Algo fascinante que o cinema permite pensar são os elementos que dão rugas a determinada obra. Talvez valha a pena inverter a premissa. Se olharmos para grandes obras primas do cinema – vem-me à memória, quase ao acaso, Le règle du jeu (A Regra do Jogo, 1939), ou Det sjunde inseglet (O Sétimo Selo, 1957) – compreende-se que existe uma relação entre a absoluta subjectividade de uma “escrita” e a veiculação de algo universal, que é como quem diz algo, transversal à experiência humana. Por exemplo, a complexidade das relações humanas ou a experiência da morte. Penso que é essa alquimia ou equação entre o particular e o universal que faz com que sempre já nos reconheçamos em algo que é único.

Sabe-se que alguns elementos podem fazer perigar este maravilhoso paradoxo. Obras feitas em cima de determinados eventos históricos, ou outras que dependem muito de um retrato da tecnologia do presente (ou de um dado futuro imaginado), acabam por fincar a sua estaca tão profundamente no presente que, com frequência (sem que isso seja uma inevitável “regra do jogo”, propriamente), tendem a descurar esse espaço de universalidade que salta por cima de épocas e específicas materialidades.
Recentemente, a reflexão sobre a pandemia da covid-19 deu azo a visualizar novamente essa relação. Por exemplo, numa obra como A Pandemia que Abalou o Mundo, de Slavoj Žižek podemos ler algumas conclusões/previsões que estavam tão em cima do acontecimento que, meses depois, já sabemos estarem “erradas” (ou melhor: por enquanto erradas, pois o filme do tempo não se fecha e, muitas vezes, os certos alternam de posição com os errados numa espécie de dança das cadeiras).
Mas volto ao cinema. Que dizer, nessa conversa de rugas e poeira, dos filmes alegoria? Em certa medida são o inverso dos casos da tecnologia ou dos filmes-acontecimento. Nestes, é a absoluta particularidade de um tempo específico que surge devorador, e que faz pender a equação para o seu lado, descurando com frequência um potencial universalizante. Nos filmes alegoria parece ocorrer o inverso: no centro do projecto encontra-se uma ideia de cariz universal que pode fazer minguar essa “escrita subjectiva”. E o resultado, por incrível que pareça, é o mesmo: o acelerador das partículas que compõe o filme resultando num rápido envelhecimento da obra.
O homem que abdicou do mundo – é essa a definição de anacoreta – morre quando prescinde de estar na imagem, no campo de uma câmara confinada. Causa de morte, fora de campo: se isto não é uma morte cinematográfica, não sei o que é.
Pego num exemplo concreto. El Anacoreta (1976) realizado por Juan Estelrich, homem do cinema sobretudo conhecido como assistente de realização espanhol dos anos 60, início da década de 70. O seu filme tem no centro um anacoreta, como denuncia o título, um desses homens que abdicou de tudo em prol de contemplação ou do conhecimento. Mas Fernando Tobajas, assim se chama, é um anacoreta moderno que trocou o deserto ou o mosteiro por uma casa de banho de um apartamento. Fernando Fernán Gómez, célebre actor do cinema espanhol [basta um papel para se lembrarem dele: o pai de El espíritu de la colmena (O Espírito da Colmeia, 1973)], que venceu o prémio da melhor representação em Berlim desse ano, encarna na perfeição o homem que passa todos os seus dias, sem daí nunca sair há já anos, na WC da sua casa. Aí vive, escrevendo e enviando mensagens para o mar (pela sanita), enquanto no resto da casa, a mulher vive com o seu amante, seu administrador.
El Anacoreta (1976) faz um pouco lembrar algumas outras obras que se afirmaram libertadoras de uma opressão societária, mediática, algo recorrente no cinema “intelectual” europeu dos anos 70. Recordo, por exemplo, Themroc (Regresso às Cavernas, 1973) de Claude Faraldo ou o excelente e pouco conhecido, La cabina (1972), de Antonio Mercero. Mas se o primeiro era uma alegoria da “bruteza” da linguagem, e o segundo um certo comentário irónico ao absurdo da própria leitura alegórica (e com ela, as múltiplas possibilidades), aqui estamos no campo da crítica aos valores da sociedade: a fidelidade e o próprio sexo como motor das relações; a ganância; o utilitarismo da razão; a burocracia. No mundo do anacoreta a mais cara das iguarias pode servir de repasto aos peixes e a mais estimada das esposas, moeda de troca de comodidades, tal como o pagamento de impostos ou a comida confecionada na mesa.
O cenário da gruta moderna é essa casa de banho onde há espaço para dormir, comer, conversar, trabalhar. Mas ela é também um palco teatral onde todas as personagens exceto uma – que está sempre lá – entram e saem de cena. Todos vêm servir o anacoreta, ou desejá-lo ou procurar obter o que este tem: o carisma, o amor, a liberdade. Todos funcionarão como sereias de um Ulisses sedentário, de cabelos até à cintura. Essa teatralidade e até as frases citação que estão na parede, e que abrem e fecham o filme, acabam por transmitir uma certa rigidez à obra de Estelrich. Como se este devesse ser visto juntamente com aquelas instruções de “visionamento”.
Mas, como dizia, a roda gira e as posições alteram-se com o tempo. Em 2021 este é um filme que, casualmente ou de forma presciente, nos devolve uma condição, no nosso caso, nada voluntária de confinamento. Como se o tempo demonstrasse a universalidade da alegoria da separação e do recolhimento e rejuvenescesse um pouco uma obra que não deixa de ter inscrita os sinais do seu tempo. Mas se é certo que o confinamento contemporâneo contribui para rejuvenescer um pouco El anacoreta, ele é também ocasião para reavaliar uma apressada rigidez desse lado, que há pouco nomeava, da escrita subjectiva que os filmes-alegoria tinham a tentação de colocar em segundo plano.
Não há que negar que o filme é uma sucessão de cenas, em muitos casos teatrais, embora a câmara se esforce por contrariar isso, quer através da iluminação, quer criando nichos no espaço ou nos reflexos do espelho, para trabalhar a dimensão do voyeurismo do ermita sobre a bela mulher que o vem visitar e com ele passa a viver. Mas eu creio que o prisma sob o qual vale a pena revisitar El anacoreta, filme-clarificação onde El ángel exterminador (O Anjo Exterminador,1962) era obscuro, é o trabalho sobre o off.

A câmara encontra-se confinada no quarto de banho e depois temos o “lá fora”. Na parede, imagens de mar azul, lembrando o diálogo sobre as sereias e a Odisseia, e os telescópios que usa o anacoreta “embatem” na parede do vizinho. Não veem para lá disso. Mas o que é interessante é que o fora de campo não é aqui um espaço que expande o palco das personagens. Tudo conflui e reflui para o presente na sua excepcionalidade. Como lhe diz a amante platónica Arabel, lá fora, se ele saísse, não passaria de um homem comum e ela trocá-lo-ia de imediato. Mas ali é único. E Fernando não quer concretizar esse amor físico, pois sabe que ela partiria do seu reino-Wc. Por outras palavras, tudo está em campo e o fora de campo não é imaginário. É tão opaco quanto aquelas paredes. O espectador não imagina as outras divisões da casa, nem as Bahamas para onde, perto do final, a família foge, ou sequer o cruzeiro onde Alberto poderia dar caviar aos peixes. Nem mesmo imaginamos o vizinho que mais não é do que irritante melodia.
O fora de campo é como que fora do imaginário. Uma recusa de visualizar referências exteriores. Assim, o desafio do Fernando Tobajas é resistir à tentação de sair dali. E, inaudito na história do cinema, El Anacoreta tem um protagonista que se suicida, lançando-se para fora de campo, para essa opacidade, essa vertigem invisível do lado cego das imagens. O homem que abdicou do mundo – é essa a definição de anacoreta – morre quando prescinde de estar na imagem, no campo de uma câmara confinada. Causa de morte, fora de campo: se isto não é uma morte cinematográfica, não sei o que é.