Fora do acasalamento (para o diabo, então, o Imaginário), há este outro abraço, que é um enlace imóvel: estamos encantados, enfeitiçados: estamos no sono, sem dormir; estamos na voluptuosidade infantil do adormecimento: é o momento das histórias contadas, o momento da voz, que me vem fixar, siderar, é o retorno à mãe (“na calma dos teus braços amantes”, diz uma poesia musicada por Duparc). Neste incesto reconduzido, tudo então fica suspenso: o tempo, a lei, o proibido: nada se esgota, nada se quer: todos os desejos estão abolidos, porque parecem definitivamente realizados.
Barthes, 2020: 19
A metáfora das máquinas fotográfica e cinematográfica como armas de fogo, bem como a ideia de os respectivos aparatos estarem intrinsecamente ligados à noção de morte, remetem-nos até à invenção dos próprios dispositivos. Nos anos pioneiros da história da fotografia e do cinema, a urgência de um dispositivo de captação de imagens foi levantada pelos estudos científicos como ferramenta de assistência na escalpelização do movimento (Tosi, 2005: 33). Os novos suportes de ordem tecnológica que recorrem a sistemas de gravação aspiram a uma linha mais directa de comunicação entre o sujeito e o observador, numa progressão em direcção a uma maior verosimilhança (Monaco, 1981: 7), instituindo uma equação entre máquina e verdade (Medeiros, 2010: 7)[1]. Com os seus meios auxiliares, o retardador, as ampliações, só a fotografia permitiria aceder a esse inconsciente óptico, parafraseando Walter Benjamin (1992: 119). André Bazin vê o nascimento da fotografia[2] como um momento determinante da história das artes que desobriga «as artes plásticas da sua obsessão pela semelhança» (1992: 16) – o «exclusivo contrato imaginário da pintura» (Schefer, 2005: 66) – e, antes dele, László Moholy-Nagy sublinhara que «a partir de agora, a pintura pode-se preocupar com a pura composição pictórica» (Moholy-Nagy, 1969: 9)[3].

Ainda que incapaz de reproduzir inteiramente a realidade, a fotografia enquanto «a retina do cientista» (Tosi, 2005: 33), motivou o astrónomo Pierre Janssen a criar uma máquina a que chamou “revólver fotográfico”, inspirado pelo cilindro giratório do revolver desenvolvido por Samuel Colt, industrial do sector do armamento. Por sua vez, o fisiologista Étienne-Jules Marey, designou o objecto que criou como “fuzil fotográfico”, pois também o desenho do seu cronofotógrafo tinha a forma e o tamanho dessa arma. Os manuais de fotografia passaram a utilizar o termo “disparar” para definir a acção de carregar no obturador e os praticantes de um cinema politicamente comprometido classificaram a câmara como uma arma que dispara vinte e quatro fotogramas por segundo.
A nossa imagem, habitada pela figura da morte, é um “film still” extraído da obra De Sade 70 (1970) de Jess Franco. Na cena respectiva, uma mulher simula sangue a partir de pinceladas de tinta, enquanto se prepara para uma séance fotográfica em que o som do disparar de uma maquina fotográfica dialoga com o seu assassinato. A imagem transmite-nos a mensagem: ela está viva e vai morrer. Em língua inglesa, a expressão “film still” remete para a imagem captada no cenário do filme com uma câmara fotográfica por um fotógrafo de cena ou para a extracção de um dos dezasseis ou vinte e quatro fotogramas que (juntos) formam um pedaço de um segundo de filme (Jacobs, 2011: 123). Procuraremos decifrar o nosso olhar sobre a imagem enquanto desenvolvimento destas duas perspectivas, reflectindo e reajustando os níveis de ambiguidade que isso levanta: entre a fotografia e o cinema, a imobilidade e o movimento, o isto-foi e o isto-é (Roland Barthes), o gelo e o fogo (Peter Wollen), no desejo de esmiuçar uma relação incestuosa (Agnès Varda).
Estamos na Europa, em inícios da década de 1970, no espaço cénico da rodagem de De Sade 70, filme de género com um orçamento reduzido, em que a equipa não se rege inteiramente pela regra da especialização e se divide por várias tarefas, como se se tratasse de uma pequena comunidade familiar. Uma mulher cobre o corpo nu com pinceladas de tinta vermelha, na preparação para a rodagem da cena seguinte. Indiferente ao que a rodeia, a sua face impenetrável é absorvida pela intimidade da acção. A palidez, a inexpressividade e a tinta sobre o corpo enfeitiçam o quadro. No conflito dos sentidos não é a visão da nudez que nos enleva, mas o cheiro a morte. Entregues à volúpia do adormecer, vemos um fotógrafo que se aproxima, o operator[4], direccionando a objectiva da máquina fotográfica para a mulher, o referente – ou o spectrum[5], enquanto sujeito em que recai o olhar. Quando dispara, por meio do aparelho fotográfico, é a figura da mulher que é “embalsamada”. Nós somos os spectatores que consultam «nos jornais, nos livros, álbuns e arquivos, colecções de fotografias» (Barthes, 2008: 17).
Entre a década de 1960 e meados da de 1980, o cinema de género europeu é produzido dentro de uma elaborada infra-estrutura económica, com canais específicos de produção, distribuição e consumo, incluindo os seus próprios estúdios, estrelas, técnicos, salas, editores, críticos e revistas. Com a sua câmara portátil de 35mm, o fotógrafo é um instrumento precioso deste sistema. As suas fotografias (publicity still), não só irão alimentar a imprensa especializada como servirão de fonte para os materiais promocionais do filme, captando a acção que está a ser rodada mas também a coreografia informal que reina nos bastidores. Em suma, trata-se de um sistema de produção que reconhece o poder da fotografia de cena como instrumento para explorar o impulso artístico e potenciar a fruição da experiência artística pelo espectador.

Por vezes, o fotógrafo capta encenações alternativas da acção que podem conduzir a «imagens impossíveis» porque contrariam a lógica narrativa do filme. A capa do primeiro número da revista francesa Midi-Minuit Fantastique (1962–1972), vocacionada para o cinema de género, exibe uma imagem “surpreendente” do filme The Curse of the Werewolf (A Maldição do Lobisomem, 1961) de Terence Fisher, em que o lobisomem, interpretado por Oliver Reed, esventra uma jovem mulher (Yvonne Romain), embrenhada num gesto facial anfibológico de dor e prazer (Mesnildot, 2014: 88). A imagem é “impossível” porque a mulher é a mãe do lobisomem que morrera durante o parto e renasce apenas para a capa da revista, não num fotograma mas numa fotografia. Segundo Barthes, as surpresas, que encontra nas fotografias, «obedecem a um princípio de desafio (aquilo por que elas me são estranhas): o fotógrafo, tal como um acrobata, deve desafiar as leis do provável ou até do possível; a um ponto extremo, ele deve desafiar as do interessante. A foto torna-se “surpreendente” a partir do momento em que não se sabe porque é que foi tirada» (2008: 42). Enquanto spectatores, o que é que nos desafia nessa fotografia na capa da revista, assumidamente uma imagem encenada? A sua ausência do filme? O aceno incestuoso? A provocação à moral vitoriana?
Este fotógrafo é herdeiro do stillman, cuja profissão era um elemento vital na industria cinematográfica durante a época dourada de Hollywood, antes da queda do sistema de estúdios – sistema de produção altamente estandardizado, em que o trabalho era dividido e especializado (Jacobs, 2011: 124). No seu trabalho era apoiado por câmaras fotográficas de grande formato montada em tripés, bem como por dispositivos cuidados de iluminação, de foco e de outros detalhes técnicos. Concluído o take, o stillman captava detalhes da narrativa pedindo ao actor para repetir a acção – à actuação para a câmara de filmar sucedia a pose para a câmara fotográfica –, produzindo imagens que se desdobravam em documentação valiosa para os dossiers de comunicação e divulgação dos estúdios. Técnicos altamente qualificados, também registavam as imagens que asseguravam a continuidade, a posição dos objectos e da iluminação entre os takes (Campany, 2008: 132).
No caso do nosso fotógrafo, com a sua câmara portátil, que mais tarde seria substituída pela Polaroid e pela documentação digital, são outras as preocupações: captar a acção espontânea (action still) em vez da pose estática, a vibração da cor em vez da gravidade do preto e branco. Ao olharmos para a imagem como uma fotografia, ela também sugere a condição pós-moderna em «que a fotografia oferece um comentário sobre o seu próprio estatuto enquanto representação» (Campany, 2008: 119). A cortina atrás da modelo antecipa a questão da teatralidade, em que a banalidade do frasco e das pinceladas de tinta são usadas para representar a visceralidade e a violência do sangue, bem como a artificialidade do estúdio de fotografia. Uma teatralidade e uma artificialidade que se prolongam para outras cenas do filme, em que um material semelhante é usado para representar o sangue, por vezes exageradamente, evocando a manufactura e pobreza de meios que este cinema de género pratica.
Por outro lado, reajustamos o olhar para a nudez do corpo da mulher e para a intimidade da acção que executa, o que convoca a relação entre o modelo e o artista, nomeadamente nas artes pictóricas como o desenho e a pintura[6]. Estes suportes chegaram a ser redutoramente qualificados como parentes “pobres” da fotografia e do cinema[7], cuja competição se adensou com o desenvolvimento da sincronização sonora, o processo de integração da cor e, principalmente, a partir da possibilidade de gravar directamente as imagens do mundo e de as transformar em infinitas reproduções. Entre a cadência e a fricção da privacidade do estúdio, pensamos no pintor e no seu trabalho[8] com modelos humanos, na busca do equilíbrio no trabalho do artista e dos seus sujeitos, uma relação de intimidade que se move sinuosamente entre impulsos de desejo e desprendimento. Lembramo-nos das pinturas de cenas de género de Jan Vermeer (1632-1675), em que mulheres isoladas «vivem num mundo intemporal de ‘natureza-morta’, aparentemente presas de algum feitiço mágico» (Janson, 1998: 534), dedicadas a simples tarefas quotidianas. Porém, nesta deriva pela volúpia do olhar há uma ferida, uma espécie de impregnação, impossível de subtrair da contemplação: o enquadramento lembra mais o recortar (crop) de uma fotografia ou o movimento para o close up do cinema do que a forma como o espaço é operado na pintura clássica, antes das transfigurações a que foi sujeita pelo aparecimento dos novos meios tecnológicos, quando finalmente rumou em direcção à abstracção, liberta da mimese e da imitação do mundo.

Olhemos para a nossa imagem como um “film still”, enquanto reprodução de uma imagem do filme – por outras palavras, a extracção de um dos vários fotogramas que formam um segundo de filme. Roland Barthes aponta que, embora correntemente o fotograma seja mencionado como «uma redução da obra pela imobilização daquilo que se considera a essência sagrada do cinema: o movimento das imagens», este é a essência do fílmico, aquilo «que não pode ser descrito, é a representação que não pode ser representada» (1984: 62-63). Numa entrevista à revista Cahiers du Cinéma, conduzida por Jacques Rivette e Michel Delahaye, Barthes nota que vai ao cinema regularmente, uma vez por semana (Barthes: 1986: 276). Na abertura do ensaio En sortant du cinéma, reconhece que o seu prazer reside em sair da sala de cinema, adiantando que isso é acompanhado por uma caminhada tranquila e silenciosa, sem falar imediatamente sobre o filme que acabou de ver (Barthes, 1975: 104).
Apesar de alguns ensaios dedicados ao cinema e comentários sobre filmes espalhados pela sua obra, Barthes preferia «formas antigas de representação» (a pintura ou a música) e a fotografia em vez do cinema (Barthes, 2008:11)[9]. Na obra La Chambre claire: Note sur la photographie (1980), aborda a linguagem fotográfica, indagando sobre o seu «génio» próprio, mas é em L’obvie et l’obtus (1982) que um discurso teórico e critico aplicado à sétima arte se torna mais incisivo. Recorrendo a fotogramas de filmes de Serguei Eisenstein, compilados a partir dos Cahiers du Cinéma, identifica três níveis de sentido: nível informativo (comunicação) reunido por «todo o conhecimento» que fornecem «o cenário, os trajos, as personagens, as suas relações»; nível simbólico (significação) que inclui os simbolismos referencial, diegético, o inerente ao universo do autor, e histórico; e um terceiro sentido (significância), «evidente, errático e teimoso» e difícil de generalizar. Este último sentido pressente-se nalguns detalhes e no modo como se apresenta, pelo que ao contrário do simbólico que é o óbvio, Barthes chama-lhe obtuso, «seja por ele ser mais amplo que os outros ou por estar para além do sensato ou mensurável: qualquer coisa excessiva ou em excesso» (Aumont/Marie, 2009: 34).
Retomando as considerações sobre o suporte fotográfico desenvolvidas em La chambre claire, Roland Barthes explica que o terceiro sentido, que vai além da significação, encontra analogias com o punctum, como o óbvio se aproxima do studium. Barthes reconhece a existência de «um outro punctum (um outro ‘estigma’) além do ‘pormenor’. Este novo punctum, que já não é forma, mas intensidade, é o Tempo, é a enfâse dolorosa do noema (‘isto foi’), a sua representação pura» (Barthes, 2008: 107). Com esta conclusão parte para a análise, que prolonga para a fotografia histórica, da imagem de um rapaz que aguarda na cela a execução da pena de enforcamento. Alargando o seu campo de interpretação, imaginamos uma analogia entre a análise dessa fotografia e a da nossa imagem, sincronicamente fotografia e fotograma, em que também a morte futura é anunciada por meio do ritual que a mulher executa[10]. O studium relaciona-se com a beleza da mulher e da composição da imagem e o punctum é “ela vai morrer”, pelo que, simultaneamente, na mesma imagem lemos “isto foi” e «isto será”. Tal como Barthes, observamos: «um futuro anterior em que a morte é a aposta. Dando-me o passado absoluto da pose (aoristo), a fotografia fala da morte no futuro. A ferida nasce da descoberta desta equivalência» (Ibidem).

Sendo o punctum de ordem subjectiva e emocional, não se manifesta do mesmo modo para todos os observadores, tal como num fotograma em que haja um sentido obtuso que afecte uma pessoa, pode não afectar outra. O punctum é um acaso que vai em direcção ao destinatário e o atravessa como uma flecha, ferindo-o. É um detalhe que fere, capaz de tomar conta de toda a imagem, assim deslocando a atenção do observador. É um suplemento que a imagem pode conter, algo que lhe adimos, embora já nela esteja contido. Barthes duvida que, no cinema (o isto-é), se acrescente algo à imagem: «não tenho tempo: diante do ecrã, não posso fechar os olhos; se o fizesse, ao voltar a abri-los não encontraria a mesma imagem; estou, pois, sujeito a uma voracidade contínua; muitas outras qualidades, sim, mas não elaboração mental. Daí o meu interesse pelo fotograma [como parte do fílmico]» (2008: 65). Tendo a fotografia e o cinema relações distintas com o tempo e a percepção temporal, Christian Metz sugere que na fotografia é do espectador que depende a duração do olhar, enquanto no cinema essa duração é determinada pelo realizador (1985: 81), pelo que se trata de «um tempo de leitura imposto» (Wollen, 2007: 108). Para Barthes, o tempo deve ser uma prerrogativa do leitor/espectador, daí a valorização que faz do fotograma, a essência do cinema enquanto medium, que, não sendo visível durante a projecção, convoca a nossa atenção para novos detalhes e ambivalências.
No entanto, citando André Bazin, Roland Barthes nota o poder do cinema em relação à fotografia: o ecrã não é um quadro mas um esconderijo, a personagem que sai de campo continua a viver num «’campo cego’ que dobra incessantemente a visão parcial» (Barthes, 2008: 65). Em muitas fotografias, mesmo as que têm um bom studium, não existe um “campo cego”, pois o que se passa dentro do quadro esvanece inteiramente quando é ultrapassado esse limite. A imobilidade na fotografia não quer dizer apenas que existe falta de movimento das personagens, mas também indica que «não saem de lá: estão anestesiadas e fixadas, como se fossem borboletas» (Ibidem). Quando existe punctum, pressente-se esse “campo cego”, um fora de campo “subtil”, pois o detalhe que nos fere permite uma vida para além do limite do quadro.
A partir do pensamento de Roland Bathes, Peter Wollen joga com «metáforas lúdicas, deveras fúteis», «ancoradas em algo real», associando o filme ao fogo e a fotografia ao gelo: «O filme é todo luz e sombra, movimento incessante, transitoriedade, tremulação, uma fonte do devaneio bachelardiano como as chamas na lareira. A fotografia é imóvel e congelada, tem o poder criogénico de preservar objectos através do tempo sem deterioração. O fogo derreterá o gelo, mas o gelo derretido apagará o fogo» (2007: 110). O cinema é a imagem em movimento: a ilusão do movimento do sujeito a partir do fotograma imóvel. Daí que, tratando-se de uma imagem retirada de um filme, não resistamos ao embalo da transição entre a imobilidade e o movimento, como sugere Gertrud Koch: «Quando nos confrontamos com uma fotografia, podemos sonhar acordados. Mas no caso de um filme, somos forçados a seguir a acção» (1993: 26).

Arrastados pela «voracidade contínua» das imagens, somos conduzidos, desde a pintura corporal da modelo até à sua morte, sob a luz penetrante dos projectores e difusores, ao excesso e à artificialidade que o estúdio de fotografia representa. Para montar um cenário sadomasoquista, a modelo reúne brinquedos sexuais e pincela o corpo com tinta vermelha, para parecer sangue. O som enérgico do disparar da máquina fotográfica, operada por um homem (o pai), choca com a inexpressividade e a palidez da modelo. Outra actriz (a enteada) entra em cena, manuseando os objectos num jogo erótico em que a morte anunciada pelo sangue simulado caminha apressadamente para a sua efectivação. Há um crescendo no ritmo da composição musical, nos gemidos entre o prazer e a dor, mas é a repetida disrupção do som da máquina fotográfica que se eleva, sempre que a mão carrega no obturador e acontece um novo disparo. Uma montagem de planos, rápidos e sem raccords, da fricção dos objectos no corpo, segundo o ritmo da pose e dos disparos, conduzem-na finalmente à morte e, assim, revisitamos a metáfora do aparato fotográfico como dispositivo de agressão [as patologias do laboratório fotográfico analógico em Shutter (2004) de Banjong Pisanthanakun e Parkpoom Wongpoom] ou, eventualmente, de defesa [o flash em Rear Window (A Janela Indiscreta, 1954) de Alfred Hitchcock].
O espectador nunca é confrontado com as provas da sessão, o olhar a partir da câmara fotográfica, de que o realizador se exima para se focar no aparato e na mecânica visual e sonora da máquina enquanto propulsores da composição visual e dramática da cena. Ora, Roland Barthes também observa que o ruído do aparelho é o que suporta e lhe é familiar quando o fotografam. E acrescenta: «Para mim, o órgão do Fotógrafo não é o olho (ele assusta-me), é o dedo: aquilo que está ligado ao disparar da objectiva, ao deslizar metálico das placas (quando o aparelho ainda as utiliza). Gosto desses ruídos mecânicos de uma forma quase voluptuosa, como se, da Fotografia, eles fossem precisamente aquilo – e unicamente aquilo – a que o meu desejo se agarra, quebrando, com o seu estalido seco, a mortalha da Pose» (2008: 23). Na análise da cena, Stéphane du Mesnildot remata que «sempre que a modelo parece bela e realmente morta, uma nova pausa mostra-a a reajustar-se. A verdadeira morte sobrevive até à pausa seguinte. A montagem do verdadeiro e do falso (a própria modelo desenha os traços do sangue sobre o seu corpo), do artifício e da morte real, levantam a suspeita sobre o conjunto da cena. Será que a morte teve lugar? Diversos elementos incitam-nos a qualificar a morte como um fantasma da filha[11] e do pai» (2004: 47), após a ocorrência do incesto.
NOTAS:
[1] Margarida Medeiros aborda «uma cultura que confia e delega na máquina, no autómato ou nos mecanismos automáticos essa função de autenticidade» (2010: 8).
[2] Segundo Bazin, não só no nascimento da fotografia, como no do cinema, a obsessão pelo realismo faz parte da sua essência.
[3] Todas as traduções são da responsabilidade do autor.
[4] Os conceitos de operator, spectrum e spectator são desenvolvidos por Roland Barthes na obra La camara lucida.
[5] Barthes utiliza o conceito de «Spectrum da Fotografia porque esta palavra conserva, através da raiz, uma relação com o ‘espetáculo’ e acrescenta-lhe essa coisa um pouco terrível que existe em toda a fotografia: o regresso do morto» (2008: 17).
[6] Na sua curta obra, nunca pintou modelos nus, mas «como tantas vezes na pintura de Vermeer, temos a sensação de suspense proto-cinemático, em que não há a indicação do que o próximo fotograma mostrará» (Westermann, 2003: 229).
[7] «A associação entre fotógrafos e pintores, em meados da década de 1850, influenciou o percurso da fotografia de outros modos, como conseqüência de a principal premissa dos fotógrafos ser que o seu medium tornara-se numa ferramenta versátil para pintores, escultores e arquitectos. Uma das maiores secções da Exposição Universal de 1855 era a mostra de fotografias que representavam objetos das belas artes e das aplicadas» (Marbot, 1980: 37).
[8] A invocação da pintura, nomeadamente a representação de cenas do quotidiano, no trabalho de Jess Franco merece alguma reflexão. Por exemplo, o genérico inicial de Necronomicon – Geträumte Sünden (Succubus, 1967) é composto por uma sucessão de detalhes de pinturas dos séculos XVI e XVII, pertencentes ao espólio do museu Alte Pinakothek (Munique), num estilo artístico em que predomina o Barroco espanhol, flamengo e holandês.
[9] «Declarei que preferia a Foto ao cinema, do qual, todavia não conseguia separá-la. Sentia pela Fotografia um desejo ‘ontológico’: queria, a todo o custo, saber o que ela era ‘em si’, por que característica ‘essencial’ se distinguia do conjunto das imagens» (Barthes, 2008:11).
[10] No mesmo filme, num outro crime em que decorre este jogo de morte anunciada, uma mulher brinca a “fazer-se de morta” antes de ser assassinada.
[11] Mesnildot trata a enteada como filha. Na verdade, é assim que ela é considerada na obra de Sade, de onde o filme é adaptado. Antecipando problemas com a censura, Franco identificou-a como enteada.
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