Um gancho de ferro entra no enquadramento. Sai. A câmara está frente a Candy (Jean Peters) e Skip McCoy (Richard Widmark), à volta de um abraço seguido de beijo, numa sedução que o desejo e outros interesses não largam. O filme é Pickup on South Street (Mãos Perigosas, 1953), do eruptivo Samuel Fuller. O filme valeu ao realizador muitos dedos apontados porque seria pretensamente anticomunista (a época fervia com o tema da Guerra Fria), no entanto, este teor político não é o que mais interessa aqui. Está presente na trama e nos andamentos das personagens, dependentes de uma intriga que envolve realmente comunistas, passagem de informação militar a agentes, polícias em alerta, uma bela mulher e um ladrão.

Richard Widmark encarnará Skip, o ladrão, com o seu rosto marcante, meio palhaço, olhos pequeninos e sarcásticos, a encarnação do herói perverso a lembrar papéis terríveis como o memorável secundário, de Kiss of Death (O Denunciante, 1947), de Henry Hathaway. Jean Peters, em Candy, é a afirmação de uma actriz sedutora, amiga de Marilyn Monroe (que foi indicada para este papel), aqui meio frágil, a deixar-se quebrar no desejo, a juntar corpo e emoção.
Mas voltemos ao gancho em questão que ora entra, ora sai do enquadramento, com Candy e Skip a centralizarem a imagem. Vemos ainda cordas, elementos da engrenagem que o prendem; o plano não quer ficar limpo. Aqui está a nota característica da força do impetuoso Fuller, cineasta que aponta a câmara às coisas e as deixa sob alvoroço.
Fixa-se o fotograma com o beijo mais o gancho lá dentro, fica enquadrado, era o certo, a sua presença impunha-se até pela forma como aparecia e desaparecia; o encanto de parar a imagem é único. O peso deste fotograma com a peça de ferro a intrometer-se sempre oscilou na minha cabeça, tornando-se uma figura metonímica que parecia poder albergar o filme numa força que juntava coisas de naturezas diferentes que se atraíam.
É neste ferro, neste peso do ferro, que parecem mergulhar as mãos de Fuller, as mãos perigosas de um realizador controverso, muito noir e muito negro, lírico e lancinante que vai fazer de Pickup on South Street uma peça pesada, bem composta, que começa de imediato a crescer numa trama nua e crua, com os excessos e arrebatamentos temáticos e formais típicos do realizador. Filme nocturno com traços documentais de uma Nova Iorque urbana e sombria (pelos vistos filmada em décores em L.A.), sob influência de Roma, città aperta (Roma Cidade aberta, 1945) de Roberto Rossellini, a projectar-se num desejo do realizador de realismo social dos bafonds onde submergem os marginais, caros heróis de Fuller.
O realizador leva-nos em altas medidas de emoção com desejo e brutalidade, por entre voltas e contravoltas, numa intriga, mais ou menos policial e noir, com notas de melodrama que embate na violência e na compaixão.

A questão deste fotograma que se implica em ameaça e desejo parece surgir, implicitamente, no início do filme, no encontro entre Candy e Skip. Nas primeiras imagens, embalados pelo movimento de uma carruagem de metro, aproximam-se. A transpiração é visível, as intrometidas mãos de Skip, ladrão em actividade, tacteiam a mala da jovem e roubam-lhe a carteira; não se beijam mas podiam. A proximidade e um certo ardor traduz-se nos corpos num acertado recorte de planos.
Candy é uma incauta pombo-correio de uma rede de espiões comunistas, (amante de Joey, agente comunista, interpretado por Richard Kiley) que no momento está a ser perseguida pela polícia e torna-se por sua vez vítima do carteirista em hora de serviço. Um microfilme com informações de peso, de confidencialidade extrema, passa da carteira de Candy para as mãos de Skip. Tudo a mover-se, numa certa medida, com o fotograma do beijo com o gancho, com a mesma paridade de desejo e a violência do gesto, vertido na necessidade e ignorância – pequeno ladrão e vítima desinformada, ele livre que nem um pássaro, ela amante inocente.
Fuller acorda Jean Genet, lembra Olivier-René Veillon em Journal d’un voleur: “Nomeio violência a uma audácia em repouso apaixonada pelos perigos. Pode distinguir-se num olhar, numa forma de andar, num sorriso, e provoca em si um alvoroço. Esta violência é uma calma que vos agita.” Um fotograma (e um filme inteiro) que possui esta ousadia, esta agitação, como um movimento que procura acordar qualquer imprudente adormecido e atirá-lo para essas cordas pendentes, para o gancho de ferro que entra no enquadramento e dinamiza o plano, para todo este quadro que recompõe o desejo, a par da violência, e que provoca e fixa o olhar.
Um mundo noir, ao singular estilo de Fuller, que coloca no centro o que interessa: personagens meio perdidas, frágeis até doer. Para o realizador “o protagonista do filme negro é um sujeito em negativo, muito mais que um sujeito negativo.” Fuller, revela assim os seus maus da fita, manuseando bem as doses que melhor os podem reflectir, obscurecer, iluminar.
Em Pickup on South Street as personagens movimentam-se numa rede que se organiza com polícias e espiões a correrem atrás dum malogrado microfilme roubado; a trama é muito simples mas a forma é mais complexa.
O que faz o inteligente acaso é ligar Candy a Skip, enquanto jogam aos seus interesses. Recuperar o microfilme, esconder o microfilme. Eles estão desligados da real importância e valor deste elemento, até o ficarem a saber. A grande ironia estende um perigoso tapete para brincar a este corrupio de gente atrás da peça furtada que de arrasto unirá o casal.

O fotograma formar-se-á no momento em que Candy vasculha no casebre de Skip à procura da sua carteira roubada e vai ser surpreendida por ele e, pronto, entre agressão e pulsão, o impulso vai atirá-los para os braços um do outro, magnetizando um abraço que se dualiza em violência e congela em imagem potencial.
As cordas e o gancho que servem funcionalmente a Skip para esconder os seus furtos e abastecer-se de cervejas que refrescam nas águas, sob o casebre portuário, intrometem-se no fotograma motivador que espelha uma visceralidade que compõe e decompõe a imagem. Como se o fotograma se desenvolvesse através duma engrenagem estabelecida por um movimento convulsivo que tem a mecânica que Fuller sabe bem criar; a violência a sucumbir ao abraço, o abraço à violência.
E depois há Moe, a velha mulher, interpretada pela incomparável Thelma Ritter, vendedora de gravatas e informadora da polícia, recebendo uns dinheiros por isso, aumentando os ganhos apontados no seu caderninho de contas. Ela sabe tudo do submundo e conhece a fundo os procedimentos de cada criminoso. Venderá Skip à polícia. Tudo isto, porque precisa de dinheiro para morrer dignamente. Moe tem um sonho, quer ter um enterro bonito e elegante.
Não há maior arrepio do que a presença desta personagem, não há motivação mais nobre como a desta heroína trágica – fabulosa inscrição de talento com uma representação intocável. A voz dela ecoa num tom meio agudo que silva aos ouvidos e cria um magnetismo directo, arrasta o discurso, e arrasta-nos também no momento sublime em que pede para a libertarem da vida.
Será Moe que vai provocar o fotograma do beijo e do gancho, vai contribuir para este segundo encontro de Candy e Skip porque informará a jovem da morada dele e juntará estas duas almas. Há ainda outra personagem secundária pelo meio que vale a pena destacar, neste trânsito de passagem de informação – Fuller trata muito bem os secundários -, que é Relâmpago Louie (Lightning Louie, pelo actor Vic Perry, que tão bem ocupa o plano), que dará a Candy o nome e morada de Moe, recolhendo o dinheiro da informação fornecida com os pauzinhos chineses com os quais come sofregamente arroz duma taça. Outro momento que não escapa a Fuller, é só um gesto, mas que gesto.
Christa Fuller, ex-mulher do realizador, fala de uma vontade deste em querer voltar ao primitivismo, a qualquer coisa de original, ligando-se a um pensamento de um cinema: “que se pensa a si mesmo e que se torna o olho do mundo – muda de filme para filme, mas basicamente permanece o mesmo.” Um olhar esteticamente exaltado e sempre com um comprometimento dramático que se agarra invariavelmente a uma violência de conteúdo. É conhecida a afirmação de Fuller, em Pierrot le Fou, (Pedro, o Louco, 1965) de Jean-Luc Godard (que tanto defendeu Fuller e elevou os seus filmes), que vê o cinema como um “campo de batalha: amor, ódio, violência, acção, morte… numa palavra: emoção.” É, em verdade este arrebatamento que anima o seu cinema, que o torna feroz, capaz de filmar amor e violência com semelhante timbre. Fuller, o escritor-cineasta, também foi jornalista e circulou nos submundos que aqui filma. Conhecia-os por dentro, escrevia-os, para ele a mise en scène era como a escrita, fazendo-se só com o acréscimo e o bom uso da câmara. Passar para génio da imagem foi fácil, parece ter vindo do tal instinto natural, primitivo; dicotómico, visionário e humanista, conservador e reaccionário, mas sempre autor até à medula.

É duma têmpera única que Pickup on South Street se faz, é com vigor que Fuller escala os planos – foge dos planos americanos, aproxima e distancia – o nosso fotograma enquadra-se com uma proximidade que implica e ao mesmo tempo deixa ver com recuo. A imagem manifesta-se com um movimento interno que estabelece uma cumplicidade que se anima pela própria força da sua representação. Martin Scorsese também se impressionou com Pickup, aquele estilo de violência tocou-o, o lado convulsivo e violento encaixavam-se na medida certa das emoções autênticas que o filme exibia, parecia-lhe nunca ter visto nada assim.
O fotograma alberga uma carga que se concentra no beijo, no gancho que congelou a meio, como centro energético, nó dramático e testemunha integrante da violência e paixão ali presentes, paradoxalmente tumultuosa e reluzente, com a negrura e a limpidez que perpassa pelo olhar ávido de Fuller; um cinema-corpo, um macrofilme fogoso, com o peso do ferro do gancho e a paixão dos corpos, e um cortante lirismo.