É função e responsabilidade da arte observar as coisas de perto, prestar atenção aos homens e aprender a não os julgar com demasiada precipitação. Neste caso, a ética determina a estética: a lei olha em plano geral, enquanto a arte usa o primeiro plano. Eis porque intitulei o filme “Close-up”. Ao observar Sabzian a partir de um plano geral, poderia imaginar-se um charlatão, mas graças a esses primeiros planos pôde exprimir pensamentos, problemas, medos que são alheios às preocupações da justiça.
Abbas Kiarostami
Em fase de pré-produção de Dinheiro no Bolso, projecto de filme em volta do universo infantil, Kiarostami leu um artigo numa revista sobre um homem, Sabzian, que estava preso por fraude, acusado de se ter feito passar pelo realizador Mohsen Makhmalbaf junto de uma família de Teerão. Kiarostami ficou especialmente impressionado por uma frase que o homem proferira numa entrevista: “Doravante sou um pedaço de carne de um animal que não tem cabeça e podem fazer de mim o que quiserem.” Nos dias seguintes, Kiarostami foi sendo perturbado por aquela sentença, até que abordou o produtor, Ali Reza Zarrin, no sentido de alterar o filme sobre o qual incidiria o financiamento, ao que o produtor terá acedido, seduzido pelos argumentos do cineasta. Ponto de partida, então, para a confecção de Close-up (1990), um dos objectos mais singulares e desconcertantes do cinema contemporâneo, um filme que questiona um conjunto de enunciados relacionados com a distinção entre verdade e encenação, ao colocar os intervenientes da fraude a interpretarem-se a si próprios, usando ambiguamente as linguagens do documentário e da ficção, e que permitiu a Kiarostami dialogar com o real, e no limite, promover-lhe alterações, reconfigurando a realidade e a verdade.
(…) Mas depois há momentos de enorme incerteza e um dos momentos que acho mais fantásticos deste filme e de todo o cinema é o encontro de Kiarostami na prisão com o aldrabão, o vigarista e que nós não sabemos se aquele é um encontro filmado a sério, se refilmado, se é um primeiro encontro realmente (…).
Jorge Silva Melo, na edição portuguesa em DVD de Close-up
Kiarostami tinha colhido na cena anterior, no testemunho de um dos filhos da família burlada por Sabzian, o local onde este se encontrava detido: a Prisão de Qasr, em Teerão. Sabzian entra numa sala, à direita vemos uma secretária com um funcionário e de costas, quase oculto no plano (no canto inferior direito), está Kiarostami. Duas barras assinalam a delimitação do compartimento relativamente ao local onde estava colocada a câmara. Sabzian é informado de que tem uma visita, Kiarostami levanta-se, eles cumprimentam-se. O establishing shot, o nosso querido fotograma, forma-se: os dois homens sentados no lado direito do compartimento e da imagem, acima deles a porta entreaberta, por onde entrara o protagonista. Enquanto Kiarostami se apresenta e relata a Sabzian como conheceu a sua história, o plano é preenchido pelo movimento de várias pessoas na sala, funcionários e outros detidos, que se estende num fora de campo de diálogos e outros ruídos, que quase se sobrepõem à conversa do primeiro plano.
Apesar das incertezas, se a cena corresponde ao que o filme procura induzir – uma entrevista registada com uma câmara oculta -, é o prólogo da demostração de um aparato humano ao serviço do cinema, uma disponibilidade de tudo e de todos para participar da ficção, um território de sonho e de artifício, uma imitação da vida onde coabitam Sabzian e a família enganada, os intérpretes secundários, incluindo agentes da autoridade. Kiarostami, em entrevista, cogita que os protagonistas aceitaram entrar no filme, mesmo sabendo que teriam de representar um papel negativo, “pois perceberam que a sua imagem ficaria impressa na película”: “para parodiar o cartesiano cogito ergo sum, poder-se-ia dizer tenho uma imagem, portanto existo”. Assim, o carácter escapista, fantasista, do cinema permite concretizar o desejo de nos tornarmos outros, “de ser o seu verdadeiro eu”, que serve tanto para Sabzian como para a família Ahankhan, que notoriamente não tinham vontade de serem apenas eles próprios. Uma das razões pelas quais Kiarostami “gostava mais de Close-up do que os seus outros filmes” é a sua identificação com estas pessoas, pois variadas vezes o cineasta se sentiu descontente com a sua personalidade, algo que lhe aconteceu desde a juventude, e afirmando que “gostaria de ter sido um outro que não foi”.
Com o tronco de Kiarostami inclinado na direcção de Sabzian, numa manifestação de interesse e de procura de empatia, o detido diz-se surpreendido com a visita do cineasta, assume conhecer os filmes dele. A partir do plano base, através de um zoom muito lento, quase impercetível, a câmara aproxima-nos das duas figuras, a grade da esquerda acaba engolida por esse avanço gradual e por uma ligeira panorâmica, quando Sabzian, depois de mirar o chão, responde à pergunta de Kiarostami, se há alguma coisa que ele possa fazer para o ajudar: “É capaz de fazer um filme sobre o meu sofrimento?”. Esta cena, pedaço de filme de dois minutos e meio, é uma miniatura que condensa toda a obra do cineasta, uma observação do Irão e da sua população, uma oportunidade de ponderar sobre o cinema, as suas possibilidades e as suas fabricações, mas também um dos seus motivos preferidos: a rodagem dentro do filme. Esta aproximação da câmara na direcção do rosto de Sabzian anuncia o tal conflito ético, o juízo da arte que o cineasta se propôs, uma radiografia das zonas cinzentas do verdadeiro intuito daquele homem.
Se o encantamento de Close-up provém, em grande medida, do seu carácter opaco, da dúvida permanente com que o espectador se debate, pelo desfiar de informações e de indícios, por vezes contraditórios, que tentam conduzir, manipular o espectador e prepará-lo para a manipulação seguinte, o enquadramento close-up do rosto do protagonista pesquisa os sinais e a verbalização de Sabzian. Um empreendimento irónico e quase paradoxal, reforçado pelo nível de identificação de Kiarostami com Sabzian, que o olhava como um artista capaz de criar belas mentiras, em oposição ao falsário resignado e abatido, que induz o espectador a acreditar numa verdade creditada por uma manipulação encenada pelos dispositivos de Kiarostami, o que reforça a ideia do espectador de cinema como uma entidade maleável e disponível para a crença (a suspensão da descrença característica da ficção).
Segundo Gregory Currie, para estarmos perante um documentário, as imagens terão de condicionar e suportar a narrativa; pelo contrário, quando a narrativa condiciona as imagens, estamos perante uma ficção. Ou seja, deve assim distinguir-se entre a imagem em movimento que contribui significativamente para a narrativa e a imagem que obtém significado através da narrativa. Close-up, como a vara de um funâmbulo, estilhaça estes limites ao cruzar reconstituições com cenas (aparentemente) documentais, sendo que a nossa percepção de cada uma das cenas vai sofrendo variações ao longo do visionamento do filme (com a contribuição das informações adicionais conferidas pelas entrevistas a Kiarostami), ao ponto de considerarmos que as cenas dos registos (nomeadamente o julgamento e o encontro entre Sabzian e Makhmalbaf), apesar de fazerem uso de elementos estéticos atribuíveis ao documentário, mais ficcionais do que as cenas em que Kiarostami reconstituiu os eventos, pelo peso atribuído à montagem, uma narrativa a ordenar as imagens, como este encontro dos dois homens na prisão, que podemos situar neste balanço, segundo Currie, no conceito híbrido da simulação, a meio de caminho entre uma concepção de vestígio (as imagens registadas) e testemunhos, uma ideia de simulacro que é outros dos mandamentos de Kiarostami, hábil em enriquecer estas recriações com trivialidades, que parecem colhidas da realidade.
A riqueza estética do filme, as mutações de um objecto poliédrico, não nos desviam da sua beleza, e apesar da crueza do dispositivo da câmara oculta, das aproximações às figuras a partir do plano médio de referência, a parte final da cena, iniciada na pergunta-pedido formulada por Sabzian, revelar-se-á pungente, um filme sobre a vontade indómita, o sofrimento de um homem, como se interpretada pelo arquitecto idealista, o Gary Cooper de The Fountainhead (Vontade Indómita, 1949), de King Vidor. O plano fica quase integralmente ocupado pelas cabeças e por uma porção do tronco das duas figuras, em mais um avanço do quadro, enquanto ouvimos as preocupações de Sabzian, curioso com o que escreveram dele, se o consideram um vigarista. Com o juízo da arte activado, Kiarostami pergunta a Sabzian porque é que confessou tentativa de fraude, ao que ele responde que parece fraude, mas não é. Os diálogos formulam gradações do conceito de verdade e um salto na troca de plano denuncia a montagem e aproxima-nos do olhar de Sabzian quando ele responde com o interesse real pelo cinema em oposição à aparência de fraude. Os homens olham-se, olhos nos olhos, e Sabzian por vezes esconde o olhar, talvez por embaraço, até que uma ligeira panorâmica e um zoom deixam o plano preenchido pelo rosto de Sabzian e com o desenho de uma parte dos óculos de Kiarostami, um close-up emocional para escutar um derradeiro pedido: “tenho um recado para o sr. Makhmalbaf, o filme dele Bicycleran (O Ciclista, 1989) é em parte meu”.
Bicycleran narra a penosa situação de Nasin, um afegão desempregado (com a esposa gravemente doente), que após uma tentativa de suicídio é forçado a aceitar a proposta de um empresário: o antigo ciclista deve participar de uma prova que consiste em pedalar ininterruptamente uma bicicleta durante sete dias. Dilacerante filme, então, sobre a exploração do sacrifício, da dor e do cansaço de um homem, Bicycleran, uma das chaves de Close-up: é a leitura da história pela personagem da mãe Ahankhan no autocarro que despoletará toda a trama, mas é principalmente nas intervenções de Sabzian no julgamento, em que os close-up de Kiarostami emparelham o seu sofrimento com o de Nasin, que coloca o espectador de uma ficção instalada na realidade numa deriva emocional, no território de um potente melodrama do cinema clássico americano tintado a technicolor: “Nunca tive a intenção de defraudar ninguém. Legalmente pode ser uma acusação adequada, mas moralmente não é. Tudo isto vem do meu amor pelas artes. Em criança, ia muito ao cinema. E com os meus amigos brincávamos a fazer filmes. Mas como não tinha meios tive que abandonar as minhas aspirações. Tornou-se uma obsessão. Um vigarista altera deliberadamente a sua aparência, chega num carro emprestado, com uma pasta na mão, para parecer convincente; e eu nunca fiz tal coisa. Não era minha intenção. (…) Quando estou deprimido ou preocupado, sinto a necessidade de expressar a angústia da minha alma e todos os meus sofrimentos de que ninguém quer ouvir falar. E então, quando dou com um homem que retrata todos os meus sofrimentos nos seus filmes, isso faz-me querer vê-los uma e outra vez. (…) foi por isso que este livro (O Ciclista) me consolou. Fala das coisas que eu gostaria de ter expressado.”