma fotografia soterrada pelos ponteiros do relógio, nunca, como nessa altura, o conceito de ecdise humana me foi tão familiar: tal como acontece ao insecto que, por razões evolutivas, opera uma substituição do exosqueleto para melhor desempenhar a corrida desenfreada pela sobrevivência, também o pré-pubescente é vítima e perpetrador de uma violência biológica em tudo semelhante. Deixa-se a carcaça do que se foi para devir o que nos destinado está. O que, de todos os modos, equivale à sensação do mesmo corpo saindo de si próprio, impondo a vontade potencial na actualidade indefesa, pilhando os sonhos de pelúcia com o despertador da guerra, da vida e do sexo. Implementa-se, pois, a tirania da res extensa – isto se quisermos ser cartesianos -, e se houve uma era em que vivi nos poros a aflição do dualismo de substâncias foi justamente esta que aqui descrevo.
Lembro-me da minha pré-adolescência com nostalgia açucarada. Foi uma época em que a exigência moral, alicerçada numa meninice de certezas cândidas e por conseguinte infundadas, constantemente era levada pelas ondas da transgressão. Todos os dias eram de questionamento existencial, todos os dias a identidade ia a jogo numa roleta absurda e aleatória, como, aliás, todas são. Sobretudo, o medo imperava. Um temor de me tornar outro como por sortilégio ou trair os preceitos de não-sei-bem-quem: o pai, Deus, eu, os três ou nenhum? E, não obstante, o sentimento de traição era inevitável. Cair no mesmo erro e esperar resultados diferentes – não é essa a definição de estupidez? Mas, a pulsão perversa queria justamente repetir a mesmidade da consequência para reconstituir com deleite, uma e outra vez, a experiência ansiosa de colocar o pé em terra estrangeira. Nunca vivi mais intensamente do que nesses tempos de cordel em que ver o que não devia ser visto era odisseia homérica – o que diz muito da insuficiência da vida madura, pouco viajante, à deriva na pasmaceira repetível das jornadas. Procurar às apalpadelas pelo mundo escondido de sombras nesse momento vertiginoso em que a inocência curiosa se abala com o susto de uma confirmação, apesar de tudo, nova – penso que há algo de extremamente arquetípico nessa vivência da infância. O sacana do cinema também sairia com culpas no cartório. E eu mal sabia.
Volto ao conceito de ecdise aplicado à espécie humana. Estou convencido que só podemos deixar dois cadáveres para trás de nós – e, de ambos, só um em vida. O da criança que fomos e o do adulto envolto em rigor mortis que seremos. Sei que posso ser acusado de simplificação grosseira ao englobar mais de três quartos da longevidade humana num mesmo bloco homogéneo – longe de mim fazê-lo, se bem que é difícil resistir à tentação. Quero apenas sublinhar que a crueza dos primeiros passos não pode ser comparada à existência ruminante de memórias dos grandes, eles que mapeiam o sentido a partir do que outrora já foi estabelecido. Ao fazê-lo facilitam-no, tornam-no funcional. E também eu mastigo memórias, adulto que sou, ao deparar com o fosso que me separa do menino que descobria o cinema na televisão em Julho de 2003. Bem-dita RTP2, naquele Verão de calor sufocante onde não via maneira de ignorar as dores do crescimento.

Descrever o tremendo choque que Sonatine (Sonatina, 1993) de Takeshi Kitano na altura desencadeou em mim é tarefa árdua. Sinto que não houve filme mais marcante no continuum quimérico do meu ser e, no entanto, resgatar o seu primeiro impacto, bem como a sua sucessiva mitigação ao longo dos anos, revela-se quase impossível. Habitualmente, entende-se a memória apenas como um depósito de substratos do passado, mas esquecemos que toda a memória olvida. Só esquecendo é que continuamos a lembrar, porque quem lembra tem sempre um negócio com o que há-de ser, tal e qual um tubo de escape absurdo que vai libertando óleo, justamente porque a máquina continua a avançar. Quer isto igualmente dizer que toda a memória é processada e desnovelada a partir da ficção de quem julgamos ser no presente. Aceder, portanto, à face rosada dos meus 13 anos, à socapa na meia-noite e à revelia dos pais e do irmão, iluminado pela televisão secreta, minúscula aos nossos olhos contemporâneos, mas outrora agigantada pelo medo de ser descoberto e tudo poder acontecer nesse filme bizarro de bolinha vermelha, significa mais do que passivamente contar uma estória à lareira. Sou eu todo lá e ao mesmo tempo ausente de mim.
Turvo pela adrenalina de algo que nem sabia decifrar, o plano final de Sonatine era, digamos assim, o último prego no caixão de uma epifania que eu julgava não ser possível apreender. Ele sucede a espera infinita da rapariga com olhos de amêndoa tristes, o alvejamento estrondoso no cérebro que reduz tudo à surdina ensurdecedora do nada, e o esgar esvaziado de Kitano, interpretando-se a si mesmo e a esconjurar demónios seus (na altura não o sabia e nem era necessário). Esse plano do carro azul frente à ravina que desagua no mar de uma Okinawa ironicamente paradisíaca (que eu também desconhecera até então, mas que haveria de revisitar noutros tantos cineastas anos e anos mais tarde) acordava em mim a pulsão de anulamento de um caixa de óculos que sempre preferiu desenhos animados à coolness do grunge, à rebeldia imberbe do punk rock ou a qualquer outra tribo urbana da moda. Tinha encontrado a minha imagem de beleza angustiante, a única realmente satisfatória, condizente com os caprichos da idade. Era a aparição de um anjo confessor que permitia, na minha solitude, derramar as inquietações de uma criança desavinda com o facto de crescer – tal como o yakuza decidindo pôr termo, de uma vez por todas, à dormência de se encontrar exilado na sua virilidade.
Quem era, no entanto, este japonês que encenava o seu próprio suicídio e filmava a vida como mero adiamento inevitável da morte? Que ousava suspender a narrativa de mafiosos, tiros e explosões para congelar o mundo automático dos adultos numa cerimónia de regresso ao tempo imemorial das crianças: um interstício de felicidade impossível, uma migalha no meio do desespero mudo? Quem era ele que, numa outra idade, dava voz às angústias ainda caladas de um pequeno fedelho do outro lado do mundo? A partir desse momento, nascia a vontade de converter o experimento pessoal em adoração totémica – coisa típica de adolescente pregando pósteres dos ídolos no quarto (embora ignorasse o paralelo com eles, que repudiava). Faltava-me, pois, o objecto reencaminhador do sujeito misterioso que ousara fabricá-lo, faltava-me revê-lo e venerá-lo, e durante dois ou três anos apenas serviu de sustento a memória do arrebatamento daquela noite – e o plano desolado do carro de costas que arrepiava a espinha.

Já no ensino secundário, como forma de resistência ao cadáver da infância que o meu corpo teimava em abandonar, o DVD britânico de Sonatine (lançado em 2002, sim, mas só descoberto por mim em 2005/2006) era o meu muro das lamentações, o abrigo dos desencantos existenciais e, por isso, a experiência estética suprema. Desenterrei-o, reluzente como um tesouro, na FNAC, quando cada visita à secção de DVDs era vivida com o palpitar de um doente cardíaco frente a uma confissão de amor eminente. Já habitava, no meio de todo o ressentimento juvenil, o germe cinéfilo. Muitos diriam (quem senão eu agora?) que desperdicei aqueles que podiam ter sido os meus anos dourados, enclausurado, repetindo metodicamente certas cenas de Sonatine – e o seu maníaco plano do carro – para de certa maneira ter um gostinho da morte, sem me ferir e causando desgostos alheios aos que me queriam bem. Quantas pessoas eu não conheci, quantas eu não amei e magoei, quantas eu não transformei e não me transformaram em virtude dessa monomania insana, espécie de deslocamento de energia vital em síndrome de Stendhal da puberdade? Preservar a criança em vias de extinção era paradoxalmente empurrar a adolescência com a barriga para o abismo do esquecimento. Se me arrependo? Ainda hoje não sei responder.
Mas era, outra vez, o plano final que me validava a renuncia soberana de um mundo postiço, externo ao do cinema, revestido tanto de moribundos machos acnosos, porém pretensiosos de voz estridente, como de raparigas incompreensíveis, desprovidas de gosto estético, mas capazes de acicatar os maiores pesadelos. A reiterada revisão caseira, consequência do formato digital que agora manuseava, anuía o refinamento dos conceitos. Nas minhas notas de então, consta a expressão “metafísica das nuvens cinzentas” que, sem dúvida, tinha inspiração directa no obsessivo e supra-citado plano do epílogo.
Lembro-me das lágrimas furtivas que enchiam lentamente as pálpebras quando um cúmulo-nimbo similar surgia no céu carregado, no percurso de casa para a escola e da escola para casa. Uma nuvem chantageadora de chuva não era mau augúrio mas convite para uma contemplação afectada. Havia, agora que reflicto, qualquer coisa de místico na indexicalidade daquela decisiva paisagem, ou seja, fascinava-me a possibilidade (e o milagre) de ela ser um referente concreto, capaz de se manifestar e se replicar no (meu) real. Por metafísica, todavia, nunca equacionei sequer a ideia de um além vida: estes pedaços de céu sorumbático não admitiam nem Deus, nem o Diabo. Era o termo que na altura julgava mais apropriado, por oposição à física que constituía um tremendo fardo, desafio e cansaço. Se todas aquelas brincadeiras infantis na praia de Sonatine apontavam para as férias do yakuza exausto de matar e ter medo da morte, o corpo sem vida mirando o mar ensurdecedor, prescindido inclusive da promessa de felicidade da rapariga que o espera, era o descanso terminal, se quisermos, as férias das férias. O que para mim intuitivamente transcendia toda a física era, pois, o silêncio das ondas e o vento que era obrigado a escutar. O cinzento, cor de lápide, era o suspiro do sono eterno.
A cópia britânica, se fosse um VHS teria tido a sua fita desgastada por compulsão, não era a mais aprumada reprodução do filme. Continha a imagem comprimida, densos arrastamentos fantasmagóricos e uma coloração de treva: nem mesmo a luminosidade de certos momentos mais radiantes do nitrato original era poupada. E, a despeito da baixa resolução, era o império dos cinzentos dessa versão o que mais me fascinava, sem sombra de dúvidas. O próprio Kitano chegou a afirmar o seguinte sobre os seus primeiros quatro filmes nos quais Sonatine figura como último: “eu não queria cores vivas mas matizes sombrias, tons azuis e acinzentados como a cor monótona do betão”. Nessa monotonia inquietante, eu era impelido a descortinar, pela primeira vez, aquilo que no Japão se conceptualizou (esquivamente como é sempre seu apanágio), de wabi-sabi, podendo o wabi ser descrito, segundo o excelso decifrador da terminologia zen, D. T. Suzuki, como “activa apreciação estética da pobreza” e sabi como uma tranquilidade num contexto de solidão. Como bem apontou Donald Richie no seu Tractate on Japanese Aesthetics, o termo sabi é o tronco principal de uma mesma árvore de palavras cujos ramos são o verbo sabu (desvanecer), o substantivo susabi (desolação), o adjectivo sabishi (solitário) e, enfim, o verbo sabiteru (enferrujar). Todas estas dimensões ilustram o tipo de beleza despercebida, abundante em patina, subjacente à tinta kitanesca, principalmente a que me era dada a ver naquele DVD pré-histórico e que eu julgava poder resgatar autenticamente a minha primeira experiência inviolável de visionamento.

Descobri, três ou quatro anos mais tarde, que havia sido lançada em França uma outra edição de Sonatine por obra e graça do Studio Canal. Escreviam as críticas online que se tratava de uma com melhor definição e sem os problemas das outras versões, mais próximas do tempo em que os leitores de DVD eram uma novidade no mercado e a tecnologia era virgem. O meu terceiro contacto com o filme (que por essa altura na minha vida já se assemelhava mais ao pontificado milenar, obeso e bem estabelecido de João Paulo II do que ao papado recém-chegado e aventuroso de Pedro), foi de ligeiro espanto e grande desilusão.
Onde estava a ferrugem transiente dos cinzentos? O que era feito da desolação cromática e sua respectiva metafísica solitária que tantas vezes me tinha levado ao pranto, debaixo da almofada, sem ninguém saber nesses anos complicados de mocidade? Um diferente tratamento de imagem, descobria eu, era suficiente para abalar a ontologia de todo um filme. Sim, o que se escrevia era verdade: via-se mais. Mas não se via melhor. Tudo era mais claro, reluzente e o esbranquiçado permanente dava a ideia que tinham lavado a (minha) película em lixívia ou que um enorme e bonacheirão feixe de luz tinha trespassado cada fotograma com um optimismo atroz e irreconhecível. Por outro lado, como fica patente no último plano, também o décor, bem como a estação do ano, eram agora mais identificáveis quando toda a gravitas de Sonatine residia na falsificação das evidências. A praia nunca tinha sido uma praia, nem o Verão o Verão. Era o despojamento das coordenadas (não apenas essas, mas também as espaciais e meteorológicas) que subentendia a qualidade etérea de toda a empreitada.
No meio dessa confusão entre fidelidade às intenções originais da obra e a capacidade de reverenciar uma versão e rejeitar completamente a outra, reparava que já não cabia nos meus calções de estudante. Sem ter dado conta, o espanto de puto tinha-se convertido em preciosismo de crítico. Crescer é ver morrer a idolatração que elegemos, não a que herdámos. Valerá mesmo a pena perguntar se foi o filme, pleno na sua qualidade de referente, que encaminhou a minha comoção ou se tudo nesta vida é uma questão de oportunidade e acaso? Abstraindo do plano do carro e de todas as suas reproduções (e traições), a única constante de todo o processo era eu e a criança em mim – e duvido seriamente que a apreciação fosse a mesma se só tropeçasse em Sonatine pela primeira vez agora, com milhares e milhares de filmes nas minhas costas, embalsamados num qualquer canto da minha memória e em fila indiana para serem olvidados. Um aviso à navegação: nada do que vemos é definitivo, mesmo que a experiência da visão seja, em todos os casos, de fechamento radical, tanto perceptivo como de significado. “Viste ou não viste?” Como se ver algo fosse esgotá-lo na acção mesma de o ver. Dizer que se viu um filme, como dizer que se viu um país, é um acto de arrogância, porque ver, no limite, nunca pode ser comprovativo de nada, a não ser da falibilidade e temporalidade inescusável do seu observador.
Dezoito anos volvidos, deparo-me hoje com o Blu-ray japonês editado pela Bandai Visual, o formato analítico, adulto, por excelência – quão idiota seria recomendar antes o DVD britânico como concludente e esperar que alguém mergulhasse, sem mediação, na minha privacidade de outros tempos? Regresso ao plano final – caramba, os cinzentos são afinal ainda mais cabais – para terminar este ofício de reminiscências doce-amargas e poder descansar, varrendo de novo o real com a insensibilidade de quem já morreu uma vez. E aqui estou: eu e o plano. E dou-me conta que nunca o entendi, muito embora chorar com ele – não com as memórias que ele me convoca: quero dizer frente a frente, desamparado na sua imanência – me tenha sido interditado. Afinal, a espontaneidade é algo inversamente proporcional à retenção dos seus vestígios. Mas no shot, sublinho agora com o calculismo de uma mão rugosa, são os poderes estupendamente ambíguos do plano geral que exercem o seu efeito dramático. Sempre se tratou, afinal, de uma questão de gramática cinematográfica – mas quem, no seu perfeito juízo, se pode comover com uma minudência técnica senão um adulto?
Recordo agora a derradeira sequência de Sonatine mais pormenorizadamente com tiques professorais no caso de se terem esquecido: 1) Plano frontal de Kitano apontando uma pistola à cabeça, 2) Plano lateral do tiro a ser desferido, 3) Plano geral do carro frente ao mar, 4) Plano americano da rapariga à espera, 5) Plano aproximado do seu rosto inquieto, 6) Plano do corpo sem vida de Kitano, 7) Retoma do plano (5) da rapariga, e finalmente, 8) Fechamento do filme com o mesmo plano (3).

Por duas vezes recorre-se ao mesmo plano geral, (3) e (8). Na primeira aparição, ele é simultaneamente vírgula enfática na sequência e ponto final quanto ao significado do plano anterior; um resultado lógico (mas ainda assim assombroso) do suicídio do protagonista. (O fim de tudo o que clama sujeito em direcção ao “é o que é” maximamente extrínseco da paisagem). Cortar para a generalidade, sobretudo depois da brusquidão do plano antecedente, pode ser entendido enquanto distanciamento da acção com requintes de malvadez demiúrgica (um god’s view sádico ou simplesmente o humor deadpan na montagem de Kitano), mas eu argumento justamente o contrário. O facto de haver uma remissão de (3) em (8) implica que esta imagem se imiscui na sequencialidade e, numa leitura simbólica, a ilumina retro e proactivamente. Quer dizer, ela interfere na própria maré de olhares dos personagens que, não por acaso, fitam sempre o vazio, tanto na vida (da rapariga), como na morte (de Kitano): a imagem, por contraste, enche os olhos nadizantes deles por via de uma perspectiva sem sujeito. Quando o plano (8) irrompe, já não o faz somente na sua dimensão fatalista, fúnebre e supra-humana, mas opera uma coincidência, uma síntese, numa só imagem, de todos os olhares heterogéneos (o das duas personagens e do espectador), anteriormente absortos. É, digamos assim, a imagem-revelação para que todos os olhares tendem e não tão-somente o resquício de um ponto de vista divino que os nega.
Não estamos, portanto, muito longe daquilo que Kitano já tinha feito na sua película anterior, Ano natsu, ichiban shizukana umi (Um Lugar À Beira-Mar, 1991) quando, fora de campo, fazia desaparecer o surfista surdo-mudo na imensidão do mar, “tornando-o num peixe”. A expressão entre parêntesis é uma paráfrase do próprio cineasta, que sugeriu incluir essa legenda, mesmo não havendo uma fala que lhe corresponda, nas versões mais recentes do filme. Sonatine, que de resto, apresenta um cartaz, à primeira vista hermético, com um vibrante peixe-napoleão azul empalado num arpão, denota a mesma propensão zoomórfica – afinal, será a análoga cor do carro mera coincidência ou também ele devém no peixe que morre à costa com saudades de tornar ao mar, berço das espécies e cemitério decisivo de todas elas? Portanto, equivalerá este desenlace a uma separação definitiva da Natureza ou à mais suprema e mágica das suas uniões?
É por isso que este plano geral, inabitado no limite, – gosto hoje de inclusivamente imaginar que nem o defunto está já sentado ao volante – simultaneamente pode ser um plano de todos e de ninguém. É precisamente a sua generalidade (o facto de anular a psicologia e sublimar o humano no inanimado) que permite tamanha ambiguidade avassaladora. Ela amplifica a quietude sucedida da explosão do drama individual para sublinhar que o mar, o vento e as nuvens perseveram a despeito de tudo. Que, em suma, o cosmos integra o caos. E executando tudo isto, ao mesmo tempo exalta uma derradeira visão discretamente orgiástica, a tender para o uno, uma imagem onde a morte vai confluir na vida, numa ausência que é muito mais do que não-presença.
Agradeço ao Luís Mendonça a captura do primeiro fotograma.