Quando questionado sobre a escolha de realizar Ladri di Biciclette (Ladrões de Bicicletas, 1948), Vittorio De Sica respondeu que após ter filmado Sciuscià (1946) tinha disponíveis algumas dezenas de argumentos, todos eles repletos de grandes acontecimentos; contudo, estava interessado numa história menos extraordinária. Intitulo o texto e inauguro-o com esta referência, através das palavras do próprio realizador, uma vez que me parece absolutamente fulcral a sua presença desde o primeiro momento: menos extraordinária. De Sica não manifesta a vontade de mostrar uma história mais simples, mas menos extraordinária. É hasteada esta ideia quase franciscana, e que será transversal a todo o cinema neo-realista, de um profundo despojamento da narrativa, da qual as imagens serão as suas fiéis tradutoras.
Cesare Zavattini, figura suprema dos argumentos neo-realistas italianos e com quem De Sica estabeleceu uma fortíssima aliança ao longo da sua filmografia, sintetiza de forma clara a mudança ocorrida nas histórias: no passado, se se considerasse uma greve como um tema interessante para um filme, encontrar-se-ia um conflito para se desenvolver a narrativa, tornando a greve o seu plano de fundo. Agora, a greve seria o objecto central da história.
O neo-realismo italiano é, no seu estado puro, um produto do seu tempo: um tempo profundamente conturbado e dilacerado pelas monstruosidades de um conflito armado. É uma materialização imagética das angústias colectivas desta era, e os filmes surgem como documentos a tempo real dos acontecimentos: olhemos a Roma, città aperta (Roma, Cidade Aberta, 1945), realizado por Roberto Rossellini ainda em 1945. Este shift na forma de fazer cinema dá-se através de uma relação de necessidade mútua: os autores têm naturalmente necessidade de fazer obras diferentes, de abordarem a arte de forma diferente, mas também o público tem necessidade de ver coisas absolutamente diferentes. Como Mark Cousins refere em The Story of Film, a experiência do cinema era diferente e o espectador enquanto entidade via de forma diferente após o trauma da Segunda Guerra, ainda em absoluta efervescência. Existe uma profunda mudança na forma de ver as imagens, e este conceito é chave para o entendimento deste género cinematográfico e das histórias que por ele foram contadas. Como fazer cinema, como contar histórias depois da percepção do público mudar?
O plot de Ladri di Biciclette, sobejamente conhecido, resume-se em poucas linhas: Antonio Ricci, pai de família desempregado, consegue um trabalho a afixar cartazes nas ruas de Roma. Contudo, para garantir este trabalho, é condição fundamental ter uma bicicleta para se deslocar pela cidade. O casal Ricci deposita os seus lençóis numa casa de penhores para poder comprar a bicicleta mas esta acaba por ser roubada no primeiro dia de trabalho de Antonio, que irá tentar exaustivamente recuperá-la na companhia do seu filho mais velho, Bruno.
O conflito central do filme é travado entre o protagonista e o meio, impalpável e indefinido. Apesar de existir um agente que conseguimos identificar – o ladrão da sua bicicleta – Antonio parece sobretudo debater-se com esta força outra, maior que ele e omnipresente, que através de um sem número de pequenos acontecimentos impede-o de conduzir a sua vida num troço estável. Desta forma, é criado um forte ponto de afeição entre o público e a história: Antonio é-nos sempre apresentado como uma personagem íntegra, pelo que consideramos que o protagonista não é merecedor da sua própria sorte.
Esta definição do carácter correcto de Antonio e consequente empatia por parte do espectador acontece não apenas pelas suas acções, mas também pela forma como Bruno interage com ele. A admiração pela figura paternal é evidenciada numa série de ocasiões: as fardas semelhantes que ambos vestem no primeiro dia de trabalho, parecendo Bruno uma pequena cópia do seu pai; o gesto praticamente mimético de colocarem o almoço nos bolsos das fardas; o olhar de Bruno para Antonio quando este fecha a porta de casa para sair para trabalhar; o olhar demorado de Bruno quando o pai o deixa no seu trabalho e se afasta. Este olhar é constantemente repetido ao longo do filme, nas mais diversas situações. Inclusive quando Antonio defrauda, no seu entender, a sua imagem aos olhos do filho, é Bruno que o salva, na plena inocência dos seus gestos. A sua admiração é reafirmada quando pega na mão do pai e, repetindo este mesmo olhar, caminha ao seu lado nos momentos finais do filme.
Toda a história se desenrola em torno de constantes confrontos de realidade – ou, fazendo uma ligação bastante óbvia e directa à imagem, reality slaps. Uma série de obstáculos e inconvenientes que se colocam incessantemente à frente do desenrolar da vida mundana de Antonio. O filme é formado não por grandes acontecimentos mas por pequenas missões e consequentes falhas: arranjar um emprego, arranjar o dinheiro para pagar a bicicleta; perseguir o ladrão da bicicleta; falhar; tentar encontrar o ladrão; falhar novamente; voltar a tentar; voltar a falhar.
Os minutos finais são eximiamente construídos em direcção ao clímax do filme, onde o foco deixa de ser o conflito de Antonio com o meio, para passar a ser o conflito com a sua própria moralidade. Conseguimos sentir plenamente o seu dilema não só pela forma das imagens, como pelo ritmo da sua montagem: já derrotado, chega perto de um estádio de futebol onde decorre um jogo; à sua frente estão estacionadas centenas de bicicletas que deduzimos pertencerem aos adeptos. Sentimos que é o início do auto-questionamento de Antonio para com a sua ética. No momento seguinte, quando se vira de costas e inicia a sua deambulação, vê uma bicicleta isoladamente encostada à porta de um prédio, banhada por um sol quase incandescente que alicia o observador – interno ou externo à narrativa. Antonio senta-se no passeio ao lado de Bruno, e entre a câmara e o protagonista atravessa-se um grupo de ciclistas. De Sica cria em poucos segundos uma espécie de vórtex, onde também nós, espectadores, somos fortemente encaminhados para o mesmo pensamento de Antonio. O protagonista retoma a sua deambulação, aproximando-se e afastando-se cada vez mais intensamente da bicicleta parada à porta do prédio. Percebemos que a sua decisão é tomada quando ordena a Bruno que tome o eléctrico e que o aguarde no local por si indicado. Mais uma vez temos o reforço do carácter de Antonio: apesar de percebermos que Bruno está plenamente ciente das dificuldades pelas quais a família atravessa, Antonio recusa-se a cometer o delito na presença do filho.
Creio que existe neste final uma ideia de Deus ex machina invertido: em vez de, num gesto de justiça divina, Antonio conseguir fugir com a bicicleta (mesmo o espectador sabendo que moralmente a acção é incorrecta, a motivação atenua este acto errático), é na realidade apanhado por um grupo de populares. Imaginamos que, em tantas outras ocasiões, o ladrão conseguiria ter escapado – como o ladrão da bicicleta de Antonio –, contudo aqui sucedo o oposto e o que Antonio desejava ter acontecido com o ladrão da sua bicicleta, acontece com ele.
Como Cousins defende na sua obra supracitada, estes filmes pertencem ao mundo real e não ao mundo paralelo do cinema ao qual o público estava habituado (o mundo de Rita Hayworth dos cartazes que Antonio afixava nas ruas de Roma). A ferida aberta do pós-Guerra relembrava incessantemente que nem sempre existem desenlaces felizes, nem sempre os bons sobrevivem nem os justos ganham. E esta ideia está-nos também a ser rememorada constantemente ao longo de todo o filme. Não é apenas pelo facto de Antonio ser injustamente roubado no início do filme e ser injustamente tratado como um criminoso no final; são as outras pequenas coisas, as coisas terrenas, os já referidos obstáculos que acontecem e que não nos deixam esquecê-la: o não conseguir entrar no eléctrico e ter que esperar pelo próximo; a queda de Bruno a tentar abrigar-se da chuva; a inércia da polícia perante o roubo da bicicleta. O voltar a tentar e o voltar a falhar. São momentos chave, pautados de uma extrema simplicidade, que enaltecem a grandiosidade emocional do filme. Existe quase um relativizar destes micro-elementos do quotidiano: são olhados de forma distante, quase documental, e paradoxalmente, é essa normalização que cria os pontos com os quais o espectador se consegue identificar. Como De Sica proferiu em relação às suas intenções sobre o filme: “O meu objectivo é encontrar o dramático das situações quotidianas, o maravilhoso na pequena crónica. [1]
Dentro desta linha de relação entre a arte e a própria vida, relato uma passagem extra filme mas que me parece fazer sentido ser enquadrada neste contexto. Aquando da pesquisa para o presente texto, deparei-me com um artigo da revista Life, de 23 de Janeiro de 1950, acerca de Lamberto Maggiorani, o protagonista do filme. Maggiorani era um trabalhador fabril que foi escolhido para o papel de Antonio Ricci quando levava o seu filho para a audição para o papel de Bruno. Depois do enriquecimento fruto do sucesso do filme, Maggiorani foi uma das primeiras escolhas de despedimento da fábrica onde trabalhava, devido a um grande corte de pessoal. Dois anos volvidos do lançamento, Maggiorani encontrava-se agora a fazer pequenas aparições em cinema e a assentar tijolos como forma de sustento. A revista Life intitulou o artigo da seguinte forma: Fame Mocks a Movie Star: Hero of “Bicycle Thief” finds himself as unlucky in life as in film that made him famous. Como escreveu Oscar Wilde em The Decay of Lying (1889): “it is none the less true that life imitates art far more than art imitates life.”
O still escolhido corresponde ao momento em que Antonio é esbofeteado depois do grupo de populares o apanhar com a bicicleta roubada. Este momento tem a duração de 1 segundo. É um movimento rápido que não se destaca no desenrolar da cena. Passa quase despercebido entre os empurrões, os insultos e a proximidade de pessoas que rodeiam Antonio.
O still escolhido representa, na minha óptica, não só um momento síntese do filme mas um momento síntese do cinema neo-realista. Arrisco-me a dizer que não apenas o still mas o próprio gesto da sua escolha assenta na lógica deste género: estamos a isolar uma imagem no meio de um todo, estamos a escolher evidenciá-la. Seleccionamos esta imagem, fruto da nossa subjectividade, das nossas razões e dos nossos conceitos desenvolvidos teoricamente, contudo, poderia estar outra no seu lugar. Tal como neste caso, em vez do estalo a Antonio, poderia estar um dos empurrões que o antecedeu; podia estar uma queda de Bruno ou o momento em que a bicicleta é roubada. Todas estas imagens iriam sintetizar o mesmo espírito que aqui foi dissertado sobre o filme em particular e sobre o neo-realismo em geral.
Olhamos para as imagens no espectro de um filme como se olhássemos para a teia de vidas que preenchem a cidade e, de forma mais ou menos aleatória, escolhêssemos uma para nos debruçarmos. Os filmes desta época são fragmentos, análises quase microscópicas de um tecido alargado inserido num panorama social em crise. São escolhas de histórias no meio de inúmeras outras que poderiam estar no seu lugar; histórias essas que seriam mais ou menos maravilhosas e que, por escolha ou por acaso, nos passaram despercebidas.
Beatriz Saraiva
Museóloga
[1] «Il mio scopo è di rintracciare il drammatico nelle situazioni quotidiane, il meraviglioso nella piccola cronaca.»