Um dos nomes mais promissores de uma nova geração de realizadores americanos, Trey Edward Shults tinha já deixado boa impressão com as suas duas primeiras obras, e com Waves (2019) confirma de forma entusiasmante as melhores expectativas. Se quer Krisha (2015), quer It Comes at Night (Ele Vem À Noite, 2017) eram filmes ao mesmo tempo íntimos e desorientadores, claustrofóbicos e maníacos, que brilhavam a espaços mas onde sobressaiam as suas fragilidades, com Waves Shults dá um passo significativo, quer na ambição e escala do seu filme, quer na forma como o seu impacto é exponenciado e trabalhado – este será o seu Boogie Nights (Jogos de Prazer, 1997) ou Requiem for a Dream (A Vida não é um Sonho, 2000), obras importantes e vertiginosas, que evoco pela sua marca no caminho dos seus realizadores e na definição de um estilo.

Waves é uma explosão sensorial de subjetividade que se aproxima do efeito desorientador, transtornante e de pulsar incessante dos últimos filmes dos irmãos Safdie ou de Harmony Korine (que participa no filme com um cameo). Nesses filmes, toda a confusão sensorial parece existir para ofuscar uma aproximação à interioridade das personagens, como se isso fosse aí impossível, como se essa vertigem sensorial fosse o mais próximo que conseguimos alcançar para entrar na mente delas, uma imitação do seu estado mental. Porém, em Waves, essa colisão, por vezes alucinada, por vezes serena, de luz e som funciona no sentido inverso, para expor as fragilidades e inquietudes das personagens e criar um vendável visual, como numa espécie de Malick on steroids, que chama pela experiência de sala, mesmo que por enquanto ainda não seja possível.
Este é, ao mesmo tempo, um filme de contrastes – a história de um irmão e de uma irmã, o lado masculino e o feminino, o desamparo e a redenção, o inevitável e o surpreendente, a vida e a morte, um desabar e o recomeço, o ciclo das ondas – mas também de sincronismos. Em diversas alturas, as duas partes da história tocam-se através de detalhes, momentos fortuitos mas plenos de simbolismo.
No princípio parecia o paraíso. Algures no sul da Flórida, numa casa enorme, uma família unida, apaixonado pela namorada e adorado pelo seu círculo de amigos, estrela da equipa de wrestling da escola, entre festas, praia, sessões de treino e jantares familiares, Tyler, um adolescente, parece ter tudo. Aos poucos, surgem alguns sinais de possíveis fendas neste cenário, como um pai demasiado exigente (ou apenas preocupado com o futuro dos filhos, uma resposta à experiência negra na América), uma possível lesão que assombra o seu futuro desportivo ou problemas de comunicação com a namorada, mas Tyler tenta afogar as preocupações numa fuga para a frente. Shults filma este princípio de um vórtex recorrendo a diversos malabarismos, como uma câmara inquieta sempre em agitação, especialmente com movimentos circulares (e em particular vários de 360º), tons carregados, especialmente nas luzes nocturnas, e um ritmo elevado de alternância entre planos, como se recordássemos pequenos fragmentos, ou uma coleção de memórias impressionistas.
Se esta panóplia de mecanismos visuais pode parecer exagerada, um truque para esconder algo, todo este movimento frenético é desacelerado quando o filme muda, de forma surpreendente, de perspectiva, passando a contar a história da irmã de Tyler, Emily, também ela uma adolescente a atravessar a sua crise pessoal. Esta mudança, que revela uma nova profundidade ao abrir o seu “campo de visão” a um outro ângulo desta história é assinalada no momento de maior impacto emocional do filme, precisamente quando um dos mecanismos visuais que Waves utiliza atinge o seu ponto máximo: no início do filme, e da história de Tyler, a imagem ocupa a tela inteira e vai gradualmente reduzindo a amplitude do formato, à medida que se reduzem as possibilidades do nosso protagonista, até ao ponto “mínimo” do 4:3 (ou 1.33:1), altura em que o foco narrativo muda para Emily, e a partir daí a imagem volta gradualmente a aumentar, mais uma vez acompanhando a jornada emocional da protagonista. Como em todos os artifícios visuais explorados em Waves, é a sua carga simbólica que acaba por justificá-lo, elevando-o nessa sincronia com a história que procura contar como algo inseparável do momento retratado.

Um outro aspecto importante em toda esta construção é o uso do som, e particularmente, da música. Muitas vezes diegético, em diálogo com a história, as músicas surgem, como desde logo na primeira cena, com os personagens a entoarem alguns versos, como espelho dos seus estados de espírito, também em fragmentos; noutras vezes as canções quase que aparecem abafadas e misturadas com a acção, como pequenos excertos daquelas músicas que ficam presas na cabeça quando menos queremos. Além de uma banda-sonora com nomes diversos como Frank Ocean, Animal Collective, Kendrick Lamar, Kanye West ou Radiohead, o filme conta como trunfo uma banda-sonora original a cargo de Trent Reznor e Atticus Ross, que ocupa quase subtilmente os momentos de “pausa” na acção, acentuando o desamparo sentido – todo o filme é também uma homenagem à forma como, em adolescentes, nos refugiamos muitas vezes na música para tentar encontrar o nosso lugar num momento de instabilidade e solidão.
Este é, ao mesmo tempo, um filme de contrastes – a história de um irmão e de uma irmã, o lado masculino e o lado feminino, o desamparo e a redenção, o inevitável e o surpreendente, a vida e a morte, um desabar e o recomeço, o ciclo das ondas – mas também de sincronismos. Em diversas alturas, as duas partes da história tocam-se através de detalhes – como a cabeça fora da janela do carro ao ouvir uma música, os movimentos circulares, os mergulhos na água – momentos fortuitos mas plenos de simbolismo. É a história de Emily, e o contraste com a primeira parte, que eleva o filme a algo notável, pela fé que demonstra na possibilidade da salvação, na bonança depois da tempestade, num lampejo de esperança, um assombro de luz. Longe de ser um filme perfeito, os seus vícios são evidentes (o exagero estilístico, o argumento demasiado certinho, a exploração da tragédia), mas, deixando o cinismo à porta, carrega todo o seu sentimentalismo à mostra, de uma forma vulnerável, desarmante até.
O filme estreou no passado dia 28 de Janeiro de 2021, nos canais TVCine, estando disponível para aluguer nos videoclubes das operadoras de televisão.