Não quero falar de mim, mas seguir de perto o andar do século, o rumor e a germinação do tempo.
Óssip Mandelstam, em O Rumor do Tempo
Escorra do momento a água turva –
O desenho amado não esbate à chuva.
Óssip Mandelstam, em A Pedra
Para se referir ao modo de relação com o seu tempo, o poeta russo Óssip Mandelstam recorreu a uma expressão que parece dever ser compreendida como implicando “ser todo ouvidos ao rumor do tempo”, uma vez que “é à custa de aplicar o ouvido ao crescente rumor do século (…) que uma língua nos é dada”[i].
Acode-me, aqui, antes de qualquer outra, uma remissão para as quatro páginas “oferecidas” por Roland Barthes a Mikel Dufrenne, sob o título de “O rumor da Língua” (1975)[ii], que depois foi utilizado para título do livro, de publicação póstuma (1984)[iii], em que foram coligidos Ensaios Críticos seus, nos quais a evolução do seu pensamento se afirma “na posição de quem faz qualquer coisa, e não de quem fala sobre qualquer coisa”.
A releitura dessas páginas poderá contribuir para a nossa adesão à convicção de Barthes segundo a qual “talvez seja no ‘cimo do meu particular’ que sou cientista sem o saber”. Na “ciência” da linguagem, trata-se, então, da irreversibilidade da fala: o que dizemos não se apaga, apenas pode ser corrigido por meio de acrescentos. A tentativa de anular o que já foi dito conduz a uma espécie de engasgamento, e assemelha-se, por isso, a uma falha do motor de uma máquina: “o engasgamento do (motor ou do sujeito) é em suma um medo: tenho medo de que a máquina possa vir a parar”. Já o seu bom funcionamento, a que em voz corrente chamamos cantar, “se revela num ser musical” que “é o ruído daquilo que funciona bem” que, na perfeição, não tem ruído – é o rumor das máquinas felizes que rumorejam. Considerada como utopia realizável na linguagem, seria “uma música do sentido”, um sentido “liberto de todas as agressões” que, enquanto experiência susceptível de ser levada a cabo no curso da vida, requereria um impulso, isto é, ser acompanhada de uma agitação interior, que muitas vezes designamos por emoção.
Tomando a revolução como acontecimento do qual se possa inferir e esperar a progressão para o melhor – servindo de sinal histórico indicativo, apto a demonstrar uma tendência do género humano – não se encontra manifestação mais profunda do que “o entusiamo dos espectadores”, para recorrer a palavras usadas por Immanuel Kant para o afiançar (…)
A experiência que Óssip Mandelstam convoca, perante “o defeito de nascença da fala da família”, esse “gaguejar familiar que confirmava que alguma coisa tinha havido para dizer”, um peso que se abate sobre si, “por não ter aprendido a falar, mas apenas a balbuciar”, encontra, no entanto, o seu impulso, ao apurar a escuta ao rumor do século: “A revolução, indissociavelmente vida e morte, não tolera que na sua presença se calunie nem a vida nem a morte”[iv]. A singularidade da sua atitude afere-se através da relação com o seu tempo, relativamente ao qual se propõe, fruto de uma inclusão subjectiva, própria daquele que toma parte nos acontecimentos, ver com os próprios olhos, sem deixar de, ao mesmo tempo, fazendo prova de um distanciamento necessário ao olhar crítico, ver com o olhar do século. Sabendo que tão difícil quanto a inclusão num tempo marcado pela ruptura com o passado, à procura de uma nova ordem, é viver a desolação que alastra ― “mas será quebrada tua espinha / meu século misérrimo e belo” sob a ameaça invasora do silêncio: “A ninguém digas que viste – / Esquece o pássaro agreste, / A prisão, a velha triste – / A tudo o que viste, esquece”[v] ― em que à poesia cabe um papel decisivo, nunca renegado.
Na procura da unificação do tempo histórico e do tempo da poesia, surge uma afirmação sem concessões da parte de Mandelstam: “A poesia clássica é a poesia da revolução”. Ora sustentada na lição dantiana: “Ao unir o dissonante, Dante mudou a estrutura do tempo; mas talvez também, por outro lado, se tenha visto obrigado a confiar na glossolalia dos fatos, no sincronismo dos acontecimentos, nomes e tradições que séculos separam, justamente porque percebeu a harmonia do tempo” [Conversa sobre Dante]. Ora relevando o exemplo de Pasternak: “Assim, gesticulando, gaguejando, esta poesia tece a sua malha, cambaleia, tomada pela vertigem, cheia de graça, e apesar de tudo só ela é sóbria, só ela se ergue desperta entre todas as coisas do mundo” [Da Poesia] [vi].
Tomando a revolução como acontecimento do qual se possa inferir e esperar a progressão para o melhor – servindo de sinal histórico indicativo, apto a demonstrar uma tendência do género humano – não se encontra manifestação mais profunda do que “o entusiamo dos espectadores”, para recorrer a palavras usadas por Immanuel Kant para o afiançar: “A revolução pode ter êxito ou fracassar; pode estar repleta de miséria e de atrocidades de tal modo que um homem bem pensante, se pudesse esperar, empreendendo-a uma segunda vez, levá-la a cabo com êxito, jamais, no entanto, se resolveria a realizar o experimento com semelhantes custos – esta revolução, afirmo, depara todavia, nos ânimos de todos os espectadores (que não se encontram enredados neste jogo), com uma participação segundo o desejo, na fronteira do entusiasmo”[vii].
André Malraux, ao considerar o papel do mito mobilizador – na esteira da teorização feita por Georges Sorel em Reflexões sobre a Violência (1908) – em oposição à ficção complacente, perante o arrebatamento produzido pelas imagens de um mito no qual as massas humanas sonham ser protagonistas, traz para a reflexão cinematográfica a questão das imagens activas, fazendo da cena um meio de expressão privilegiado, capaz de “exprimir a máxima intensidade com o mínimo possível de meios”. São palavras suas em Miroir des Limbes: “O que me interessa em qualquer homem é a condição humana; num grande homem, os meios e a natureza da sua grandeza; num santo, o carácter da santidade. E alguns traços essenciais, que exprimem menos um carácter individual do que uma relação particular com o mundo.”
O carácter excepcional, de obra única, do filme realizado por André Malraux, resulta não só das circunstâncias históricas que nele deixaram as marcas de inacabamento, mas também das condições de produção que fizeram dele uma obra atípica no contexto do mercado cinematográfico (…)
Por outro lado, o seu próprio envolvimento na guerra civil espanhola, em defesa da Segunda República, ao lado das forças da Frente Popular que, na sequência das eleições de Fevereiro de 1936, enfrentavam cada vez maiores dificuldades perante os Falangistas, constitui uma experiência de grandes repercussões na sua obra. Com a sublevação militar das guarnições sediadas em Marrocos, a 17 de Julho de 1936, a revolta comandada por Franco procurava espalhar-se pela Espanha, sendo que foi o levantamento popular que impediu na maioria das cidades o avanço da maré negra a toda a Península. Malraux, que chegara a Barcelona a 20 de Julho, tem como primeira missão, em Madrid, a criação e comando de uma força aérea republicana que, inicialmente, teve a designação de esquadrilha España e, mais tarde, adoptou o seu próprio nome. Quer o romance, Esperança (1938), cuja acção se situa entre 17 de Julho de 1936 e 20 de Março de 1937, quer o filme Sierra de Teruel (L’espoir, 1939), cuja acção decorre em dois dias dentro desse mesmo período, têm como protagonistas os participantes nas acções da esquadrilha e constituem as expressões mais duradouras dessa participação que, contou ainda, até ao termo da guerra em 1939, com várias outras intervenções suas visando reunir apoios a favor da causa republicana.
O carácter excepcional, de obra única, do filme realizado por André Malraux, resulta não só das circunstâncias históricas que nele deixaram as marcas de inacabamento, mas também das condições de produção que fizeram dele uma obra atípica no contexto do mercado cinematográfico, quer em termos de financiamento quer da sua preservação e difusão internacional, sendo que, fruto da renovada atenção de que foi objecto nas últimas décadas, o mesmo pôde, entretanto, ser apreciado na exemplaridade da sua ligação entre “acontecimentos irrevogavelmente passados” e “criações artísticas que permanecerão para sempre vivas entre nós”.
Um texto do cineasta espanhol Víctor Erice, que serviu originalmente para a apresentação feita em Londres, no BFI, em 7 de Junho de 2009, da versão do filme restaurada conforme o original, recapitula com grande rigor crítico não só as vicissitudes históricas como também as propostas políticas que lhe estavam subjacentes, não deixando de relevar um paradoxo que envolve este filme que, constituindo “um dos paradigmas mais eloquentes relativamente ao destino da Segunda República espanhola (…), um filme que é um hino à solidariedade, [foi] condenado à marginalidade, abandonado por quase todos”. Ainda na sua reflexão, de cineasta profundamente atento à função da memória, essa condição de “filme mutilado, proibido, perseguido, manipulado e esquecido” é indissociável de uma outra desfeita infligida aos “republicanos espanhóis: aqueles que, nas frentes de batalha, tinham continuado a combater o fascismo durante a Segunda Guerra mundial, aqueles que morreram nos campos de concentração, aqueles que durante anos foram condenados a uma vida de exílio”[viii].
Para Malraux, a rodagem dos “segmentos” constituintes do filme, fruto da sua experiência de combatente que testemunhou ao vivo o drama dos aviadores republicanos sobreviventes da queda de um avião e o seu salvamento por civis, na serra de Teruel, visa dar expressão à “imagem da fraternidade mais envolvente que encontrou em toda a sua vida”, como o próprio Malraux a definiu numa conferência na Universidade de Columbia. Não querendo que o filme fosse uma adaptação do seu romance, a observação de Paul Nothomb, que foi seu camarada de esquadrilha, referindo-se ao título “antifrástico” do romance, indica o tom justo adoptado no momento em que a guerra era dada como perdida, ao limitar o entusiasmo e o elã revolucionários, ultrapassando a ilusão lírica e afastando-se de clivagens ideológicas, e ao fundar a esperança no homem[ix].
Se, na apreciação mais geral da obra de Malraux, Jorge de Sena se mostra divido entre o elogio da “meditação estética sobre o sentido das acções humanas” e a insuficiência de «tentar dar aos homens a consciência da grandeza que em si próprios ignoram», relativamente ao filme, que terá tido como título possível o de “Sangue de esquerda”, e como título desejado o de “Canto fúnebre para os mortos da Guerra de Espanha” e que, contra a vontade do realizador, foi sobretudo difundido na versão de 1945 com o título Espoir – Sierra de Teruel, o mesmo encontrou finalmente na versão recuperada a partir do original de 1939, aventurosa e afortunadamente salvo na Library of Congress dos Estados Unidos, o título que lhe convém: Sierra de Teruel.
Max Aub, um dos mais decisivos colaboradores de Malraux na realização do filme, tem sobre a cena final palavras de uma grande clarividência: “A ‘descida da Montanha’ é mais que uma marcha fúnebre: a cena domina toda a obra e fecha-a, se bem que para nós, de cada vez que a vemos, constitua um testemunho de vida. Para outros, marca uma data indelével, até que o filme se torne pó. Não é nada”.
Perante o fascínio do novo poder oferecido pela aviação de ver a terra do céu e o olhar absolutamente estupefacto do camponês, guia incapaz de reconhecer do alto a sua terra natal, ergue-se na terra de todos os homens, a fábula universal da fraternidade humana na resistência ao infortúnio, expressa na criação artística como resposta ao irreparável.[x]
Tendo eliminado o comentário que Magnin proferia no romance: “- Repara bem: que quadro este!”, o realizador do filme não esqueceu que foi na Arte que o olhar ocidental inventou o quadro e a perspectiva, que foi aí que começou a fazer cortes, a segmentar, a separar e a fazer a montagem dos acontecimentos em cenas expressivas. Encontrar na Subida ao Calvário de Tintoretto um motivo simbólico para essa convicção, segundo a qual “o contrário da humilhação, não é a igualdade, é a fraternidade”, leva-o a seguir a indicação do pintor, na sua lição de perspectiva, inventora do olhar rente ao chão.
A data de publicação desta crónica, para mais se confinado um espectador, não pode deixar de juntar outras lembranças que o título, desviado de uma elegia camoniana, pretende trazer para diante dos nossos olhos. O que também me reconduziu às palavras de João de Melo, num texto de cariz autobiográfico:
“Assisti à revolução portuguesa do alto de um 4.º andar, na Avenida Almirante Reis: por aí passavam, todos os dias, em direcção à Praça de Londres e à Alameda, as maiores manifestações políticas jamais vistas em Portugal. Digo-o não por nostalgia, mas pelo privilégio «literário» de a ter visto do alto. Escreverei sobre esse tempo: as contínuas multidões que por ali fluíam, os capacetes dos operários da Lisnave e das fábricas, as grandes frases ingénuas que atravessavam a avenida, uma profusa mistura de fardas com trajes de trabalho, cada rosto, cada gesto, cada grito, o avesso da epopeia vista de cima, nas multidões que bramiam a meus pés, como nos filmes bramem os exércitos nos campos de batalha”[xi].
Há, no cinema, creio, um avesso da vista de cima que nos concede o privilégio de ver que, em Abril, nós tínhamos muito mais esperança.
[i] Ossip Mandelstam, Œuvres Complètes II: Œuvres en Prose, trad. Jean-Claude Schneider (Paris: Le Bruit du temps/La Dogana, 2018), 94.
[ii] AA. VV., Vers une esthétique sans entrave: mélanges offerts à Mikel Dufrenne, 10-18 (Paris: Union générale d’éditions, 1975), 239–42.
[iii] Roland Barthes, «O Rumor da Língua [1975]», em O Rumor da Língua, trad. António Gonçalves, [1984] (Lisboa: Edições 70, 1987), 75–77.
[iv] Mandelstam, Œuvres Complètes II: Œuvres en Prose, 94.
[v] Óssip Mandelstam, Fogo Errante: antologia poética, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra (Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1996), 33; Óssip Mandelstam, Guarda Minha Fala Para Sempre, trad. Nina Guerra e Filipe Guerra, Documenta Poética 35 (Lisboa: Assírio & Alvim, 1996), 139.
[vi] Mandelstam, Œuvres Complètes II: Œuvres en Prose, 326, 628, 358.
[vii] Immanuel Kant, «O Conflito da Faculdade Filosófica com a Faculdade de Direito», em O Conflito das Faculdades, [1794] (Lisboa: Edições 70, 1993), 112.
[viii] Victor Erice, «André Malraux : de Sierra de Teruel (1939) à Espoir (1945)», Trafic (Revue de Cinéma), n. 81 (Printemps de 2012).
[ix] Paul Nothomb, «Malraux était quelqu’un qui suscitait la fraternité, qui élevait l’homme dans sa dignité», Présence d’André Malraux, n. 1 (2001): 33–37.
[x] André Malraux, «Saturne: Le Destin, l’Art et Goya», em Écrits sur l’Art, [1978], Oeuvres Complètes, IV (Paris: Gallimard, 2004), 19.
[xi] João de Melo, «Autobiografia», JL – Jornal de Letras Artes e Ideias, 10 de Novembro de 2004.