I wished to die on war’s red field.
Paul Verlaine, tradução de Bergen Applegate
Desta vez corres o risco de desencadear a máquina infernal…
Les Anges exterminateurs (Os Anjos Exterminadores, 2006) de Jean-Claude Brisseau
“She lives in room 29, that’s the one right up top of mine”, confessa-nos Nick Cave perante o olhar de Bruno Ganz, alguns momentos antes de este se ausentar para a sala ao lado, para o bar, durante o concerto no Der Himmel über Berlin (As Asas do Desejo, 1987) de Wim Wenders.
Este é, de facto, como será harmonioso num escrito sobre Jean-Claude Brisseau, um texto assombrado por várias salas, e por vários quartos, algumas delas e alguns deles do próprio, o seu apartamento em Paris onde podemos em cada plano ver centenas de discos, DVDs, livros, onde o James Stewart nos espreita na capa de Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958) e onde Brisseau irá encenar os seus mistérios finais. Mas fora dos quartos, a escuridão dos vestíbulos: “Les anges y volaient sans doute obscurément” – Victor Hugo; “Angels were surely flying through the dark”, na tradução de Blackmore. E fora destes, atrás de varandas e ruas, o espaço no interior das árvores de que nos fala o taxista sábio de À l’aventure (À Aventura, 2008). “Posso representar os arbustos com manchas coloridas?”, pergunta Isabelle ao pai em Un jeu brutal (1983), pincel e tela na mão, no raro momento de paz entre os dois.
O still é o último fotograma de Choses secrètes (Coisas Secretas, 2002). No filme, Sandrine e Nathalie são duas raparigas que travam amizade depois de serem expulsas do clube de strip onde trabalhavam – Sandrine a servir ao balcão, Nathalie a dançar. Sandrine confessa curiosidade e interesse pela forma como aquela sente prazer a dançar nua, em público. Em resposta a este interesse, e à necessidade prática de arranjar um novo emprego e de pagar a renda, Nathalie convida Sandrine para morarem juntas, e irá instrui-la num processo e num método onde a soberania do prazer é imperiosa, e onde a prática criteriosa deste prazer, através de regras, comanda uma operação de batota para o jogo do mundo. A admissão e a armação do prazer, primeiro debaixo de cobertores, depois pelas ruas de Paris, onde as duas caminham nuas por baixo de gabardinas; na estação de metro, numa seminal mise en scène de Brisseau, Nathalie desafia Sandrine a tocar-se discretamente, a metros dos transeuntes. Quando um rapaz que entra num comboio repara no seu movimento, a ordem é que o faça abertamente; o rapaz bate com o punho na porta da carruagem enquanto esta arranca, e as duas raparigas vão masturbar-se numa reentrância de manutenção no túnel.
Juntas, candidatam-se a postos de recursos humanos numa empresa nos Champs-Élysées. Nathalie forneceu a Sandrine algumas lições sobre a vida – que o ser humano deseja o que não pode ter e que “o sexo escraviza – o escravo deve ser o outro”. Neste cenário frontal que Brisseau pinta, o plano é simples: seduzir um homem num cargo de chefia, fazê-lo crer num desejo mútuo e na sua virilidade e depois, “sem aviso”, remetê-lo para espectador de uma promiscuidade do objecto de desejo com outros amantes, para que, humilhado, esteja na condição de “rastejar de volta”. Existe apenas um risco: apaixonar-se significaria a desgraça – “em guerra, em plena batalha, se páras para reflectir, morres”, diz-lhe Nathalie, as duas de roupão, na cama. E assim é: usando o seu chefe de departamento como intermediário, Sandrine dá-se a conhecer a Delacroix, o chefe de operações. Nathalie conhece a sua rotina – paga a um carteirista para assaltar a mãe de Delacroix antes do almoço semanal deles, Sandrine faz cair o gatuno e resgata a mala da senhora. Ao longo do tempo, a promoção de Sandrine para sua secretária pessoal torna-se um procedimento evidente para Delacroix. Existe no entanto outro homem acima na hierarquia deste escritório, pairando fora dele, num edifício privado: Christophe Barnay, a personagem mais temível de Brisseau – “Putain, qu’il était beau!”, suspira Sandrine em off no travelling que entra com ela no gabinete de Barnay. Delacroix ama Sandrine, mas esta finge; não sente nada, e sem nada, “absolutamente nada”, apenas Nathalie lhe resta, – esta não é porém propriamente um partido amoroso; por isso deseja Christophe.
“E Christophe?, pergunta a Delacroix, a cabeça no regaço dele.
– Acho que já dormiu com todas as miúdas giras da empresa. Sabes, agora que ele te tem a ti fico com ciúmes.
– És tonto.
– Não, é sério. Ele mete-me medo. Ao pai também. Ao ponto de me ter encarregado de o vigiar discretamente.
– Porquê?
– Isto já dura há mais de vinte anos. O velhote tinha acabado de fundar a empresa, trabalhava imenso. Um dia partiu para os Estados Unidos durante dois meses. O pequeno Christophe ficou sozinho com a mãe e com a irmã, esta ainda bebé. Na altura ainda não tinham empregados em casa. A mãe morreu de repente. Um ataque de coração que ninguém previa. O pequeno Christophe ficou imóvel diante do cadáver da mãe durante quase duas semanas, sem dizer a ninguém, nem sequer ao pai pelo telefone, que de nada sabia. O cadáver começou a decompor-se diante da criança que não se mexia a não ser para alimentar a irmã.
– Que idade tinha ele?
– Nove anos. Não teve reação aparente, estava até bastante bem. Só que já não tinha medo de nada, nem de ninguém. Dizia: ‘Não passamos de pedaços de madeira’. Repetia, como uma lenga-lenga que queria atacar o sol, privar a Terra dele, usá-lo para incendiar o mundo. Ele dizia: ‘Isso seria um crime.’ E ainda: ‘Será que isso me tornaria tão cruel quanto Deus?’ Palavras de um miúdo, mas aos 19 anos e depois aos 25 continuava a dizer a mesma coisa. Ao mesmo tempo parecia desafiar a morte em aviões, carros. Divertia-se a manipular as pessoas, a dar-se com gente perigosa, para ver se o matavam. Levou muitas mulheres ao suicídio.
– São boatos.
– Não. Seduziu várias aqui na empresa. Diz-se que as atormentou tanto, que as fez sofrer de tal maneira, que duas delas se regaram com gasolina, e se imolaram. Arderam vivas à frente dele.
– Achas que ele é meio louco?
– Ele sabe muito bem o que faz. São as mulheres que enlouquecem, mas por ele. Sobretudo sabendo o que aconteceu às outras. Gostava muito de o despedir, ou pelo menos de o afastar, mas é impossível. O pai tem tais complexos de culpa para com ele que lhe perdoa tudo. Talvez depois de morrer me deixe algum controlo sobre o filho. Seria bom. Com as conexões que tem, o Christophe é quase intocável. Com poder, tornar-se-ia temível.”
Este diálogo, sob a Stabat mater de Vivaldi, é certamente o mais notável de Brisseau.
Refém do seu desejo, Delacroix é apanhado por Christophe com as duas raparigas e suspenso da empresa sem vencimento. Nathalie, sabemos agora, ama e é amante de Christophe há algum tempo, e o convite de casamento que este faz a Sandrine é, para além de instrumental em conseguir que o pai lhe deixe a totalidade do império empresarial, também útil para humilhação da primeira. Na noite do casamento, num château, perante uma gigantesca orgia, Christophe apresenta-se à irmã, Charlotte, e a todos os presentes:
“E eu sou a Morte de tudo, e o Nascimento de tudo. A palavra e a memória, a constância e a misericórdia, e o silêncio das coisas secretas.”
À saída do castelo, Nathalie despeja gasolina sobre si própria e mata Christophe. Os seguintes acontecimentos conta Sandrine, em voz–off.
“A polícia chegou. Algemaram Nathalie e levaram-na. Nunca respondeu à pergunta que todos colocaram: ‘Porquê?’ Os media ocuparam-se do caso, mas o essencial permaneceu oculto. Nathalie foi condenada a vários anos de prisão e o caso caiu no esquecimento. Casada com comunhão de bens e tão rapidamente viúva, herdei de forma mecânica tudo o que era oficialmente do meu marido. Assumi com a Charlotte a direcção do império que o seu irmão tanto cobiçara, aconselhada por Delacroix, que se mostrou um excelente colaborador, discreto e totalmente fiel. A vida continuou. Após o término da sua sentença, Nathalie casou-se com o seu guarda prisional. Foi a única das três raparigas desta história que se casou verdadeiramente. E uns anos depois, cruzei-me com ela por acaso. Lá estava ela, com o marido e o filho. Tinham um ar simpático, os três. Ao fim de um tempo, aproximámo-nos. Olhámo-nos… em silêncio. Só tinha olhos para ela. Depois tivemos de nos separar. Ela e eu continuávamos a olhar-nos, sabendo bem que seria pela última vez. Então ela inclinou-se para mim, e pediu-me perdão… a mim. Olhámo-nos pela última vez, e dei-lhe um beijo. E depois, acompanhada do marido e do filho, afastou-se, e desapareceu… para sempre. E nunca mais passou um dia na minha vida sem que eu pense nela pelo menos uma vez.”
Estamos na estação Franklin D. Roosevelt, Champs-Élysées, no 8e arrondissement de Paris. Nathalie desceu as escadas do metro, as pessoas caminham, chove levemente.
Antonio Rodrigues, na Folha da Cinemateca para Que le diable nous emporte (Que o Diabo Nos Carregue, 2018), sugere que Brisseau, atingido pela doença e sentindo a aproximação da morte, perante este filme que viria a ser o seu último, correu o risco que descreve como comum entre cineastas nos filmes testamentários: o de “trocar por miúdos aquilo que mostrara ou/e demonstrara por meios oblíquos na sua obra anterior e até mesmo de justificar-se.” Neste filme, diz-nos o programador, Jean-Claude Brisseau “decidiu ilustrar e justificar as suas fantasias pessoais, explicitar aquilo que sempre mostrara de modo indirecto.”
Permito-me oferecer uma alternativa a esta posição, discordando dela. Creio que não só este último filme de Brisseau possa ser comparado à restante obra na matéria de ser elusivo, como talvez seja até o mais misterioso de todos, ao pôr na frente do véu do desconhecido o riso e ao tomar a forma mais complexa de todas: a da comédia. Na ilusão de que nos mostra tudo, [que dizer de um filme que tal como La fille de nulle part (A Rapariga de Parte Nenhuma, 2012) se passa nessa tal casa, a sua, entre as estantes recheadas e os seus ícones?] na plenitude das suas cenas mais simples (Clara a ajudar Olivier a esquecer Suzy e a terminar o seu livro através do seu corpo e do amor é de uma poesia irónica, bela sem comparação) Brisseau deixa-nos sem nada nas mãos. O filme, esta comédia-sem-graça-nenhuma esfuma-se perante os nossos olhos, ou assim que desviamos o olhar por instantes. As personagens parecem estar constantemente a suster um sorriso nas situações mais invulgares – “És ridículo!” – exclama Suzy a Olivier, enquanto este dispara uma pistola no patamar, Clara a concordar de forma absurda com a cabeça quando este reclama que é um homem bem-parecido, as três mulheres atrás da porta como numa cena de desenho animado – mais à frente, Clara desce o prédio e bate na nuca de Olivier com uma frigideira, para o conseguir levar a casa (ele entretanto, deitado num colchão com padrões tropicais no meio do passeio, ameaça transeuntes que se vai matar).
Há, claro, a gargalhada final. Clara, Suzy e Olivier amam-se, e depois de fazerem amor Clara adormece; quando acorda vê Olivier e Suzy a flutuarem junto ao tecto, abraçados. Luís Miguel Oliveira diz-nos, no in memoriam do Público, que é a gargalhada de uma personagem que “Vê mais, sente mais, e sabe mais do que as personagens em volta”. O cinema de Brisseau é o cinema que sabe mais do que nós à sua volta, e Que le diable nous emporte é o filme de um velho que sabe mais do que nós, e vai-se embora sem nos dizer o que sabe, sem nos contar o que é afinal que tem assim tanta piada, pois se “cada filme dele deixa-nos na iminência da revelação de um qualquer segredo fundamental”, desta vez o filme ri-se de nós. Ri-se de nós, ri-se de Brisseau, ri-se de si próprio? Brisseau fugiu-nos? Falhámo-lo? Escapou o mundo a Brisseau, como escapou a François, em Les anges exterminateurs (Os Anjos Exterminadores, 2006), self-insert de Brisseau no filme, onde este conclui, em off pela voz do próprio realizador * que, sem resposta para as suas perguntas (Porque é que o sexo leva a violências e hipocrisias desproporcionais em relação a assuntos que não são mais do que uma tempestade num copo de água? E ainda, “O que é a verdade?”), estaria “provavelmente a perseguir o vento”? Na hipótese mais preocupante que me ocorreu, ter-lhe-iam os próprios filmes fugido por entre as mãos?
* Segundo o filme-entrevista Le Cinéma selon Brisseau (2007) realizado por Eric Paccoud, com Brisseau e Lisa Garcia, todos na equipa concordaram que a sua voz mais velha atribuía “uma espécie de distância mais triste e nostálgica”.
O que é o mistério de Brisseau? Qual a chave para os segredos da dimensão mística no seu trabalho? Que conclusões tirar do seu uso repetido de determinados signos ao longo de décadas? Na entrevista a Luís Miguel Oliveira, é mencionada “uma carta de um leitor dos Cahiers du Cinéma que desenvolveu uma vasta teoria” sobre uma cena em Choses secrètes onde é visto durante alguns frames a regar um jardim: em Que le diable nous emporte Camille afirma que mora em 23 Clichy Boulevard – colocar esta morada no Google mostra-nos a palavra SEXODROME, num letreiro gigante em Pigalle (e o filme goza connosco). Não é do meu interesse, portanto, responder a nenhuma destas questões. “Como Kubrick, você define o cinema como uma experiência não-verbal”, conclui o entrevistador em Le Cinéma selon Brisseau, perante o acordo do realizador, depois do acrescento deste, em jeito de post-scriptum que percebeu que: “(…) os filmes que vejo com frequência são os que têm música.”
Em O Erotismo, de Georges Bataille, numa caracterização do próprio trabalho por Bataille e que é sublinhada mais do que uma vez na obra, o autor diz-nos que “um estudo que se quer científico minimiza a parte desempenhada pela experiência subjectiva, enquanto eu por outro lado estou metodicamente a minimizar a parte desempenhada pelo conhecimento objectivo”. Da mesma forma, não chegamos perto de esgotar Brisseau em sentenças como “cineasta do desejo” – perante esse alvo em movimento recusamos um “estudo científico” do realizador. Resta-nos a experiência: “Como consegues obter resultados tão belos com sexo?”, pergunta Suzy a Camille a olhar para os quadros dela, que representam mulheres nuas, sobreimpostas sobre fotografias stock: uma linha de metro, o interior do palácio de Versailles, o espaço sideral. Camille explica o processo: colocar uma câmara, estender um pano chroma sobre a cama, fazer amor, e depois abrir o Final Cut Pro. Assim:
Nathalie casa-se e forma família com o seu guarda prisional. Camille herda o pequeno império de clínicas psiquiátricas do pai para o gerir sem grande experiência nem entusiasmo. Em Brisseau, a banalidade espreita e é expiadora, inalcançável e em última análise a única promessa de felicidade. Antonio Rodrigues lembra-nos que o realizador “nunca deixou de acompanhar os seus personagens até [a]o fim (…)” e, com efeito, aqueles que não escapam para a descontinuidade do ordinário – do trabalho, do profano, para usar os termos batailleanos em oposição ao sagrado [recordemos a personagem do irmão em De bruit et de fureur (1988), que “só” quer sair de casa, manter o seu emprego a entregar jornais e viver com a namorada, perante profunda consternação e dissuasão do pai] – estão perdidos, para sempre. Estes e estas condenadas, em Brisseau, saem de cena. Duas das raparigas de Les anges exterminateurs “mudam de casa e de número de telefone”; outra simplesmente “desaparece” – numa espécie de epílogo, François reencontra-a e ela conta que agora “trabalha em informática”. Em À l’aventure, Mina, que tinha o projecto de alcançar através da hipnose o mais profundo êxtase possível, “deixou de falar” e quer apenas retirar-se para um convento. Apenas em Céline (1992), filme particular e de fronteira em Brisseau na forma como apresenta uma ligação mais tradicionalmente ascética ao sagrado, sem a violência (explicitamente erótica) do sacrifício e do ritual, há uma saída mais pacífica. Céline desaparece, mas mesmo aqui Genevieve, a personagem de Lisa Heredia, em fluxo com a sua personagem de Un jeu brutal, aí professora, aqui enfermeira, é quem permanece, a salvo, no mundo terreno – o namorado telefona-lhe no fim do filme, “Nunca mais te deixo sozinha, vamos viver juntos, casados, se quiseres”. “Sim”, responde ela. Entre as “neuroses do destino” de que Mathilde fala em frente à aula em Noce blanche (1989) – “algumas pessoas são prisioneiras do seu destino, afectadas sempre pelos mesmos dramas” – e os complexos ternos e engrenagens da ilusão, aqui se situam as personagens de Brisseau!
A ilusão: em Can’t Get You Out of My Head (2021) documentário de Adam Curtis, somos introduzidos a Kerry Thornley, um dos fundadores do Discordianismo – religião pós-moderna e movimento contracultura, e ao seguinte episódio factual: no serviço militar, Thornley foi colega e tornou-se amigo de Lee Harvey Oswald. O jovem ficou de tal forma impressionado pela individualidade e feitio de Oswald que decidiu escrever um romance baseado e protagonizado por ele – The Idle Warriors. No arquivo BBC, em entrevista, Thornley relata-nos o seguinte: “Foi como se o herói do meu romance tivesse saltado das páginas do meu livro e disparado sobre o presidente.”
“E foi nessa altura que comecei a pensar em qual seria a importância da ilusão nas nossas vidas”, Brisseau-personagem diz-nos em La fille de nulle part. Está a escrever um livro inspirado, entre outras coisas, num amigo comunista que se suicidou após a vitória gaulliana no pós-Maio de 68. No computador, mantém o vídeo da sua visita a um outro amigo: este está num hospital psiquiátrico e crê que pequenos dinossauros passam pelo seu quarto, e o mordem. (“Lembrete” – diz-nos a voz radiofónica sem corpo que assombra François em Les anges exterminateurs – “Os pequenos demónios azuis têm ordens para não atacar os seus entes queridos antes do massacre”). É o mais real que o real (Céline, La fille de nulle part): “Talvez as nossas crenças mais profundas sejam dessa natureza, ou por outras palavras, ilusões privadas e colectivas.”
Embora a realidade fosse espinhosa demais para o meu grande carácter, eu estava em casa da minha Dama sob figura de ave azul-cinzenta arremetendo enorme contra os frisos do tecto e arrastando a asa pelas sombras da tarde.
Arthur Rimbaud
Em La fille de nulle part, Brisseau está em casa quando ouve uma série de ruídos do exterior. No patamar do seu apartamento, uma rapariga está a ser violentamente espancada por um homem, que foge. É assim que conhece Dora, e depois de a deixar a descansar (esta não quer envolvimento nem de polícia nem de hospital) desabafa com um grande amigo médico que o vem visitar, insistindo perante as advertências deste na intenção de a deixar recuperar em paz. Esta também é, como diz Camille em Que le diable nous emporte – e estamos a falar de facto do mesmíssimo lugar – “a casa do Senhor”. Decorridas semanas de amizade entre Dora e Brisseau, e após este ter obtido fortes provas quanto a Dora ser a reencarnação da sua esposa (ambas trauteiam a mesma canção e uma pequena mesa, com um lápis preso a uma das pernas com fita-cola, levita na sala de estar durante uma seánce, desenhando na perfeição um retrato da falecida), Brisseau propõe deixar tudo à jovem, em testamento: o apartamento, os móveis, o dinheiro. A importância de tal gesto é evidente, ora:
“Imagine que é de facto a reencarnação da minha mulher. Existe entre nós os dois uma diferença de 41 anos de idade mas continuamos tão apaixonados como no primeiro dia. Regressou à Terra logo após a sua morte para se juntar a mim. Estamos novamente reunidos. Que felicidade. Só que eu estou prestes a morrer, mas vou reencarnar logo de seguida para me juntar a si novamente. Na adolescência, vou à sua procura. Encontro-a e apaixonamo-nos loucamente. Só que a Dora é 26 anos mais velha que eu, e desta vez é a Dora que vai morrer antes de mim.”
Em Un jeu brutal (1983), Isabelle, filha de um grande cientista francês, paralisada da cintura para baixo desde que nasceu, está preocupada com o paradeiro de uma pequena rã que o pai lhe ofereceu, juntamente com uma cobra de jardim. “É fácil, a cobra comeu-a.” “Isso é horrível, todas estas criaturas que se comem umas às outras.” “É a lei da natureza” – explica-lhe o pai, e leva Isabelle para uma pequena conversa e lição:
“Olha para estas árvores todas. Crescem porque vivem da luz do sol, assim como todas as plantas e folhas. As folhas caem, são comidas por insectos, os insectos são a presa das rãs que são devoradas pelas cobras, que são depois devoradas por ouriços ou abutres.”
Para ele, além desta ordem natural só existem miragens, que devemos evitar para poder ver o mundo no seu esplendor. E aqui Isabelle irá pegar na tela e pintar.
Não é diferente de quando a professora, no fabuloso papel de Fabienne Babe, encomenda um globo terrestre novo com um bonequinho magnético para a sala de aula, para explicar ao jovem Bruno porque é que as pessoas na China não “caem”, em De bruit et de fureur, e não é dissimilar ao que o sábio diz a uma outra Sandrine em À l’aventure: “Sabias que a Terra gira ao redor do sol a 110.000 quilómetros por hora? E que todo o sistema solar gira a 800.000 quilómetros por hora à volta do centro da Via Láctea? Neste momento, estamos a mover-nos a um milhão de quilómetros por hora pelo espaço, sem darmos conta disso. Se todas as estrelas explodissem agora, veríamos a primeira explosão daqui a quatro anos e meio, as outras gradualmente ao longo de biliões de anos, durante o tempo que demora para que as imagens nos cheguem. Se o nosso sol se desintegrasse, teríamos de esperar oito minutos para o ver.”
Mais tarde, uma modesta casa de campo que Sandrine visita, completa com o mural do céu estrelado que a direcção de arte de Brisseau carrega de filme para filme (Les Anges exterminateurs, À l’aventure, La Fille de nulle part). Em Le Cinéma selon Brisseau, Lisa, que é montadora de Brisseau, directora de arte e figurinista, para além de actriz (Céline), explica-nos, em resposta ao azul que marca a cena inicial com as aparições em Les Anges exterminateurs: “Diria que nos filmes dele, o azul tem sido sempre a cor do céu, representação do céu.” Brisseau vai interromper com alguma coisa – “É sim, vai ver os teus filmes. Nos teus décors nunca utilizo a cor azul, é difícil para mim escolher o azul sem ser para algumas roupas e para representações do céu.” Brisseau intervém dizendo que quer apenas esclarecer uma coisa: estamos sim a falar do céu, não do Céu com um C maiúsculo, nesse não acredita.
O taxista termina o pensamento do pai cientista no outro filme: “Observa esta paisagem. O que inspira ela em ti?
– Uma sensação de calma e harmonia.
Como a mim. Mas, e sabes isto, é antes de mais o vazio, e ao mesmo tempo composta por plantas e insectos, e milhares de animais que se devoram para sobreviver. As plantas crescem graças à luz, graças ao sol, mas o balanço e a harmonia dependem de selvajaria e massacre permanentes.”
O profundo volta-face, irónico, com que Brisseau nos provoca ao longo de Un jeu brutal é que este pai rigoroso e sem ilusões, interpretado por Bruno Cremer, está desde o início do filme a assassinar crianças numa vila próxima. O motivo ele explica a Isabelle após esta descobrir a secreta ocupação do progenitor. “O mundo está cheio de signos (…) indicações claras para quem os souber interpretar.” Um dia ausentou-se do laboratório caseiro onde trabalhava e encontrou aquelas crianças a vandalizarem-no. Pediu para que se encostassem à parede, tirou-lhes uma fotografia e perguntou-lhes os nomes. Apontou os nomes, e mais tarde escreveu a primeira letra de cada nome próprio e apelido. Juntas, diziam: DIABO, MATA-OS. E assim o fez.
Bataille permite-nos concluir estes entendimentos sobre a natureza: “Há na natureza e subsiste no homem um movimento que excede sempre os limites, e que não poderá ser reduzido à ordem mais que parcialmente. Somos geralmente incapazes de prestar contas desse movimento. É aliás por definição aquilo que não pode ser concebido, mas estamos conscientes de viver sob o seu poder.” Trata-se da violência, e da continuidade. Violência é o que o mundo do trabalho, da banalidade exclui. É este mundo que salva Isabelle em Un jeu brutal, a professora em De bruit et de fureur, a enfermeira Genevieve em Céline, e derradeiramente Camille em Que le diable nous emporte. É por falhar em permanecer neste mundo que o professor em Noce blanche está desgraçado após o seu caso com uma aluna, que a conceituada esposa em L’Ange noir é morta, e que o realizador em Les anges exterminateurs é deixado paraplégico. É este mundo que salva Nathalie, casada com o seu guarda prisional. E sobre o casamento aliás, Milan Kundera diz-nos em A Imortalidade que a razão pela qual pouco conhecemos da esposa de Goethe é porque os dois dormiam juntos.
E assim descem as escadas do metro.
O homem das cavernas começou a trabalhar, sugere Bataille. Até certo ponto, estaria a escapar ao reino da violência. No entanto, raramente se representou a si mesmo, e quando o fez foi sob disfarce, disfarçado “sob os traços de algum animal com cuja máscara cobriu o rosto”. Animais que por não observarem estes limites seriam inerentemente mais sagrados, mais próximos de Deus que o homem…
O movimento do amor, o amor passional, do desejo, “levado ao extremo, é um movimento para a morte.” – “Esta aura de morte é o que caracteriza a paixão.”
Em L’Amour à mort (1984) de Alain Resnais, Pierre Arditi está no quarto a morrer e Sabine Azéma, sua namorada, chama um médico a casa. “Simon! Não estejas morto!”, grita, depois da confirmação do falecimento. Minutos mais tarde, quando Simon desce as escadas, chora “Estás vivo!”
Quatro anos e meio depois
Estou no comboio para Paris, na linha P do Transilien, a vir de Meaux, vila bem conhecida pela sua catedral e pelo seu brie, com nozes. Não sei bem como, descobri que lá, num pequeno cinema comercial, acontece pontualmente a reunião de um cineclube e a respectiva exibição programada de um filme. Entrei. Começou a dar o Maynila sa mga kuko ng liwanag (Manila nas Garras da Luz, 1975). O projecionista deve-se ter enganado: A imagem estava a 2:35:1, ou por aí, e as coisas apareciam evidentemente cortadas. Na sala estava eu, um senhor na frente, penso, silencioso, mais ninguém, acho. Após algum tempo sem alteração, concluí que teria de ir informar alguém do erro na projeção do filme e assim o fiz. Quanto a este, entre os diálogos em filipino e as legendas em francês, pouco apanhei. Impressionou-me a cena do rapaz que cai nas obras. Depois embarquei no comboio. Tenho comigo Os Prémios do Cortázar, livro que nunca li para além das primeiras páginas. Durante a viagem recordo-me de um pequeno episódio. Estava no quinto ano da escola, e era a primeira aula de Educação Física. Durante a apresentação da professora e dos alunos, no pavilhão, olhei para cima e dei conta de um pardal que saltitava nas telhas de amianto levemente transparentes. O comboio passa por Lagny-sur-Marne com os seus cisnes, Vaires-sur-Marne com os seus quintais e a sua estação de madeira. Dois recém-casados estão a fazer uma sessão fotográfica em Montmartre. Apanho o metro, atrasado para um compromisso de trabalho e viro distraído uma esquina:
Bataille diz-nos do amor dos amantes que este é “uma busca por união à mercê da circunstância”.
“Nada, no fundo, é ilusório na verdade do amor: o ser amado equivale para o amante – e apenas para o amante, mas que importa? – à verdade da existência”.
O efervescente momento da nossa juventude está passado! O amor é impossível no planeta Terra.
Existem duas soluções: o convento ou a prisão [“De fora, sabes o que me fazia lembrar a tua prisão? Um convento” – diz Cécile à mãe em L’Ange noir (1994)]. Em De bruit et de fureur, o delinquente Jean-Roger escreve à professora a partir da prisão juvenil. Quanto ao convento, permitamo-nos recorrer a um dos grandes cineastas das respostas, pois é em A Carta (1999) de Manoel de Oliveira que Chiara Mastroianni escreve a Leonor Silveira, sua amiga freira:
“És a única pessoa a quem escrevo, mas peço-te que não digas a ninguém onde estou, ou que recebeste carta minha. Não quero que ninguém saiba, sobretudo a pessoa que tu bem sabes. Foi tudo muito rápido, encontrei-as quando se preparavam para embarcar. Pouco falámos, mas bastou para que sentisse o impulso de ir com elas. Foi como uma porta a abrir-se à minha vida atormentada. Fiz as malas a correr, nem pude despedir-me de ti. Durante a viagem, pensei muitas vezes no que me contavam sobre as outras missões por onde tinham andado. O que me espanta é serem freiras muito novas. Estamos algures em África, em campo aberto, com centenas de refugiados que acampam aqui porque há uma nascente que mal os alivia da sede. A maioria são crianças. E são elas que sofrem as maiores provações, por causa das guerras fratricidas que pululam por toda a parte. Estas missionárias vinham evangelizar. Mas dizem: ‘Como vamos ensinar a fé a estas crianças cheias de fome e de doenças? Primeiro temos de lhes arranjar comida e remédios.’ (…)”
Fora do quarto, os sinos tocam para o recolher.
O som e a fúria: no filme irmão deste de Oliveira, La fidèlite (A Fidelidade, 2000) de Żuławski, helicópteros sobrevoam o casamento dos dois noivos. Perturbada com o seu desejo para com outro homem, Sophie Marceau chega à cama do marido a chorar: “Ajuda-me. Ajuda-me. Conduz-me. Dá-me um filho.”
A sua mãe, de urgência para o hospital, diz-lhe: “Estás à beira do precipício. Recua. À tua vez, recua.”
Em A Carta, a mãe no seu leito da morte expressa: “Se receio por essa fraqueza é porque te vejo à beira de um precipício.”
Há uma citação que Bataille vai buscar a Bossuet, teólogo e bispo do século XVII. Este diz-nos, no seu Sermon sur la Mort (1662):
“A natureza, quase invejosa do bem que nos faz, declara-nos frequentemente e faz-nos ver que não pode deixar durante muito tempo nas nossas mãos a pequena matéria que nos empresta, que ela não deve permanecer nas mesmas mãos, devendo estar eternamente em circulação: ela precisa dela para outras formas, ela pede que seja devolvida para outras obras. Esse recrutamento contínuo do género humano, quero dizer, os filhos que nascem, à medida que avançam, parecem empurrar-nos com o ombro e dizer: ‘Afastem-se, agora é a nossa vez.'” – Ou na fabulosa tradução americana, “Back now, it is our rum.” – “Assim como nós vemos passar outros diante de nós, outros irão ver-nos a passar, os quais, por sua vez, ficam a dever o mesmo espectáculo aos que virão.”
“Tenho a certeza de que o que acabámos de experienciar, nunca mais voltaremos a experienciar”, diz Sabine a Pierre. No final de La fille de nulle part, Brisseau é apunhalado por um carteirista e morre nos braços de Dora. Oliveira filma Pedro Abrunhosa a espreitar Mastroianni entre estátuas num jardim em Paris. [Noutro universo, Marcello Mastroianni espreita uma mulher que está sozinha numa pequena ponte em Le notti bianche (Noites Brancas, 1957) de Visconti]. Talvez noutro sítio, numa outra reencarnação, numa outra vida, entre outras estátuas, noutros jardins sem “o cascalho, a pedra, o mármore, as linhas direitas que marcam os espaços rígidos e as áreas desprovidas de mistério” que Resnais nos descreve em L’année dernière à Marienbad (O Último Ano em Marienbad, 1961).
Por ora, estou atrasado para o meu compromisso. Depois, talvez dê um passeio. Não sou médico nem sou doutor, mas não sei porquê, tenho a ideia engraçada de que algum amigo me possa telefonar esta tarde, talvez para me contar que alguém voltou sem aviso ao mundo dos vivos, ou que se depararam com um estranho à porta do apartamento.
Enquanto caminho, entre o barulho das obras, ponho a tocar L’amour est cerise, do Jean Ferrat. E é assim:
Autant qu’il nous semble
Raisonnable et fou
Nous irons ensemble
Au-delà de tout
(…)
Rebelle et soumise
Paupières lassées
Remets ta chemise
Belle fiancée
L’amour est cerise
Et le temps passé
C’est partie remise
Pour aller danser
La La La La La La La La …
Rafael Fonseca
Realizador, licenciado em Ciências da Comunicação, membro da direcção de O Fim do Teatro (OF.DT), prepara actualmente a sua curta-metragem Quorum.