Estamos em Paris, no ano de 1942. Num consultório médico presenciamos um exame repugnante, em que o médico examina a paciente como gado, procurando nela características morfológicas que lhe permitam atribuir-lhe uma raça. A mulher é totalmente humilhada e, no fim, ainda paga o preço da consulta que lhe é comunicado pela enfermeira. No corredor do hospital, repleto de tantos outros que se sujeitarão a exame semelhante, a mulher encontra o marido. Ambos são incapazes de dizer uma palavra sobre o que acaba de acontecer, mais não dizendo do que “correu bem”. Os dois rostos perdem-se na escuridão da contraluz, incapazes de produzir qualquer discurso sobre o inenarrável.
Passamos para um apartamento ricamente decorado, uma mulher que languidamente se espreguiça na cama. Ouvimos duas vozes masculinas, quase em surdina, uma transacção que está a ter lugar na sala do andar de baixo. Depois do choque daquela cena inicial, Losey deixa-nos ainda em suspenso até que Alain Delon surge à nossa frente num robe dourado, um dandy aprumado, o lenço de linho fino no bolso do peito. O décor do apartamento é, também ele, opulento, feito de todo um bric-à-brac que nos absorve o olhar (aliás, os planos meticulosamente construídos vão-se sucedendo, numa riqueza visual impressionante).
Se Robert Klein vai procurando pistas de uma existência muito incongruente do outro Robert Klein, Losey vai-nos apresentando pistas bem reais da história que se vai construindo e de uma inevitabilidade que se aproxima vertiginosamente.
Aquilo que vemos torna um pouco ridícula a frase que ouvimos da boca de Robert Klein (Alain Delon) – “eu não sou um coleccionador, isto é apenas a minha profissão”. Nada há de pessoal na transacção que está a decorrer, a aquisição do quadro é um mero negócio, destituído de sentimentos ou sentimentalismos, é pegar ou largar. O proprietário do quadro é judeu, desesperado para vender a obra que pertence à família há várias gerações, um retrato de um homem pelo pintor holandês Adriaen van Ostade. Pede pelo quadro 600 luíses de ouro, mas Klein apenas está disposto a pagar-lhe 300, aproveitando-se, de bom grado, do estado de debilidade do proprietário de quadro. Na verdade, vemos o sorriso no rosto dele enquanto, satisfeito, preenche o recibo, contente por ter procedido inteiramente como cidadão cumpridor da lei, bastando-lhe a convicção podre de um negócio celebrado “livremente” entre quem queria vender e quem queria comprar. Isso é suficiente.
Quando ambos se encaminham para a porta, Klein recolhe do chão um jornal, uma publicação dirigida especificamente à comunidade judaica. Aparentemente, há ali alguma confusão entre ele e um outro Robert Klein, a quem deveria ter sido endereçado o jornal. O que há de genial na escolha de Alain Delon como protagonista de Mr. Klein (Mr. Klein – Um Homem na Sombra, 1976) torna-se evidente neste momento. O olhar frio e seguro de Delon que nos habituámos a conhecer torna-se transparente, deixa vislumbrar uma inquietação. Se Robert Klein vai procurando pistas de uma existência muito incongruente do outro Robert Klein, Losey vai-nos apresentando pistas bem reais da história que se vai construindo e de uma inevitabilidade que se aproxima vertiginosamente.
De forma obsessiva, Klein embarca na tarefa de procurar provar que não é uma pessoa que ele desconhece, procura uma imagem de um outro Klein, afirma-se como “homem errado” – ecoando o mais assustador dos filmes de Alfred Hitchcock, The Wrong Man (O Falso Culpado, 1956). Klein movimenta-se numa Paris fria, tão fria quanto os olhos de Alain Delon que recordamos dos filmes de Melville. Por toda a cidade se sente a presença de um “outro”, até mesmo nas sombras que quadros entretanto removidos deixaram no papel de parede. Paralelamente, Klein investiga-se a si próprio, interrogando o seu pai, tentando provar as suas origens.
Quem é o Robert Klein que supostamente deveria ter recebido aquele jornal? Na verdade, isso vai-se tornando cada vez menos importante, ele poderá ser tão real quanto o George Kaplan de North by Northwest (Intriga Internacional, 1959). Robert Klein vai procurando pistas sobre o outro Klein e, pelo caminho, vai absorvendo os traços e a vida do seu duplo, entre a confusão da cidade com emanações de real e da cidade com emanações de cenário. De tal forma que até mesmo o cão do outro Klein acabará por reconhecê-lo como o seu dono. Pela mão de Losey vamos planando entre três estados que o realizador identifica no seu filme: a realidade, a irrealidade e a abstracção.
França é aqui retratada no seu momento de maior vergonha, o passado colaboracionista com que o país se mostrou durante muitos anos incapaz de lidar (recorde-se que ainda recentemente, em 2017, o presidente Emmanuel Macron reconheceu o envolvimento francês na detenção e consequente deportação e extermínio de milhares de judeus franceses). O que nos leva à obra de Marcel Ophüls, Le chagrin et la pitié (Tristeza e Compaixão, 1969), filme que recuperou muitos desses fantasmas do passado francês. E, concretamente, ao momento em que é entrevistado um outro Mr. Klein, Marius Klein, um pequeno comerciante que nos conta, sem embaraço, como se viu forçado, perante suspeitas lançadas anonimamente, a publicar um pequeno anúncio num jornal declarando que não era judeu.
O nosso Mr. Klein lança-se numa busca inglória, procurando pelo seu duplo, o seu negativo, esse homem que ameaça a sua existência. Mas essa ameaça não terá origem no quadro que ele adquiriu no início do filme? O quadro parece carregar em si uma maldição – repare-se como é o único objecto que resiste, mesmo quando o apartamento fica despojado de todo o seu recheio, que havia sido apreendido pela polícia. A ligação de Klein ao quadro foi-se estreitando sem que disso déssemos conta, a ponto de ele recusar-se a deixar que o quadro seja confiscado pela polícia, dizendo que aquele quadro não é uma mera mercadoria comercial, mas antes um bem pessoal.
Afinal, num mundo kafkiano, a verdade não garante qualquer apaziguamento. Não há consolo certo na verdade.
Quando a polícia entra no apartamento de Klein, não para o tratar como um cidadão respeitável, como sucedera anteriormente, mas antes como um indesejável a ser perseguido, estamos já mergulhados num mundo distópico orwelliano de coisas que contêm em si mesmas o seu contrário – o polícia diz que o facto de ter sido Klein a tomar a iniciativa de contactar a polícia nada abona em seu favor, afirmando que não seria a primeira vez que alguém se mostrava como forma de melhor se esconder. Este é um traço que Christian Ledieu identifica no cinema de Joseph Losey: “Chaque geste, chaque regard renferme son « négatif » – telle une médaille montrée dans ses côtés pile et face -, qui ne le suit ni le précède, mais est tout entier contenu en lui-même.” (Joseph Losey, Christian Ledieu, Seghers, 1963).
Na sua fase de declínio, Robert Klein parece alhear-se da inversão de papéis que se foi operando. O quadro que ele contempla e que o contempla a ele, o quadro que poderia ser ainda um outro duplo de Klein (distintamente vestido e usando chapéu). Ele, que procurou que o dono do quadro lhe oferecesse uma genealogia do quadro, uma “certidão de nascimento”, uma proveniência segura, é incapaz de fornecer informações inequívocas sobre as suas próprias origens. Encontraremos Klein sentado no seu apartamento, no mesmo robe dourado que agora parece ser um despojo destituído de brilho, à sua frente o amigo que se propõe comprar o apartamento por um preço muito abaixo do seu real valor, preço que Klein não pode contestar porque chegou a hora de ser ele a cair em desgraça.
Na sua visita a Estrasburgo, quando Robert pesquisava provas da sua ascendência, ouvimos o seu pai falar de consciência (mesmo sem ter reparado que estava a falar para o filho). Dizia que, ainda que sendo avarento, egoísta ou hipócrita, um homem nunca deve deixar de ser consciente. Robert responde-lhe que o resultado é o mesmo, ao que o pai replica “já ouviste falar de remorsos?”.
Robert Klein chega a descobrir o significado do remorso? Temos dificuldade em acreditar nessa redenção. Ele persegue antes de mais o enigma, ele quer conhecer o “outro” e vai ganhando o gosto do desafio da autoridade (ou uma indiferença face a ela). Robert afirma, perante o pai, que um homem com remorsos mais não será do que um abutre ferido por uma flecha, isso não o impedindo de voar. Ele procura a verdade, seja lá o que ela for, a dado momento acreditando que ela pode ser produzida por documentos ou certificados vindos de arquivos em Marselha ou na Argélia, mas para nos deixar apenas com a certeza de que ela é fugidia. O pai alude vagamente a uma outra família Klein com origens holandesas (um pedigree semelhante ao do quadro). Afinal, num mundo kafkiano, a verdade não garante qualquer apaziguamento. Não há consolo certo na verdade.
No Vélodrome d’Hiver vemos Robert Klein perdido no meio da multidão, enquanto nos megafones se ouve o nome Klein (o nome dele ou o nome do “outro”?), e nas bancadas encontramos o proprietário original do quadro, vendo Klein tão perdido quanto ele. O filme termina no silêncio, sem música, na desolação opressiva e vazia do inevitável.
Mr. Klein (Um Homem na Sombra, 1976) de Joseph Losey será exibido no ciclo Rever Joseph Losey, da Medeia Filmes: dia 30 de Abril e 4 de Maio no Porto (Teatro Campo Alegre), e dias 28 de Abril e 3, 6, 9, 10 de Maio em Lisboa (Cinema Nimas).