Uma das coisas mais prazerosas da cinefilia é rever, na integridade, a obra de algum autor de cabeceira, de preferência em ordem cronológica, ou o mais próximo disso. Com o cinema de Manoel de Oliveira, o prazer é redobrado, pois não só estamos diante de uma das obras completas mais fascinantes da história do cinema, como seus filmes são cheios de retornos, retomadas e revisitas, e também de uma inacreditável depuração do estilo.
Como já disse em outra crónica, a descoberta de Manoel de Oliveira se deu com NON a Vã Glória de Mandar (1990), em algum momento de 1992. A partir desse filme, todo ano, em outubro, como parte da programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, via o longa da vez de Oliveira, que raramente estrearia em circuito comercial no Brasil. Vale Abraão em 1993, A Caixa em 1994, O Convento em 1995, sempre perto do meu aniversário, ou no dia exato em que o comemorava. Os filmes de Manoel de Oliveira eram sempre meus presentes.
Mas uma coisa é ver, ano a ano, os filmes do mestre, esperando com ansiedade o do ano seguinte. Vemos cada filme em sua particularidade, sem uma comparação mais aproximada com algum outro com a mesma assinatura. Outra coisa é rever todos os filmes num curto espaço de tempo. Isso só havia sido possível em 2005, quando a Mostra SP fez uma retrospectiva quase integral da obra de Oliveira. E agora, para minha felicidade, em 2021.
Revendo todos os filmes do realizador em um espaço de 22 dias para um curso que acabo de ministrar em modo online, pude perceber melhor a maneira como o estilo do diretor vai se modificando, sem que algumas de suas características sejam abandonadas, como também observar os rostos que se repetem. Não só os de Luís Miguel Cintra, Leonor Silveira, Leonor Baldaque, Diogo Dória, Ricardo Trepa e Isabel Ruth, presenças sempre muito constantes em sua filmografia e já conhecidos de antemão. Percebi também as presenças mais ou menos constantes de Rogério Samora, Miguel Guilherme, Adelaide Teixeira, José Manuel Mendes, José Wallenstein, Júlia Buisel (também sua continuísta), e da montadora Valérie Loiseleux. Percebi ainda, ou confirmei, que não há muita diferença entre as fotografias de Elso Roque, Mário Barroso, Renato Berta ou Sabine Lancelin, a não ser as ditadas pelos próprios filmes e suas tramas. O que quero dizer é que todos esses brilhantes diretores de fotografia têm os filmes solares, os filmes mais sombrios, os filmes em que os tableaux vivants se manifestam, os excelentes momentos em claro-escuro, e que esses elementos são obviamente muito controlados por Oliveira, conforme ele sinta a necessidade de retomá-los, talvez não diretamente, mas por instruções passadas previamente e por uma confiança de que esses técnicos saberiam muito bem entregar a imagem pretendida pelo realizador desde o início, mesmo que ele sempre tenha se mostrado muito mais atento ao texto do que a outros aspectos de seus filmes – o que, intuo, entra na corrente do despiste dos segredos de que todos os grandes cineastas fazem parte, em maior ou menor grau.
Com o cardápio intensivo de revisões, pude perceber melhor as fases de sua carreira, os intervalos, ecos e obsessões que pulam de filme a filme. Há a fase inicial, em que as escolas da vanguarda e do documentário marcam seus filmes, de Douro, Faina Fluvial (1931) a Aniki-Bóbó (1942), passando por curtas de encomenda e ao menos uma curta fabulosa [Famalicão (1940)]. Essa fase é seguida por um longo intervalo de projetos falhados, incluindo Angélica, que ele iria realizar mais de meio século depois como O Estranho Caso de Angélica (2010).
Depois vem a fase do novo cinema português, quando Oliveira se insere no seio de uma procura de renovação estética em filmes como O Pintor e a Cidade (1956), O Pão (1959) e, principalmente, Acto da Primavera (1963) e A Caça (1963), longa e curta terminados enquanto o novo cinema estava prestes a eclodir com Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963). É a fase em que elabora melhor sua mise en scène, com destaque especial para a maneira de compor o enquadramento, como a de um pintor (a comparação é elucidada pela curta de 1956, um evidente nascimento poético do autor).
Após novo período de inatividade, surge a terceira fase, a da confirmação autoral que se inicia com O Passado e o Presente (1972), um dos primeiros filmes contemplados com os subsídios da Fundação Gulbenkian, pleiteados pelos jovens diretores do Novo Cinema português, que pensavam na época estar dando a Oliveira a possibilidade de realizar um último filme de fundo, quando estavam, na verdade, possibilitando uma das continuações de carreira mais prolíficas de que se tem notícia. Essa fase é fortalecida pelos três outros filmes que compõem, com O Passado e o Presente, a Tetralogia dos Amores Frustrados: Benilde ou a Virgem Mãe (1975), adaptação da peça de José Régio, Amor de Perdição (1978), do original de Camilo Castelo Branco, e Francisca (1981), adaptação de Fanny Owen de Agustina Bessa-Luís, sempre com imensa fidelidade ao texto dos autores, reproduzidos quase na íntegra. O primeiro é o filme da liberdade, realizado após o 25 de abril de 1974, mas lançado num mês tumultuado da história portuguesa, o novembro de 1975. Os dois últimos coincidem com o despertar estético de outro grande cineasta português, João César Monteiro, que teve dois de seus maiores filmes lançados nessa mesma época, Veredas (1978) e Silvestre (1981). Nesse período, os cineastas ainda não tinham conquistado a crítica em seu próprio país. Tanto Amor de Perdição quanto Veredas foram mal recebidos de início. Ao menos Oliveira teve melhor sorte após a estreia do filme em Paris e a estreia nos cinemas em Portugal (como o filme fora bancado em parte pela RTP, era exigência que fosse exibido primeiro no canal, o que o prejudicou bastante). Le Soulier de satin (O Sapato de Cetim, 1985) é o monumento de quase sete horas de duração, baseado na peça de Paul Claudel, que coroa essa fase em que teatro, pintura e cinema estão plenamente imbricados.
Em O Meu Caso (1986), inicia-se uma nova fase, com mudança ainda subtil, pois retoma a mistura anterior para inserir um novo elemento no caldeirão estético: o vídeo, escancarado no impactante final. É uma fase mais farsesca e variada que culminaria em Os Canibais (1988), longa que inclui a ópera na mistura anterior, e A Divina Comédia (1991), que João Bénard da Costa chamou, com razão, de “o filme mais decupado” de Manoel de Oliveira, encontro de personagens bíblicos e literários num manicómio. Nessa fase, de um ecletismo à prova de críticas, estão também duas das maiores obras do mestre: NON ou a Vã Glória de Mandar, um poema que representa e glorifica as derrotas de Portugal, culminando com a mais feliz de todas, a Revolução dos Cravos, e Vale Abraão, um de seus filmes mais clássicos (sem deixar de ser também moderno), a revelar o que o realizador era capaz de fazer com o texto antológico de Agustina Bessa-Luís e com aquilo que certa vez Nicholas Ray chamou de “a melodia do olhar”. Está ainda o retorno a Camilo Castelo Branco em O Dia do Desespero (1992): “Ai que frio! Que frio insuportável!”.
Após aquele que muitos consideram o ponto máximo de sua carreira, Vale Abraão, o cinema de Oliveira continua a ter viradas inesperadas como A Caixa, comédia lisboeta baseada em Prista Monteiro que homenageia, ao modo oliveiriano, o cinema dos “pátios de cantigas” da era salazarista, e glorifica a ginjinha no lugar do vinho do Porto, e La Lettre (A Carta, 1999), seu filme mais francês (e a meu ver o menos feliz de toda a sua carreira). Há ainda farsas como Party (1996), Belle toujours (2006) e Singularidades de uma Rapariga Loura (2009); flirts com o fantástico em O Convento (1995), Inquietude (1998) e O Estranho Caso de Angélica; retornos ao Padre António Vieira, ao Porto e ao sebastianismo, respectivamente, em Palavra e Utopia (2000), Porto da Minha Infância (2001) e O Quinto Império – Ontem Como Hoje (2004); filmes-itinerários como Viagem ao Princípio do Mundo (1997), Um Filme Falado (2003) e Cristóvão Colombo – O Enigma (2007), e reflexões sobre a integridade e a dignidade humanas como Je rentre à la maison (Vou Para Casa, 2001) e O Gebo e a Sombra (2012). E nem mencionei – farei agora – os retornos a Agustina Bessa-Luís. Primeiro com a terceira história de Inquietude, depois com O Princípio da Incerteza (2002) e Espelho Mágico (2005).
Pode ser terrível para novos cineastas portugueses viver sob a sombra desse cineasta gigantesco, que mesmo cortado às fatias e servido frio ao público do Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, como sugeriu João César Monteiro em sua crítica antológica sobre O Passado e o Presente, não diminuiu de tamanho, continuando demasiado grande para o país. Na verdade, para qualquer país. Mas com tantos filmes fundamentais, melhor fazer como o diretor da Trilogia de Deus e usar seus filmes como fonte de inspiração e coragem, coisas raras no cinema contemporâneo.