O mundo perfeito de Butch Haynes (Kevin Costner) é descrito por Sally Gerber (Laura Dern), a criminologista que segue na caravana da caça ao homem chefiada por Red Garnett (Clint Eastwood), Ranger do Texas. Nascido em Amarillo, o foragido cresceu no bairro francês de New Orleans, tendo matado um homem aos oito anos, de revólver, a defender a mãe, no bordel onde ela trabalhava. O rapaz escapara ao reformatório, porque era preciso abafar o assunto para proteger o negócio e a vitima não era flor que se cheirasse. Butch chegou tarde à escola, mas recuperou os dois anos de atraso, até que a mãe se suicidou, enforcada na casa de banho do bordel. Com um pai ausente, um pequeno delinquente que se esfumara quando ele tinha seis anos, o rapaz é apanhado a conduzir um carro roubado: aos doze anos, é condenado a quatro anos (sem redução de pena) no reformatório mais duro do Texas. Eastwood escuta a criminologista e o seu esgar não disfarça o seu envolvimento, que a princípio nos parece a vontade de carregar a herança da América, uma culpa que atribui uma importância decisiva do meio social no destino do indivíduo, como vimos na crónica do seu Black Lives Matter , sobre True Crime (Um Crime Real, 1999), e que depois descobrimos ser um remorso, amplificado por ter tomado parte na decisão de institucionalização do adolescente.
Em paralelo à caravana sofisticada dos caçadores, segue o Ford pilotado por Costner [da linhagem do modelo de Gran Torino (2008)], com um navegador de oito anos, Phillip Perry (T.J. Lowther). O outlaw reitera a importância do automóvel no universo de Eastwood, o sucedâneo do cavalo no western, chamando-lhe a máquina do tempo do século XX: “para a frente é o futuro, lá atrás é o passado”; “se a vida avança devagar e queres projectar-te no futuro, carrega no acelerador”. A viagem, o automóvel e as estradas, a ampla paisagem americana sulista, funcionarão como um diálogo com a iconografia do cinema clássico, mas também com o movimento da História, feito de histórias individuais e colectivas: alguém deixa escapar que nos dias seguintes à acção de A Perfect Word (Um Mundo Perfeito, 1993), o presidente Kennedy visitaria Dallas, na pré-campanha das eleições presidenciais de 1964.
O fascínio do rapaz pelo outlaw é acentuado pela sua educação austera e desprovida de diversão. Mas o processo de identificação é recíproco, pois possibilita a Costner um reencontro com uma infância boicotada.
No primeiro encontro de Costner com Phillip, a relação define-se, desde logo, como nivelada e empática, com o foragido a agachar-se para se colocar à mesma altura do olhar do rapaz, numa cena que também serve para desvincular Costner da brutalidade do companheiro de fuga. O rapaz, inicialmente sequestrado pela dupla de criminosos, escolherá participar da viagem com Costner, no ponto de partida de um road movie que é também uma viagem iniciática, numa equivalência com o romance de aprendizagem, ou de formação, o bildungsroman, conceito que Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister de Goethe projectou. O fascínio do rapaz pelo outlaw é acentuado pela sua educação austera e desprovida de diversão, ministrada pela mãe e pela religião, e acentuada pela ausência do pai. Mas o processo de identificação é recíproco, pois possibilita a Costner um reencontro com uma infância boicotada, e uma redefinição de parentalidade, que o torna de forma eficaz uma figura tutelar para a criança.
Esse processo de aprendizagem permite a Eastwood trabalhar em zonas cinzentas do comportamento, a dispensar maniqueísmos: Costner diz ao rapaz que roubar é errado, mas quando não se tem dinheiro e se precisa muito de uma coisa, podemos levá-la emprestada, uma excepção à regra; a educação e a moral compreende vários capítulos e aborda o sexo, quando o rapaz acompanha a sedução de uma empregada de um restaurante por Costner, para depois lhes interromper o acto, que não dispensa a pedagogia na conversa dos dois no carro, num dos inúmeros planos em que Eastwood junta o homem e o rapaz, em detrimento da separação imposta pelo dispositivo do campo/contracampo. Várias vezes durante o visionamento do filme nos lembramos da parelha de The Kid (1921), da relação entre o adulto pouco modelar Chaplin com o miúdo Jackie Coogan, e da forma como a dupla se relacionava em uníssono com a autoridade, troçando dos policias, deslocando para eles o burlesco de Charlot.
Um projecto educacional peculiar, que se sustenta num mundo de fantasia, como quando Costner possibilita a Phillip jogar à doçura ou travessura – uma tradição do dia das bruxas que a religião o impedira de experienciar -, durante um assalto para provir a viagem dos necessários mantimentos; mas é com o correr do tempo da viagem, um vínculo que se assemelha a uma relação pai-filho, bastante pacificada, quando comparada com outros exemplos de famílias com que Eastwood pontua o filme, assente em resoluções por mútuo entendimento, tomadas de posições em conjunto, uma pedagogia sob a protecção da capa do cinema, aproximada à de vários autores-realizadores que escolheram a infância como tema, e que dialoga, a titulo de exemplo, na abordagem de Alain Bergala à obra de Kiarostami, nas relações entre o funcionamento simbólico da lei e a formação como passagem da dependência à autonomia, que já encontramos em Qassem, a criança de Mosafer (O Viajante, 1974). Nesse cruzamento com outras famílias, é manifesta a repugnância de Costner perante a violência e carência de afecto dos pais pelos filhos, que induzirá na parelha com o rapaz uma fragilidade, quando Phillip identifica traços de violência, de um descontrolo maníaco de Butch na confrontação com essas famílias, que afrouxa o estatuto da figura modelar, instigando a desconfiança, o que pesará no desenvolvimento da narrativa.
O filme convoca um conjunto de elementos e de relações com o cinema clássico, desde a fuga da prisão, à progressiva mudança de estatuto do protagonista, de um simples foragido e criminoso, para as tonalidades de um anti-herói. Se dentro do filme, há uma passagem de testemunho entre Butch e a criança, a mitologia de Hollywood convida à tentativa de transmissão de legado de Eastwood (que já o recebera de Ford, Huston…) para Costner. Vemos, então, no protagonista, o inadaptado James Dean, o idealismo de Gary Cooper, o portador de moral própria Henry Fonda, mas também um cruzamento entre a fragilidade de Stewart e o Wayne que percorreu a filmografia de John Ford desde Stagecoach (Cavalgada Heróica,1939), uma fila de solitários e renegados, que afinal se revelavam o coração e a coragem, o melhor da América, como vimos em Sergeant Rutledge (O Soldado Negro, 1960): Butch, mesmo alvejado, a esvair-se em sangue, manterá o porte e a capacidade do humano, desprendido de cobardia. Na grandeza do personagem, que entende mais facilmente a natureza dos outros do que o seu reverso, um desamparado, à procura de um destino, um sonho americano de reencontro com pai, no Alasca, última fronteira, território duro e selvagem, onde o factor humano escasseia, numa utopia que o cinema se encarregará de alimentar e solver num desejo de morte: Costner deitado sobre a relva, uma brisa de Verão e notas que flutuam, um sonho depois da tragédia, um plano ascendente, como um olhar de Deus.
Não haverá muitos defensores de que Costner tenha agarrado a herança de Hollywood, mas entre 1990 e 1993 a tentativa foi valiosa e os filmes ficaram: talvez menos com Dances With Wolves (Danças com Lobos, 1990), western delicodoce aclamado por uma academia sedenta de classicismo, do que dois maravilhosos protagonistas, o de A Perfect Word e o de JFK (1991), puzzle notável de Oliver Stone, onde Costner se eleva como promotor público, na obsessão da caça aos assassinos de Kennedy e na revelação da conspiração contra a nação americana, na defesa do legado dos pais fundadores, que mais uma vez nos lembrou Jimmy Stewart, talvez aqui mais próximo das elegias de Frank Capra. Ainda neste contexto, é curiosa a revelação de Eastwood, de que não planeava interpretar Red Garnett, mas terá sido Costner a insistir, a convencê-lo a desempenhar o xerife; o espectador terá neste caso de agradecer a Costner, o filme não seria certamente o mesmo, é inegável a gravitas convocada pela presença de Eastwood, pelo jogo com a sua persona: se no primeiro diálogo de Red com a criminologista Dern, Eastwood pisca o olho a Dirty Harry – as armas na caça ao homem são um bom nariz e café – o personagem transformar-se-á aos nossos olhos para a vizinhança das tonalidades do polícia aposentado de Blood Work (Dívida de Sangue, 2002), que fora detido por uma vedação e um coração fatigado.
Na estreia de A Perfect Word, houve incompreensões várias, um filme de perseguição, de acção, que estava afinal nas antípodas da aceleração: uma jornada meditativa, tomada de pausas e de cansaço.
Ainda no capítulo das heranças, também de notar como Eastwood boicota uma ideia de velocidade associada ao património do road movie, ao atravessamento da paisagem americana, desde os noir até aos novos westerns, às estradas sem fim de Two-Lane Blacktop (A Estrada Não Tem Fim ,1971), Monte Hellman, e Vanishing Point (Corrida Contra o Destino, 1971), de Richard C. Sarafian; no filme de Sarafian, o locutor que acompanhava Kowalsky declarava que a pergunta não era quando ele seria parado, mas quem seria capaz de o deter: in honor of the last American hero to whom speed means freedom of the soul. Na estreia de A Perfect Word, houve incompreensões várias, um filme de perseguição, de acção, que estava afinal nas antípodas da aceleração: uma jornada meditativa, tomada de pausas e de cansaço.
As paredes do gabinete de Red Garnett expunham, através de fotografias, vários elementos da iconografia da América, do território gerado pela acelerada e problemática expansão para Oeste, um preâmbulo na tentativa reiterada de Eastwood de assumir a identidade e a participação no movimento da História, de não se inibir em se relacionar com toda essa complexidade, os seus dilemas e imperfeições. Essa interacção com a comunidade é também feita de percursos individuais, como o encontro final com Costner, um homem apenas amparado por uma criança, perseguido por uma manada de carros da polícia. Eastwood tentará evitar a morte de Costner, como procura preservar o cinema clássico, as suas memórias e a sua ambiguidade: o xerife armado apenas pelo seu remorso, sairá do cordão policial de encontro à dupla, na procura de concertar as várias posições, um écran com diferentes visões do mundo, a ambição maior da arte, um elástico que responde à condição humana. Será o atirador do FBI, que sem receber qualquer indicação alvejará Costner, à distância e com uma carabina, simbolicamente da mesma forma cobarde que, alguns dias depois, no trágico 22 de Novembro de 1963, Kennedy foi assassinado na Dealey Plaza.
Na última paragem de Butch e Phillip, albergados por uma família de negros de três gerações, a avó dirá a Costner, depois de receber a notícia da perseguição policial, que teve a intuição de que ele é um bom homem. Podemos ver na frase uma tentativa de serenar o outlaw, mas talvez derive mais da cena anterior, em que Butch descobrira uma colecção de discos de country (e outlaw country) e partilhara a música e a dança com a já idosa mulher. O que estabelece a ligação com a próxima crónica, também um encontro de comunidades através da música, mas também uma viagem iniciática, Honkytonk Man (1982), na estrada com Red Stovall e o sobrinho, com Clint e Kyle Eastwood, e talvez encontremos na perspectiva mundana, experiencial, um mundo perfeito, coberto de dilemas e falhas.