[A] homologia entre imobilidade e morte regressa para assombrar a imagem em movimento.
Laura Mulvey
Psycho (Psico, 1960) é um filme incontornável na história do cinema de Hollywood, apesar de à data de estreia ter dividido a crítica. No entanto, o sucesso de bilheteira e as quatro nomeações aos Óscares, incluindo a de melhor realizador, chamou a atenção de todos. Hoje é quase unânime para a crítica internacional que Psico é um dos melhores filmes de Alfred Hitchcock e uma obra de arte do cinema americano.
Realizadores, filósofos e artistas identificam em Psico o advento de uma nova linguagem fílmica; um momento singular de autorreflexibilidade moderna alicerçado nos elementos tradicionais da narrativa clássica da Hollywood de então; ou se quisermos, uma encarnação do moderno projetado pela primeira vez na tela das massas.
Destaca-se, desde logo, a célebre cena do duche protagonizado por Janet Leigh. 3 minutos (78 fotogramas e 52 cortes) são suficientes para o olhar do espectador ser forçosamente conduzido a percorrer a ténue fronteira que separa a imobilidade da morte e o movimento no cinema, numa premonitória tendência que Miriam Hansen apelida de “modernismo popular” e Laura Mulvey descreve como uma sensação de novo a partir de um rearranjo do velho.
A morte de Marion Crane
A história adaptada do romance de Robert Bloch com o mesmo título dá-nos a conhecer a vida de Marion Crane, uma secretária do ramo imobiliário que rouba 40.000 dólares do escritório onde trabalha com o propósito de saldar as dívidas do seu amante, Sam. Entre o plano de fuga a caminho da Califórnia – morada do amante –, sob uma noite de tempestade, a protagonista decide pernoitar num remoto motel de beira de estrada (Bates Motel), onde pouco tempo depois acabará por morrer.
Tudo acontece na casa de banho do estabelecimento, enquanto a atriz toma descansadamente banho. Ao fundo e através de uma cortina translúcida que circunscreve o espaço da banheira podemos ver emergir uma figura aparentemente feminina munida da faca que desferirá abruptamente vários golpes sobre o seu ventre, provocando-lhe a morte. Na água esvai-se o sangue, correndo em direção ao ralo da banheira numa trajetória centrífuga contrária à orientação dos ponteiros do relógio. O fluxo leva a vida que acaba por cair naquele buraco negro sem fundo onde todos somos forçados a mergulhar, acompanhando o zoom in da câmara firmemente apontado ao ralo. Da escuridão emerge, em plano pormenor, a fixidez de um olhar sereno que confirma a morte da secretária.
A impressão com que se fica depois de rever várias vezes o filme e este plano, em particular, é que foi usada uma fotografia para transmitir a imobilidade do corpo – que, aliás, seria uma tarefa praticamente impossível a qualquer atriz ou ator suspender de maneira tão completa toda a mobilidade e trémula musculatura dos olhos e rosto num plano com mais de 25 segundos. No entanto, antes de ser apresentado o plano seguinte, cai do cabelo da protagonista uma gota de água numa abrupta demonstração de que o rosto imóvel é mostrado em “tempo real”.
Demoraria aproximadamente 26 horas até Janet Leigh, exausta, sem respirar ou sequer mover as pálpebras, conseguir imobilizar por completo o seu corpo enquanto o operador de câmara trabalhava em close-up, ajustando o foco à medida em que executava um movimento circular ascendente em órbita paralela com o eixo do seu olho e progressivamente recuava, denunciando por completo o rosto.
Laura Mulvey, em Death 24x a Second, analisa eximiamente este plano: “O paradoxo dessa fronteira incerta do cinema entre imobilidade e movimento encontra igualmente uma visibilidade fugaz. A imobilidade do cadáver lembra que os corpos vivos e moventes do cinema não passam de fotogramas animados, e a homologia entre imobilidade e morte regressa para assombrar a imagem em movimento” (2006: 87).
A imobilidade e o movimento no cinema
Desde o daguerreótipo até à L’arrivée d’un train à La Ciotat (Chegada do Comboio à Estação de Ciotat, 1896), dos irmãos Lumière, que o par imobilidade e movimento comunga de uma afinidade mecânica percebida em equivalentes visuais que traduzem e estendem o movimento da câmara; quer isto dizer que a verdadeira essência da imagem-movimento sempre partiu do aprisionamento da substância comum dos corpos moventes ou em movimento; ou, por outras palavras, da captura do movimento à mobilidade que lhe reside na génese. Tudo isto a partir de uma aliança estabelecida entre a estrutura do filme e a narrativa.
A morte como figura narrativa
Pode assim dizer-se que a narrativa encontra-se a priori dependente de uma força motora que lhe permite dar o arranque inicial – e romper com o estado anterior das coisas –, ao qual, por inércia, regressa sempre no final. Por isso, a morte tal qual o casamento são duas figuras narrativas inertes que se estendem ao cinema com o objetivo de perpetrar um fim, quase como se a imobilidade da unidade básica da imagem em movimento, o fotograma, se fundisse com a própria morte da história e, a partir daí, recuperasse a neguentropia da qual originalmente se afastou.
Acontece, por exemplo, com o último plano, imóvel, de Jean-Pierre Léaud de costas viradas para o mar fitando a câmara, em Les Quatre Cent Coups (Os quatrocentos Golpes, 1959), de François Truffaut. A propósito deste plano Raymond Bellour, no capítulo The Time-Image da obra Cinema and The Moving Image escreve: “É uma forma de devolver o filme ao seu esqueleto, como um cadáver às cinzas” (2018: 102).
Se por um lado o cinema disponibiliza mecanismos que permitem à narrativa afastar-se dessa inércia que marca o momento inicial do filme, por outro, a narrativa oferece recursos ao cinema através dos quais a imobilidade secreta do dispositivo se projeta para além da sua própria forma. Daí a força totalizadora do fotograma, que ao incluir a narrativa na sua própria representação gráfica, assume uma inflexão quase literal que supera a sua dimensão potencial de autorreferência.
É neste nível que a dimensão fotogramática do plano de Janet Leigh, em Psico, questiona o movimento no cinema. Inevitavelmente, a imobilidade do plano conduz-nos até à noção de fotográfico e à ideia de “imobilidade da fotografia”.
Em Ontologia da Imagem Fotográfica André Bazin conclui que a fotografia não apenas é o objeto, como também o próprio modelo do qual é representação e, por isso, modelo livre das condições de tempo e espaço que o governam. É graças ao poder deste processo mecânico impassível que a fotografia é capaz de aprisionar o tempo (ao invés, da arte que cria a eternidade), resgatando-o da sua própria corrupção.
Segundo Gilles Deleuze, falamos do campo da imagem-tempo que ao contrário da imagem-movimento, atua ao nível da perceção-pensamento, ao invés, da perceção-ação, como se a protagonista não apenas produzisse uma resposta motora face à ação, mas também perdesse o controlo frente à escolha dessa mesma ação, fazendo migrar para o interior do filme as indecisões que marcam o espectador.
É certo que a imagem-movimento não desaparece, no entanto, passa apenas a existir como ponto de partida. A partir daí a modalidade temporal inaugura um espaço subjetivo que acabará por convocar o espectador. Em Psico, esta relação é ditada pelo movimento da câmara e, em última instância, pela própria montagem.
Retomemos novamente a análise do plano de Janet Leigh e, sobretudo, à importância do olho como sinistra pontuação do fragmento na sequência do duche: o primeiro olho surge da metáfora criada pelo ralo da banheira para onde é drenado o sangue daquela morte, conduzindo o nosso olhar até ao olho inerte da protagonista sumamente privado do exercício anatómico mais elementar, tão próximo que parece interpelar-nos, para não dizer que todos nós nos sentimos implicitamente reproduzido por esse olhar. Mais do que em qualquer outro momento do filme, o olho do espectador submerge num efeito de choque criado pela metáfora da montagem apesar de estarem isentas do plano evidências claras do assassinato.
A imobilidade e o tempo
Psico é uma demonstração de como o refazer ou o cristalizar da vida em coisas ou imagens desestabiliza o enquadramento de um tempo histórico, à semelhança do que acontece, por exemplo, em La Jetée (1962), de Chris Marker. Isso é particularmente visível no momento mais celebrado do filme quando a estase sequencial de fotografias é por breves momentos suplantada pela ilusão cinemática de olhos humanos que se abrem como se saíssem do sono.
Essa aparência de vida animada (também criada por imagens estáticas) parece quase uma resposta direta a Psico. Esta associação entre Marker e Hitchcock mostra-nos a forma como o envolvimento particular com o fundamento estático do movimento cinemático é parte de perceções mais profundas da experiência social contemporânea.
Para Jonathan Crary, “as trevas de Psico são as de um presente em que uma tentativa patológica de cristalizar o tempo colide de modo desastroso com o desenraizamento e anonimato da modernidade” (2018: 101).
Diríamos que o tempo é aprisionado num espaço semelhante a um museu e amplificado pelo conceito de taxidermia que perpassa o filme e que, desde o século XIX, tem sido descrito como um paradigma de “ressurreição” a partir do qual uma variedade de técnicas produz a ilusão de vida no que está morto ou inerte, quase como um vislumbre de intemporalidade no presente.
A nature morte – na qual pode bem ser incluída a morte de Marion Crane – lembra-nos que esta não é uma forma simbólica de sobrevivência face à capacidade destrutiva do tempo, mas a apreensão de um real fora de uma dualidade de vida/morte.
José Pedro Ribeiro
Estudante de Mestrado em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa.
Referências:
BELLOUR, Raymond (2012). Between-the-Image, The Time-Image, pp. 99-123.
CRARY, Jonathan (2018). 24/7: O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, Lisboa, p.101.
DELEUZE, Gilles (1986). Cinema I: The Movement Image, Londres, p. 200.
MULVEY, Laura (2006). Death 24x a Second. Stillness and the Moving Image, Londres.