Aqui está ela, inerte, entre terra e água, entre o passado e o futuro, entre dois pontos no espaço, Wittenberge e Hannover, entre a vida e a morte, entre o desemprego e um futuro emprego no mundo lodoso do capital de risco. Ela é a protagonista de Yella (2007) interpretada pela majestosa Nina Hoss, mas ela também é a imagem de Nina Hoss que escolhemos isolar, recortar e enviar ao seu realizador, o alemão Christian Petzold. O intuito foi provocar uma conversa que procurasse drenar a imagem até à última gota ou, com Man Ray ou sem ele, até à última lágrima.
Petzold, nome maior do mais novo cinema alemão ou da designada “Escola de Berlim”, está aqui em trânsito, entre o seu amor confesso por fotografias do cinema e pelas imagens movediças e fascinantes dos movies, nomeadamente os filmes negros e de terror americanos. E pelo giallo, sobretudo de Dario Argento, apesar do grande filme de horror para este alemão ter saído dos pés de Grosso e Del Piero, no dia da filmagem daquele plano de Yella. Independentemente das boas e más lembranças futebolísticas que a imagem lhe suscita, Petzold está em família, próximo do universo de dois mestres, Hartmut Bitomsky e Harun Farocki, professores e parceiros com quem se iniciou na arte das “imagens em movimento”. A via encontrada foi a fotografia e voltou a ser assim aqui, nesta conversa a quatro, que teve o still como estranho objecto de desejo e de mistério. E foi fácil puxar para a conversa o título do grande filme em cartaz neste momento: o seu mais recente, Undine (2020).
Luís Mendonça (LM) – A primeira coisa que gostava de lhe perguntar relaciona-se com o que disse na resposta ao nosso e-mail com o convite para esta conversa: que os film stills são um grande tema. Podia discorrer um pouco sobre esse seu interesse por film stills, porventura centrando-se em como o still pode ser um tema interessante para alguém que trabalha com imagens em movimento?
Penso que é algo que vem de um tempo em que era muito, muito novo, apenas uma criança. Havia salas de cinema na cidade e, à entrada, havia vitrinas, com fotografias de filmes que não podia ver porque era demasiado novo. Imagens de mulheres seminuas e homens com pistolas. Tinha 8, 9 anos. Eram stills de clássicos, que eram expostos nas vitrinas para promover a sessão. Estas imagens podem ser encontradas, nos dias de hoje, em arrecadações de coleccionadores. Eles têm esses stills dos filmes dos anos 50, 60 e 70. Até aos anos 70, pelo menos – creio que The Godfather (O Padrinho, 1972) ainda tem desses stills. Mas, hoje em dia, já não há fotógrafos de cena (still photographers). Eles custam demasiado dinheiro e custam tempo. Posso falar por experiência própria: quando estás a rodar e terminaste uma cena, o fotógrafo de cena aparece e tens de organizar a cena de novo com os actores e com a iluminação… Faz-nos gastar uma hora, uma hora e meia. Toda a gente diz: “vamos mas é tirar o still da cópia do filme.” Porque hoje, com o digital, é fácil de tirar e é um material com qualidade. Por isso, deixámos de ter essas clássicas fotografias de cena. Acho que perdemos algo com isto.
Eu, por exemplo, guardo um still de um filme de Don Siegel, The Killers (Contrato para Matar, 1964), com John Cassavetes e Lee Marvin. É um still em que vês Lee Marvin. Foi alvejado três, quatro vezes. O sangue que lhe sai do peito é verdadeiramente fantástico, em technicolor. Na mão, tem uma mala com dinheiro. E depois há Angie Dickinson seminua, por detrás de uma janela, e ainda Ronald Reagan… Esta cena não existe no filme, é como uma pintura do século XVI ou XVII, onde punhas toda a história numa única imagem. Mas os filmes não são assim. Os stills servem para nos lembrar da arte medieval ou do Renascimento. Gosto destas imagens, mas elas já não existem mais.
LM – É o poder de síntese da imagem fotográfica que o fascina?
Como realizador, penso: “como é que posso ir desta imagem para esta imagem, deste take para este take?” É uma montagem no tempo. Depois, vemos estas fotografias de cenas e são como pinturas antigas. Pensa-se numa única imagem. Temos duas artes, dois pensamentos. O filme é montagem e nada mais: um mais um, como dizia Godard, não é dois, um mais um tem de ser três. Duas imagens fazem uma terceira imagem. Mas, nestes velhos stills, o cinema referencia a pintura do século XVI, mas de uma forma mais moderna. Para mim, o cinema é muito velho – tem algo que ver com contos, canções antigas, mitos, pinturas – mas, ao mesmo tempo, é tão moderno e melhor que as outras artes… Gosto destas duas coisas que podemos sentir em vários filmes: muito velhos e muito, muito modernos – longe de nós.
Ricardo Vieira Lisboa (RVL) – Recordo-me de um filme que fez para o Centro Pompidou [Où en êtes-vous, Christian Petzold (2018), co-realizado por Christoph Hochhäusler] com frames tirados de The Wrong Man (O Falso Culpado, 1956) de Alfred Hitchcock. Foi esta uma espécie de homenagem aos tais filmes que não pôde ver quando era criança ou foi mais um filme de homenagem a Hartmut Bitomsky?
Fui aluno de Bitomsky e também assistente dele. Harun Farocki também trabalhava de uma maneira parecida. Hartmut fez filmes sobre a morte no cinema, os lugares de rodagem no cinema, o estilo documental – acho que o título era The Cinema and the Wind and Photography (1991). Fui seu assistente. Gosto que ele, para falar de cinema, não use as sequências dos filmes, como citações, ao invés ele faz fotografias das sequências. Não são bem stills como este de Yella (2007). São como um pequeno filme, em que podemos ver uma pequena mudança de certa expressão do rosto para outra. Tens de regressar à fotografia para compreenderes algo sobre o cinema. O cinema de Bitomsky foi como um laboratório onde ele pensou assim e nós fizemos parte desse pensamento sobre o que é o cinema, o que é a natureza, o que é a morte… Gostei disto.
Fiz esse filme com Christoph Hochhäusler para o Centro Pompidou. Era melhor ter uma conversa sobre fotografias das sequências, porque, assim, o tempo é nosso. Podemos dizer a nossa frase, depois mudamos de fotografia e temos outro tempo que não o tempo do filme. Podemos desconstruir, mas não é uma destruição da sequência; é uma desconstrução.
Esta imagem retirada de Yella é uma imagem que fizemos duas vezes: uma vez com o fotógrafo de cena, que estava lá, mas usámos a imagem retirada do filme.
Quando Harun fez um filme sobre Auschwitz chamado Bilder der Welt und Inschrift des Krieges (Imagens do Mundo e Epitáfios da Guerra, 1989), ele usou sequências filmadas e fotografias, fazendo um enquadramento novo nas imagens com as suas mãos. Mostrar algo com um novo enquadramento. Desconstróis, mostras algo, sublinhas algo, mas não… não fazes como a minha professora de Alemão na escola… Ela destruía os poemas quando os analisava [risos].
Esta imagem retirada de Yella é uma imagem que fizemos duas vezes: uma vez com o fotógrafo de cena, que estava lá, mas usámos a imagem retirada do filme, para expor em vitrinas ou para o dossier de imprensa. Era importante [o fotógrafo estar presente]. Penso que a rodagem durou 35 dias. Tinha dinheiro para o fotógrafo de cena para cinco dias. Ele era dispendioso e consumia tempo. Decidi, para esse dia, que ele tinha de estar. Há a água, a mulher, há alguma coisa assustadora… Ele chegou e fez as suas fotografias. Eram brilhantes do ponto de vista técnico, só que não contavam a história que este still, retirado da cópia do filme, nos conta. Para a Nina, era muito importante que ele estivesse lá. Ela disse: “Isto deve ser um momento importante: o fotógrafo de cena está cá…” – [pelo facto de ele estar cá] começamos a reflectir sobre o que se está a passar.
Há tantas associações que podemos fazer quando alguém está a sair da água e se deita na areia. Há Robinson Crusoé, há Tom Hanks em Cast Away (O Náufrago, 2000). O que é que estão a fazer quando pensam que estão mortos, mas abrem os olhos? Porque é que estão frequentemente em ilhas? Vi o último filme de Josef von Sternberg [Anatahan (A Saga de Anatahan, 1953)], acerca de soldados japoneses numa ilha. São sobreviventes também, estão estendidos na praia, estão numa ilha durante vinte anos ou assim e não sabem que a guerra terminou.
LM – Gostava de voltar à presença do fotógrafo de cena nesse dia de rodagem desta cena que aqui trazemos: era como se ele estivesse a desempenhar um certo papel de fotógrafo forense para si e para Nina Hoss?
Isso é muito bom! Naquele momento, um crime sinistro aconteceu e o fotógrafo forense veio para fazer imagens para o tribunal e para a polícia – é como isso, sim!
Tive uma pequena crise nesse dia, foi há catorze anos. Era alguma coisa que tinha que ver com o Mundial; com o facto de a Alemanha ter jogado na meia-final [do Mundial] contra a Itália. Perdemos… [risos]
Então, estava lá e tive uma pequena crise por causa deste filme, Carnival of Souls (O Circo das Almas, 1962), que é um dos meus favoritos. Vi-o quando tinha 16, 17 e 18 anos. Não o revia há dois ou três anos porque tinha planeado fazer Yella e não queria ver o filme de novo, mas há tanta, tanta coisa de Carnival of Souls na minha cabeça…
Nina perguntou-me: qual o assunto deste filme? Ela ria-se, porque nós estávamos a pensar neste momento: o que se passa aqui? A personagem saiu da água, está estendida na praia e sabemos, realizador e actores, que está morta. No momento em que morre, ela vê o filme de uma vida que a seduz, que ela desejava, não o que se passou.
Este foi o momento entre água e terra, entre vida e morte, entre sonho e realidade… é um momento osmótico.
Era muito importante que, quando abrisse os olhos, visse alguma coisa que nós não vemos. Era só isso. Ouvimos um corvo, nesse momento. Depois há o vento a bater na árvore. Nós nunca vemos o corvo. É só um sinal acústico. Ela ouve o corvo, procura um corvo que não vê – ela está numa bolha, na bolha de um sono agonizante. O nosso filme é o retrato de alguém que está nesta bolha onírica. Não estamos com ela, lá dentro.
Então, quando abre os olhos, ela não olha para nós, mas está muito próxima de nós, está a ver algo atrás de nós que não conseguimos ver. Enfim, não estamos dentro da sua bolha, mas estamos num momento de osmose, em que não conseguimos tocar ou ouvir ou sentir algo.
Este foi o momento entre água e terra, entre vida e morte, entre sonho e realidade… é um momento osmótico. Podemos reflectir sobre isso hoje, a propósito desta imagem.
LM – Falava de Carnival of Souls. Foi, de facto, um filme que nos passou pelo espírito quando revimos Yella. Isto é algo que tem em comum com o saudoso Harun Farocki: o amor por filmes americanos, em especial série B. O que é que o seduz nesses filmes em específico e, já agora, terá mostrado algum filme à equipa tendo em mente a produção deste preciso momento em Yella?
Tenho cadernos onde apontei todos os filmes que vimos em conjunto durante a rodagem. Estávamos sempre a ver filmes, mas não à tarde, por causa do Europeu de Futebol [risos]. Não vimos Carnival of Souls, porque não queria isso, por causa dos actores. Vimos algo sobre dinheiro no cinema. Era o nosso tema. Creio que vimos Charley Varrick (Ferro em Brasa, 1973) de Don Siegel, por causa do dinheiro, dinheiro que não vale grande coisa, porque é da máfia. Os assaltantes anteriores querem recuperar o dinheiro, mas os novos assaltantes não o querem mais.
Harun [Farocki] realizou um documentário, Nicht ohne Risiko (Capital de Risco, 2004), sobre o capitalismo moderno. Eu usei os diálogos das negociações nesse filme. Harun foi professor em Viena, na escola de artes, e mostrou aos estudantes as negociações em Yella, sendo que só depois mostrou as negociações no seu filme. Os estudantes pensavam que o filme dele era ficção e que Yella era um documentário.
LM – Também penso que essa é a ordem certa. Via os filmes e pensava em como eles foram mostrados aqui, em Lisboa, no Goethe-Institut, na ordem errada: primeiro o documentário e depois o seu filme. Porventura a ordem inversa é mais interessante, mais disruptiva.
Creio que tem algo que ver com o facto de no documentário as personagens quererem ser estrelas, mas são fantasmas do capital. Estão ali, nem estão propriamente numa localidade, mas numa sala de conferências de um hotel, fora da cidade, numa terra de ninguém. Os nossos actores, vivendo em Berlim e em Paris, têm uma verdadeira vida social. Quando interpretam, querem fazer-se passar por fantasmas. A sua direcção é “queremos ser fantasmas”, ao passo que os fantasmas do capital de risco dizem: “queremos ser reais”.
LM – Os negociadores, em Farocki, querem ser actores, ao passo que aqui, no seu filme, os actores querem ser negociadores.
Sim!
Daniela Rôla (DR) – Estava a pensar no filme de Farocki e, quando eles estão na pizaria, parecem-me tão deslocados…
Lembro-me disso, sim! Eles estão sempre deslocados. Tentam usar a melhor roupa, fantásticos sapatos importados de Inglaterra e da Hungria, os “sapatos de Budapeste”… Usam óptimos after shaves. Eles querem ser reais, mas são fantasmas. É como o dinheiro. O dinheiro também está sempre deslocado, não tem lugar. O dinheiro destrói todos os lugares.
DR – E ainda há a linguagem que eles usam. Esse dito “Business English”. No fim, parece significar absolutamente nada. Muito global, mas perde o seu sentido.
O que gosto tanto no trabalho de Harun e das suas personagens – e também por isso sinto tanto a sua falta – é o sentido de humor. Mas sem cinismo.
Fomos mesmo melhores amigos até ao seu fim. Falávamos muito sobre este seu documentário e a pesquisa que levou a cabo. Ele dizia: procuro um grupo de alemães que é um pouco como uma nova burguesia. Não só por razões económicas, mas também por ouvirem óptima música, fumarem fantástico tabaco para cachimbo, beberem o melhor café expresso… eles querem criar um estilo. Os alemães do pós-Segunda Guerra Mundial não têm estilo. Os nazis destruíram tudo. Estas são as personagens, os protagonistas de uma nova burguesia, uma burguesia da cultura – o filme de Harun foi, assim, uma recherche. Há também qualquer coisa dos russos ricos do século XIX, que falavam em francês. Estes homens, ao invés, falam inglês, um inglês sem sentido.
Depois de tudo isto, e a cada dia, eu quero destruir o capitalismo, mas eles são tão solitários. Esta solidão inspirou a minha ideia para Yella. Acho que este é o tema americano: a solidão.
RVL – Regressemos ao still. Quando revia Yella, notei que esta imagem de uma mulher, Nina Hoss, de corpo deitado e despertando é uma imagem que reaparece ao longo do filme sob diversas formas. Quando é que, na planificação do filme, surgiu este desejo de que esta imagem fosse reemergindo ao longo do filme? Foi algo que decidiu logo à partida, isto é, criou o filme à volta desta imagem?
Escrevi Yella juntamente com Harun [Farocki]. O nosso trabalho era sempre assim: eu tinha de escrever a história, estilo um conto com 20 páginas. Depois, conversámos sobre este conto: havia algumas ideias, mas acho que a história estava “ok” assim. Falámos disto como se se tratasse de música – em alemão diríamos que falávamos em Motive.
Na televisão alemã, vi uma conversa com uma actriz alemã, penso que era casada com o vocalista da banda Bon Jovi. Houve uma festa no jardim em Los Angeles e, durante a festa, o seu filho morreu na piscina. Nenhum adulto reparou que esta criança de cinco anos se havia afogado na água. Ela contava a história dessa noite na televisão e, a dado momento, quando pronunciou o nome do filho, foi como se respirasse com muita dificuldade. Como se se tivesse gerado uma espécie de identificação com o filho morto. Isso impressionou-me muito. Falei com Nina [Hoss] sobre isto. E eu e Harun começámos a construir um tema (Motive), o tema da mulher que sai da água. Penso que voltei a usá-lo um pouco em Undine.
Sair da água é também um renascer. Ela nasce de novo, tem uma segunda oportunidade. Estou a falar do rio Elbe, onde ela está a morrer. Tem algo que ver com a história da Alemanha: em tempos passados, foi um rio de infraestruturas, com navios. Depois, o rio Elbe marcou a fronteira entre o oeste e este da Alemanha. Começámos a fazer estas associações. Gosto de pensar assim, mas às vezes temos de parar, porque temos de fazer um filme… O motivo da mulher que tem este seu momento de morte, que não consegue respirar, que busca a vida num sonho – essa linha de imagens reflecte isto. Mas primeiro vem a história, só a seguir começámos a música, com repetições.
LM – Tenho outro still para si. Penso que se relaciona com esta imagem de Yella, por causa do tema da água, também é uma mulher a personagem e também está a morrer. Devo confessar que, quando estava a preparar esta conversa olhando para este still de Yella, a primeira imagem que me ocorreu foi mesmo esta famosa cena de Psycho (Psico, 1960) em que Janet Leigh olha directamente para a câmara, aparentemente morta, estendida no chão da casa de banho. Hitchcock compara visualmente o olho de Leigh com a água que flui pelo ralo da banheira. Será que, nesta sua imagem, procurava o mesmo tipo de “olhar abismal”?
Quando faço um filme, faço-o em conjunto com operadores de câmara e argumentistas. Fazemos um pequeno livro, um moodboard. E esta imagem estava lá! Quando fiz o filme Phoenix (2014), na capa deste romance pulp proveniente de França – um livro rasca que lhe esteve na base – havia uma imagem igual. Ela faz parte da minha vida. Foi algo muito importante para nós. Quando vemos Psycho, e a vemos assim, pensamos que, por momentos, esta imagem não representa a morte, mas que ela vê algo que nós não vemos. Mais tarde, com a faxina de Anthony Perkins, ela é apenas um corpo morto. “Poderá isto ser: a minha vida acaba aqui, como ladra?” Há tanto nela neste momento: a expressão do rosto, o seu olho, a água como lágrima…
DR – Parece uma fotografia de Man Ray.
Sim, Man Ray! Tenho a certeza disso! Hitchcock está sempre a brincar, como se não fosse um artista, mas ele sabia tanta coisa. Quando lês a entrevista com Truffaut, percebes como ele pensava em Ulysses, de James Joyce. Tinha esta ideia de fazer um filme sobre um dia na vida de um tipo. Este era o seu sonho, como no romance de Joyce. Ele sabia tanto, mas escondia a sua intelectualidade porque vivia em Hollywood.
DR – Nina Hoss, como Janet Leigh nesse still, parece estar a olhar para nós, partindo assim a quarta parede. Mas a quarta parede só se partiria se ela estivesse viva. Será que na imagem de Yella a quarta parede é partida?
É uma questão interessante. Quando, na vida, estamos a conversar com alguém e essa pessoa não olha directamente para ti, não ficas apenas irritado, começas a entrar numa grande crise. Apetece-te dizer-lhe: “Estou aqui, olha para mim!” Um pouco como James Dean a discutir com o pai [em Rebel Without a Cause (Fúria de Viver, 1955)]: “Pai, estou aqui, olha para mim!” Ele não quer vê-lo! É uma situação muito difícil. Para mim, nestes momentos, de Janet Leigh e de Nina Hoss em Yella, a quarta parede somos nós, mas elas não olham para nós, pelo que nos sentimos como fantasmas, não temos mais qualquer identidade. Entramos, assim, numa crise em plena sala de cinema. Isto é algo que acontece aqui. Não fazemos parte desta audiência da quarta parede, numa sala de cinema, porque os actores estão a interpretar para nós. Pagámos, queremos ver algo, eles aproximam-se, querem ouvir-nos a rir e a aplaudir. Mas Nina Hoss e Janet Leigh não precisam mais de nós, elas estão no seu próprio universo. Entramos, assim, num estado de irritação e de crise, enquanto plateia.
Por causa disto, frequento as salas de cinema e não faço parte do público do streaming, porque nos podemos sempre levantar e falar, mas no cinema isso não é possível. Estamos em choque no Psycho, porque há algo que não compreendemos e este mundo não precisa de nós. No filme dos Lumière, L’arrivée d’un train à La Ciotat (A Chegada de um Comboio, 1896), quando o vemos hoje, percebemos que o comboio não vem na nossa direcção, como diz o mito segundo o qual as pessoas da primeira sessão de cinema tinham medo que o comboio as atropelasse. O comboio passa ao lado, longe de nós. Para mim, é como se este comboio também não precisasse de nós, sendo parte de um mundo. Gosto de pensar assim.
DR – Pensávamos também na morte de Janet Leigh, como a morte dela é uma morte “limpa”. Em contrapartida, a morte de Yella é uma morte “suja”, com toda a lama em volta dela. Só depois desta morte potencial é que ela, aparentemente, entra num mundo limpo, feito de hotéis, salas de reunião, negociações, venture capital. Isso levou-nos a pensar numa contraposição entre sujo e limpo.
Sim, compreendo. Na altura tinha lido com a Nina um romance gráfico, Ghost World, de Daniel Clowes. Há duas jovens, uma intelectual e a outra muito bonita. Elas são alunas numa escola. A rapariga intelectual não tem experiência sexual, mas está sempre a falar, enquanto a amiga loira vive rodeada de homens. A loira diz para a intelectual que ela deve masturbar-se, que isso é melhor para ela, relaxar, deitar-se na sua cama, fechar os olhos, construir para si própria uma imagem, uma história erótica, masturbar-se, e aí o mundo torna-se melhor – e não precisará de falar tanto. Esta rapariga está a construir um mundo, nesta história, ao qual ela pertence. Uma piscina, mas tudo neste romance gráfico, na imaginação dela, é muito limpo.
A imaginação é como um estúdio, como estas séries dos Estados Unidos, como, por exemplo, a série Two and a Half Men, tudo muito limpo – um sofá, uma televisão – não é físico, não há vida. E isto é o que acontece na fantasia dela – tudo é demasiado limpo. Não há demasiadas pessoas, não há multidões, não há trânsito. Mas em certos momentos há um lado físico que aparece – a água, o vidro, começam a surgir no filme – esta é a crise do filme, a crise dos sonhos dela, porque neste momento ela deixa de controlar os seus sonhos. Era esta a ideia.
RVL – E as formas subtis que utiliza para nos dar conta de que há algo de estranho naquilo que acontece depois do acidente – a forma como as pessoas falam, como se movimentam, a forma como muitos pormenores da sequência inicial se repetem em diferentes contextos. Mas, voltando ao still, vejo nele um elemento de humor – o facto de ela permanentemente usar a mesma roupa (a mesma blusa, o mesmo casaco), mas carregar consigo uma mala cheia de roupa. Apesar de a roupa estar suja, coberta de lama, ela continua a usá-la durante todo o filme, até ao fim, sem nunca trocar de roupa.
Por altura da estreia do filme, na Berlinale, tive algum receio. Ser um realizador alemão na Berlinale, com público alemão, é algo perigoso, porque nós nos odiamos [risos]. A dado momento no filme, Yella diz “quero ir até à cidade para comprar roupa”. Deve ser por volta do minuto 82, já próximo do final do filme. Estava lá com a Nina e toda a plateia começou a rir nesse momento. Virei-me para a Nina e disse-lhe; “nunca mais quero vir à Berlinale!” [risos]
Era essa a ideia, a ideia de que, num sonho, usamos material que vamos buscar à realidade – por exemplo, o carro vermelho do ex-marido, o carro vermelho do novo amante; o fato do ex-marido, o fato do novo amante; a laranja do pai, a laranja do novo amante. Coisas que conseguimos ver enquanto público, alguém que está a trabalhar com ideias e imagens, um trabalho do sonho. Sigmund Freud usou esse termo, o “trabalho do sonho” (“dreamwork”). Steven Spielberg também usou este termo [risos]. Nos sonhos, não trocamos de roupa, porque somos uma câmara subjectiva. Nos sonhos, não há espelhos em que possamos ver-nos. Nos sonhos, não temos olfacto ou paladar, apenas há imagens. Daí existir uma relação estreita entre sonho e cinema. A minha vontade era matar aquela plateia, como o Luis Buñuel [risos], mas acabei por perceber que eles tinham o direito de rir, porque esta irritação de que falávamos, vermos alguém que não precisa de nós enquanto público. Naquele momento, o público percebe que está de volta, que voltam a precisar dele, que têm o direito de rir. Por isso, não voltei a zangar-me.
DR – Também parece estranho o facto de ela usar uma blusa vermelha. Para alguém no primeiro dia de um novo emprego, o esperado seria usar uma blusa branca, algo discreto. Algo parece não encaixar. Esta foi também a blusa que ela vestiu para a entrevista de emprego, mas há algo aqui que parece inadequado. Não parece ser a roupa certa para este emprego.
Sim, é verdade! Isto é algo que eu conversei com o Harun. Estes tipos da economia, masturbando-se imaginando mulheres com camisas brancas, com fatos parecidos com o fato da Kim Novak no Vertigo (A Mulher que Viveu Duas Vezes, 1958). Para nós, este aspecto era importante: a Yella vem da RDA, foi lá que cresceu. Ela tem uma imagem do capitalismo, e esta imagem do capitalismo é algo de semelhante a uma imagem publicitária – és livre, tens estilo, tens carros fantásticos, à noite há bares de hotel onde podes conhecer pessoas. Uma construção estética do capitalismo. Tal como a máfia faz uma construção usando The Godfather (O Padrinho, 1972). Porque são homens vulgares, mal-cheirosos, feios, mas a partir de The Godfather eles passam a ser aristocratas.
Ela vem da RDA e acha que, para além do rio Elba, existe o mundo do capitalismo, onde não precisará de ser responsável por ninguém – nem pai, nem marido com os seus problemas – pode simplesmente estar sozinha. Mas, na verdade, vindo ela da RDA, não sabe nada de capitalismo. Daí cometer o erro de levar o dono da fábrica ao suicídio. Por outro lado, não sabe o que vestir. Ela acha que a gabardine, a blusa vermelha, os sapatos, as pernas depiladas são suficientes. Por isso, ela causa-me alguma tristeza, tenho vontade de dizer-lhe: “Yella, regressa ao outro lado do rio”…
DR – Logo a seguir a este still, temos um falso POV (Point of View) em que Yella vê uma árvore que se move. A natureza é uma personagem recorrente nos seus filmes. O que representa para si? Não apenas neste filme, mas no contexto da sua filmografia.
Eu adoro os filmes de Ozu. Não sou religioso, mas os meus DVDs do Ozu são para mim um pouco como ir à igreja. Os stills de uma flor ou de uma bicicleta na praia não representam nada, não representam uma história, mas são algo com existência própria. Uma bicicleta é uma bicicleta. Há neles também algo de triste, mas nada tem que ver com a história, não são uma metáfora. Para mim, o vento nas árvores é algo de parecido. Podemos dizer que é a alma dela a ir para o céu. Mas no momento da morte dela, as coisas ainda funcionam por si próprias, não precisam de nós. É algo que me deprime. Tenho sempre que dizer ao operador de câmara, Hans Fromm, que não é necessário que estas coisas tenham um significado. Têm que existir por si próprias. Um pouco como as naturezas-mortas de Morandi. Não têm que significar alguma coisa, todo o universo está dentro do quadro. Os operadores de câmara estão sempre à procura de um significado. No fim, temos 25 imagens de uma árvore, e a vigésima sexta é a imagem que procuramos. O meu director de fotografia Hans Fromm diz-me: “é esta!”
LM – Falemos um pouco de Undine (2020), o seu mais recente filme, que será exibido nos cinemas brevemente, logo que as salas de cinema reabram. Temos Undine e temos Yella, duas mulheres, dois filmes, duas personagens, levadas a dois renascimentos pela água, como já referiu. No último plano de Undine, temos um POV dela a submergir, num cenário (a ponte, o rio) muito semelhante ao de Yella, mas aqui – como vemos no nosso still – a personagem emergiu. De que forma podemos relacionar os movimentos nestes dois filmes, estas duas personagens, estes dois caminhos chamados Undine e Yella?
Sempre pensei que Undine fosse algo totalmente distinto, mas depois de concluída a montagem reconheci nele os mesmos temas. Não sei porquê. Mas acho que algo mudou. Quando fizemos Yella e os outros filmes com a Nina Hoss reflectimos sempre sobre esta relação entre o realizador, artista masculino, e a mulher da água. Falamos aqui de Hitchcock e das suas actrizes louras, desse desejo. É algo que temos que reflectir, não podemos fazer de novo.
Para mim existia esta grande diferença, porque tinha lido o romance de Ingeborg Bachmann, Undine geht, construído a partir do ponto de vista de Undine. Não se trata do homem a olhar para a corpo da mulher, mas sim do corpo da mulher que olha para o homem. Procurei fazê-lo a partir da posição de Undine. Penso que está em estreita relação com o trabalho que previamente desenvolvi com a Nina Hoss, durante mais de dez anos, porque ela pensa sempre a partir da sua própria posição, de tal modo que nos encontramos num discurso sobre uma relação, uma relação entre artista masculino e musa feminina, entre a história da arte e o cinema. Parte desta reflexão que fiz com a Nina transparece no meu trabalho com a Paula Beer.
DR – “O progresso é impossível” – esta é uma frase dita por Undine, a conclusão da sua palestra sobre o Humboldt Forum. Será que Undine está a olhar para Yella, será que um filme está a comentar o outro?
Acho que Undine está a dirigir o seu comentário a muitos dos filmes de hoje. Não gosto deste estilo de filmes baseados em best-sellers da literatura, não gosto das imagens nebulosas. Tentam fazer filmes “retro”. Na Alemanha começou-se a construir casas “retro”, casas que não são habitadas, trata-se apenas de um toque “retro”, presente na música, na arquitectura e também nos filmes. É isto que Undine critica, estas circunstâncias. Eu nunca me critico. [risos]
LM – Se recordo correctamente, Undine também diz, a propósito da arquitectura moderna, que “a função segue a forma”. Trata-se de algo consensual entre si e Harun Farocki, no vosso trabalho enquanto realizadores?
Sim, exacto. Como tudo aquilo que consideramos como parte da nossa identidade, há sempre um outro lado, um pouco “Dr. Jekyll e Mr. Hyde”. Por exemplo, o que disseram a respeito dos temas e economia presentes no filme – o Harun e eu estávamos a pensar como Bruno Taut e Gropius, por um lado na forma como construímos as nossas estruturas, mas simultaneamente comportando-nos como velhos românticos no modo como preenchemos essas estruturas. Ambos gostamos de melodramas e de musicais. Temos presente o estilo Bauhaus mas, no íntimo, adoramos sequências que escapam ao nosso controlo, um pouco como uma ópera. Adoro isso. Adoro o Dario Argento.
LM – Reparámos nisso. [risos]
Tradução: Daniela Rôla e Luís Mendonça